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O luxo em segunda mão dispara: sustentabilidade ou marketing?

Fotos: Leonel de Castro/Global Imagens

Não há números sobre este mercado em Portugal, embora duas mãos cheias já não cheguem para contar as pequenas lojas vintage do país

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Dar uma nova vida a uma peça exclusiva e cara de gigantes da moda já é aceite. Perdeu-se o estigma e o fenómeno ganhou escala nos últimos anos. O mercado da reutilização no segmento alto cresce 12% ao ano. E até virou tendência. Mas será mesmo o ambiente a motivação dos clientes e das marcas?

Quando em 2019 a Farfetch, o unicórnio português da moda de luxo, lançou o serviço Second Life para os clientes poderem vender as suas malas de designer, poucos apostariam no sucesso do piloto. Trocar uma mala usada por créditos no site foi uma ideia visionária. Que compensou. De tal forma que do mercado europeu o projeto foi alargado para os Estados Unidos num ápice. Certo é que o mercado do luxo em segunda mão disparou nos últimos anos. Está a crescer 12% ao ano em todo o Mundo e já representa, a nível global, um volume de 25 mil milhões de euros.

Os dados da consultora Boston Consulting Group antecipam o futuro: este mercado deve crescer 15% a 20% anualmente nos próximos cinco anos. O fenómeno é tal que já são os próprios gigantes, como Gucci e Burberry, a investir numa nova vida para as suas peças. As plataformas online multiplicam-se e há já uma parafernália de lojas vintage ao virar da esquina. É a economia circular e o borbulhar de um negócio que tem tudo para dar certo. Mas porquê? A moda de luxo está a tentar apanhar o comboio do ambientalismo? Thomas Berry diz que sim. O diretor de Sustentabilidade da Farfetch – a visionária que já vende “pre-owned fashion” das boutiques parceiras desde 2010 – explica que a segunda mão “é uma área de interesse crescente” por parte dos clientes e que serviços como Second Life permitem testar. “Ajuda os clientes a aumentarem o período de vida dos produtos que já não usam, mas que ainda estão em perfeito estado.” Para quem compra, são peças de luxo e intemporais a preço mais baixo. De Balenciaga à Prada, Hermès, Louis Vuitton, Versace, Chanel, Dior.

O britânico acredita mesmo que “a sustentabilidade é o grande fator que motiva o crescimento deste segmento” e que a questão do preço “é a menos relevante” para clientes e marcas. Até por isso, a Farfetch criou uma calculadora de impacto ambiental no site. Calcula a pegada de diferentes peças e materiais e ajuda a perceber as consequências ambientais de comprar artigos em segunda mão. Por cada peça usada que se compra, em comparação com uma nova, podem poupar-se milhares de litros de água e evitar a emissão de dezenas de quilogramas de carbono para a atmosfera. A indústria têxtil, apesar de todos os avanços, continua a ser das mais poluentes do Mundo. Aqui a pegada importa. E a própria Farfetch quer reduzi-la até 2030, incentivando a compra do usado. É a moda de luxo a dar as mãos à moda sustentável.

“A questão ambiental foi a desculpa”

Mas, será mesmo a sustentabilidade o motor da tendência? Graça Guedes não acredita. A especialista em Design e Marketing de moda numa orientação de sustentabilidade defende que a tendência só veio legitimar o usado no luxo, mas a motivação foi a crise. “A onda do usado já vem de há muito. A Grã-Bretanha sempre teve essas práticas. Só que estavam muito associadas ao apoio a pessoas com menos recursos.” O Mundo girou e a crise de 2008 foi o gatilho perfeito, um “abanão a sério”. A tendência ambiental já tinha dado passos pelas mãos de pequenas empresas e emergiu em força com a perda de rendimentos de quem tinha elevado poder de compra. O usado, o sustentável, o reciclado, o reaproveitar o velho, tudo isto virou tendência. “A questão ambiental foi a desculpa para legitimar. De repente, usar vintage passou a ser moda. As pessoas gostam de dizer que compraram em segunda mão porque isso mostra que são atuais e preocupadas com o ambiente. Tornámo-nos todos ambientalistas”, ironiza.

As fortunas que se guardavam nos armários voltaram a entrar em circulação. E as marcas tiveram de correr atrás dos consumidores. “Se o usado passa a ter lugar no mercado, e se a empresa detentora da marca não fizer nada, alguém vai fazer.” Graça Guedes estima que até 2029 as marcas vão vender menos de metade e vão produzir menos por arrasto. “Têm que mudar e vão procurar rendimentos onde puderem.” Afinal, uma empresa precisa de faturar. E hoje já não se trata só do preço mais baixo, mas de consumidores jovens que perceberam que têm poder para empurrar os gigantes para a mudança. Já nem só de prestígio e exclusividade vive o luxo, a sustentabilidade entrou na equação. E em Portugal? “Depende do segmento. Muito poucos portugueses conseguem vestir alta-costura, mesmo em segunda mão. Um vestido que era de cem mil euros e está a 40 mil, quem é que tem poder de compra cá?”

Uma década a vender vintage

Ainda assim, há lojas vintage que têm resistido no tempo. Encaixada na Rua Pedro Homem de Melo, zona nobre do Porto, rodeada de lojas de luxo, a Quartier Latin mantém a morada. Já lá vão quase 11 anos. Isadora Fevereiro foi pioneira neste mercado de segunda mão em Portugal. Lá dentro, Gucci, Prada ou Chanel. Tudo usado. Para quem não come carne nem compra nada novo há anos, o negócio parecia óbvio. Mas ela pouco sabia de marcas de luxo, nem sequer as usava, quando se meteu nisto. Aprendeu com o tempo. Foi em Londres que esbarrou no conceito que quis importar.

Isadora Fevereiro abriu a loja Quartier Latin em 2010, no Porto. Triplicou as vendas nos últimos três anos

Não precisa de andar à procura. As clientes vendem-lhe as peças. “É tudo à consignação. Combinamos uma comissão e um valor de venda com a dona da peça. É ela quem decide.” Entre os 20%, quando se trata de malas, e os 50% abaixo do preço de compra. Há peças a 150 euros, e outras, como da Hermès – mais raras cá -, a sete mil. Todos os dias há clientes a vender e a comprar, “é um submundo, há muita procura e muita oferta”. Há quem queira vender-lhe peças que estão paradas em casa para usarem o dinheiro numa nova na loja do outro lado da rua. Isadora Fevereiro percebe quando Graça Guedes não reconhece este mercado de luxo no país. “Isto é um micro nicho de mercado. Não tem comparação com o poder de compra que as pessoas têm em França, na Bélgica, nos Estados Unidos. Mas o nicho que há cá é muito forte.” E vender uma mala de 3 500 euros implica transmitir segurança, ter cadência ao longo de anos, ter loja aberta além do online, atendimento de luxo.

Ainda se ri ao lembrar que há dez anos “era vergonhoso ir a uma loja de segunda mão mesmo que fosse de luxo, havia o estigma de serem confundidas com pessoas que estavam falidas”. Agora? É o oposto. Nos últimos três anos, uma explosão: triplicou as vendas. “É um statement: ‘Sou moderno e responsável e uso em segunda mão’.” Mas a grande motivação ainda é comprar peças de grandes marcas, em boas condições, a bons preços: “90% das clientes não está assim tão preocupada com a sustentabilidade. O dinheiro ainda pesa mais do que a ética. Mas há uma nova geração que já pensa diferente”.

Mais qualidade, menos quantidade

Susana Fonseca, da Associação Zero, concorda que a motivação ainda não é o ambiente, é o acesso. Mas só pode ver com bons olhos a reutilização. “É muito interessante esta valorização da segunda mão. E o mercado de luxo tornar isto aceitável é ainda melhor.” Até porque os gigantes do fast fashion – como a H&M e a Inditex (grupo que detém marcas como a Zara, Bershka, Massimo Dutti, Pull and Bear) – estão a apostar muito na reciclagem, que é o fim da linha, quando grande parte dos têxteis nem sequer é reciclado. “É preciso começar a trabalhar a montante.” Investir em mais qualidade para prolongar a vida da peça, reduzir a produção, aumentar preços – até porque acumulamos de mais – e criar espaços de segunda mão. Esse é o único caminho em todo o mercado da moda, não tem dúvidas.

Os gigantes do luxo estão a testar, com pequenas coisas, mas ainda falta muito para um salto estrutural. “Usar o luxo ainda é uma questão de status social. Os produtos são muito pouco ecológicos. Aliás, há a prática terrível da queima de roupa que não é vendida para evitar que seja doada e usada por outras classes sociais. E o escândalo que isso causou, nomeadamente em França, também incentivou a segunda mão.” Ainda bem, diz a socióloga e ambientalista. “Sempre que faço uma peça nova tenho que ir buscar fibras à origem, transformar, pintar, tecer. Gasto energia, água. Há poluição para a água, o ar, o solo. Quando uso uma peça em segunda mão, estou a diluir o impacto inicial da produção por mais tempo.”

Não há números sobre este mercado em Portugal, embora duas mãos cheias já não cheguem para contar as pequenas lojas vintage do país, sobretudo no Porto e em Lisboa. Mesmo sem dados, Beatriz Casais, especialista em Marketing, da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, arrisca: “A vantagem para as marcas é a de aumentar a base de clientes, despertar a visão aspiracional de ter a marca, embora perca o fator de exclusividade”.

Plataformas como o OLX também tiveram dedo nisto. Os consumidores começaram a trocar entre si e as marcas não se sentaram a ver. “Sustentabilidade? Claro que tem impacto. Mas as marcas de luxo não são sustentáveis. A começar pela produção em países onde há exploração infantil ou uso de animais. O green poderá ser uma profecia do novo luxo.”