Estudo revela que os níveis de inteligência dos alunos foram afetados na crise de 2008 e investigadores admitem que isso se pode repetir com a pandemia. Impacto no bem-estar emocional e psicológico dos mais novos reflete-se na forma como aprendem e no rendimento escolar.
A crise de 2008 e a pandemia 2020 chocalharam a economia, mexeram com o desemprego e as rotinas das famílias. Até que ponto as crises e os seus efeitos no ambiente familiar afetam o desenvolvimento das crianças? E a covid-19 que impacto terá? Psicólogos, professores e investigadores estão preocupados. Os efeitos nas aprendizagens ainda estão a ser apurados e preparam-se programas de recuperação para as escolas. Mas, sabe-se agora, que os estilhaços desta “bomba” que abalou o Mundo podem ser bem mais profundos, atingindo até os níveis de inteligência dos mais pequenos.
Um estudo, publicado recentemente na revista “Intelligence”, mostra que a tendência de crescimento do Quociente de Inteligência (QI) das crianças portuguesas em idade escolar foi afetada negativamente pela crise económica que o país viveu entre 2008 e 2016. Embora tenha sempre aumentado, houve um travão no crescimento do QI depois de 2008. Com base nestes resultados, Irene Carvalho, investigadora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e do Cintesis – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde e uma das autoras do estudo, arrisca fazer a ponte para 2020/2021. “Com a atual situação de pandemia, é possível que se venha a assistir a nova redução no crescimento do QI, em média, nas crianças.” Podemos mesmo “vir a ter uma geração que, em média, tem um QI mais baixo do que a anterior” e isso será um marco na História. Irene Carvalho faz questão de frisar que o estudo assenta em médias, o que significa que continuará a haver sempre crianças muito inteligentes e outras com dificuldades intelectuais. A média é que pode baixar.
A investigação é anterior à pandemia e mostra a presença do efeito Flynn, um fenómeno observado em vários países ao longo de décadas e que se traduz por um aumento constante do QI, medido por testes padronizados, por razões associadas a fatores biológicos, históricos e sociais, como a educação, os cuidados médicos e a alimentação. Foi descoberto por James Flynn, investigador neozelandês que morreu em dezembro passado, mas não sem antes se debruçar sobre o estudo da FMUP/Cintesis realizado em coautoria com investigadores do Requimte/LAQV, da Universidade Nova de Lisboa, do CESPU e do Centro Hospitalar Universitário de S. João. “Quando enviámos o trabalho para publicação, um dos revisores foi o próprio Flynn”, orgulha-se Irene Carvalho.
Prosperidade e crescimento, crise e regressão
Também em Portugal está provado o efeito Flynn, ou seja, a tendência crescente das capacidades cognitivas das crianças. A aferição dos níveis de QI foi feita em 1991, em 2008 e em 2016, o que “por sorte” coincidiu com “momentos-chave no país”: o período de crescimento económico no pós-adesão à CEE – Comunidade Económica Europeia (antecessora da União Europeia) e a crise financeira que levou o país à bancarrota e obrigou à intervenção externa. Os resultados dos testes de QI (matrizes progressivas coloridas de Raven) então feitos a crianças, com idades entre os seis e os dez anos, revelaram “um crescimento grande que acompanhou o período de prosperidade e depois uma regressão do crescimento”, sublinha a investigadora. Entre 1991 e 2008, assistiu-se a um aumento do QI de 2,6 pontos por década, sendo que as crianças de níveis socioculturais mais baixos foram as que mais contribuíram para este salto. No entanto, entre 2008 e 2016, a tendência de crescimento abrandou para 1,7 pontos por década.
Para perceber a razão do abrandamento, os autores estudaram as principais mudanças registadas em Portugal naquela época, mas não encontraram diferenças significativas nas áreas da Saúde e da Educação. Sabe-se que os níveis de escolaridade dos pais influenciam o desenvolvimento das capacidades cognitivas das crianças, mas, nesse ponto, nada de significativo se alterou. Então, o que poderia ter influenciado negativamente? “Foi descrito após os anos 30, nos Estados Unidos, que situações de stress prolongado, de sofrimento e preocupação afetam o desenvolvimento do QI das crianças”, destaca a investigadora, considerando que este é o fator mais plausível para o que aconteceu em Portugal no período de crise. A elevada taxa de desemprego, o aumento dos custos de vida e o empobrecimento das famílias então registados alteraram o “ambiente e as dinâmicas familiares”, o que terá tido reflexos na estimulação da inteligência dos mais pequenos. “Os resultados vão ao encontro da hipótese de que a depressão económica afetou negativamente o desenvolvimento cognitivo das crianças através da desmoralização dos pais, com consequente diminuição da qualidade do ambiente familiar proporcionado para esse desenvolvimento”, referem os autores do estudo.
Os investigadores realçam a importância da formação escolar dos pais no desenvolvimento cognitivo das crianças – níveis de escolaridade mais elevados podem ter um efeito positivo no QI dos filhos -, mas “em períodos de recessão, mais formação não é suficiente para contrabalançar esse efeito negativo”.
Transpondo para 2020/2021, anos profundamente abalados pela pandemia, com alterações significativas nos comportamentos e estilos de vida, é expectável um novo efeito negativo no crescimento do QI das crianças. “Com os pais em casa assoberbados de trabalho, os filhos em ensino à distância, isolados dos amigos, não é surpreendente que este crescimento do QI venha a cair ainda mais”, constata Irene Carvalho, admitindo que pode ficar em zero ou descer mesmo para valores negativos.
Impacto é como uma “ressaca”, vem a posteriori
Helena Correia, psicóloga de um agrupamento de escolas de Lisboa, não simpatiza com a medida QI, considera-a “redutora” porque “somos sempre mais inteligentes do que conseguimos expressar”, mas reconhece que “há uma correlação entre os períodos de crise, que têm repercussões nas dinâmicas familiares, e o padrão de eficiência global das crianças que pode ser medido, por exemplo, através do rendimento académico”. Os testes de QI usados no estudo da FMUP/Cintesis – as matrizes progressivas coloridas de Raven – avaliam o raciocínio lógico das crianças, apresentam um conjunto de figuras e perguntam qual é a que está em falta. As respostas são quase intuitivas e não têm qualquer relação com a aprendizagem de conteúdos escolares. “Só em casos extremos, com privações muito graves, é que esta inteligência é afetada. Durante a pandemia, os miúdos não estiveram totalmente desprovidos de estímulos, houve respostas para tentar suprir as lacunas, podem não ter sido as melhores, mas houve”, defende a psicóloga.
Ainda assim, Helena Correia está plenamente convencida de que estes períodos em casa tiveram efeitos nas crianças e jovens, mas a nível emocional e psicológico, que interferem no rendimento dos alunos e na eficiência intelectual. Com 20 anos de experiência em escolas, e também pelo que ouve de colegas, a psicóloga tem a clara perceção de que “aumentaram significativamente” os pedidos de ajuda e de que as novas “solicitações são essencialmente para mitigar os impactos da pandemia, da privação social”. São, sobretudo, mais casos de ansiedade, muitas vezes provocada pela pressão acrescida de recuperação de aprendizagens.
“Há muitas crianças que sentem que o regime não presencial favoreceu o seu desempenho e que agora têm receio de não conseguir corresponder”, relata. Há também “mais alunos mais tristes e desmotivados” e com algum “embotamento” afetivo, uma certa incapacidade de sentir satisfação nas coisas que antes lhes davam prazer, sintetiza a psicóloga. Por outro lado, há famílias que não estão a ajustar as suas expectativas ao contexto atual e “esperam que os filhos continuem a ter o mesmo desempenho ou até melhor e que, do ponto de vista emocional e afetivo, consigam rapidamente reorganizar-se”. E isto não funciona assim. O impacto é a posteriori, uma espécie de “ressaca”, tal como acontece nos dias seguintes a um acidente.
Sem dúvidas sobre os efeitos nas aprendizagens e no bem-estar emocional e psicológico, que ainda não se sabe como vão evoluir, Helena Correia tem, no entanto, reservas sobre os impactos da pandemia no QI dos mais pequenos. “O desenvolvimento cognitivo das crianças é universal e acontece até nas condições mais adversas. Duvido que daqui a alguns anos se observem grandes impactos”, sustenta.
Milhares de testes para ver lacunas na Matemática
É precisamente para medir o pulso às aprendizagens que a Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) está a fazer testes a cerca de 20 mil alunos dos 4.º, 6.º, 9.º, 10.º, 11.º e 12.º anos de mais de cem escolas públicas e privadas de norte a sul do país, num projeto com o apoio da Fundação Gulbenkian. “É crucial fazer estes exames e este ano mais do que nunca. É preciso ver o que está a acontecer, ver onde está cada aluno e levá-lo para onde devia estar. É esta a obrigação do sistema de educação”, explica João Araújo, presidente da SPM.
Tendo em conta que foram suspensos os exames do 9.º ano e anuladas as provas dos 4.º e 6.º anos, os testes da SPM “serão o único instrumento para verificar objetivamente os efeitos da pandemia em cada aluno em concreto” e para servir de termo de comparação para o futuro, realça o responsável, para quem os exames, em vez de anulados, deviam ter sido promovidos em todos os anos para ajudar as escolas a identificarem onde têm de atuar. Por ora ainda não há resultados, mas a convicção generalizada é de que as perdas provocadas pela pandemia na aprendizagem da Matemática sejam grandes, prevê João Araújo.
E os primeiros resultados apurados pelo Ministério da Educação já mostram grandes fragilidades a todos os níveis. O diagnóstico feito em janeiro pelo Instituto de Avaliação Educativa para aferir o impacto do primeiro confinamento revelou que mais de 50% dos alunos dos 6.º e 9.º anos não conseguiram atingir os níveis esperados em três áreas fundamentais: literacia matemática, literacia científica e literacia de leitura e informação. O estudo, que envolveu 23 340 mil alunos dos 3.º, 6.º e 9.º anos, num total de 1 338 turmas e 313 escolas, serviu de base ao grupo de trabalho criado pelo Governo para encontrar soluções para a recuperação das aprendizagens. As medidas foram apresentadas esta semana pelo ministro da Educação, envoltas num pacote de 900 milhões de euros destinado ao reforço de recursos humanos nas escolas, à formação dos professores, ao aumento dos recursos digitais e à modernização dos equipamentos e das escolas. Recorde-se que os resultados da análise, divulgados no final de março, e que deixa de fora o que aconteceu entre janeiro e abril de 2021, o segundo período de confinamento, mostraram que os estudantes do 6.º ano são os mais afetados pelo ensino à distância, enquanto os do 3.º ano tiveram mais facilidades em continuar a aprender em casa. Por outro lado, acentuam que a Matemática continua a ser a grande dor de cabeça.
Para o presidente da SPM, um dos grandes problemas do confinamento foi o sistema ter adotado um “ensino remoto de emergência” para tapar buracos e não um verdadeiro “Ensino À Distância” (E@D), que assenta num modelo pedagógico diferente, com características muito peculiares, resultados comprovados e “nada de aulas por Zoom”. “Com o mesmo nível de esforço, podia-se ter feito mais e melhor”, assegura João Araújo, sem deixar, contudo, de elogiar o enorme trabalho dos professores.
Na Matemática, e sobretudo em anos mais avançados, o formato de aulas Zoom (um dos serviços de videoconferência usados pelas escolas para dar aulas à distância) é “especialmente pernicioso”. Não funciona para explicar conceitos intricados e muito longos, o que se traduz em perdas para os alunos, refere João Araújo.
A situação é especialmente crítica porque o sistema de educação está assente em camadas de conhecimentos, que são construídas do fim para o princípio, ou seja, são os conhecimentos que os alunos devem ter no final do Secundário que determinam os conteúdos dos anos anteriores. “Se um engenheiro chega à faculdade sem saber a tabuada, não é possível ensinar-lhe a tabuada e tudo o resto que precisa para fazer as contas”, enfatiza o professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, traduzindo em miúdos as consequências que a maioria da sociedade ainda não interiorizou. E avisa: ou se recupera o que se perdeu ou não vai ser possível cumprir os objetivos no final dos estudos, e isso poderá significar que vamos ter “engenheiros que não sabem fazer cálculos para termos uma ponte segura ou ter médicos que aprenderam menos do que o necessário”.
O matemático considera que “seria terrível” que se lançasse sobre esta geração o anátema que recaiu sobre a geração do pós-25 de Abril, com as passagens administrativas. “Tem de haver uma mobilização total do sistema de ensino para impedir que estes alunos fiquem mais tarde conhecidos como alunos que sabiam menos. Isso seria terrível”, frisa, concluindo que “Portugal não tem o direito de fazer isso a estes miúdos”.
Regressão na leitura e na escrita
Também as aprendizagens da leitura e da escrita foram impactadas pela pandemia, mais concretamente pelo confinamento e aulas à distância. Um estudo feito no âmbito do Programa Integrado de Promoção da Literacia, em três escolas da Área Metropolitana do Porto, que comparou dados de fevereiro de 2019 e de junho de 2020, conclui que as crianças de cinco e seis anos tiveram uma regressão entre os 25% e os 30% na aquisição da leitura e da escrita. Miguel Borges, coordenador do estudo e investigador do Centro de Investigação e Estudos da Criança da Universidade do Minho, não tem dúvidas de que os resultados podem ser atribuídos à pandemia e ao isolamento.
“Transpor aulas que são dadas em sala de aula para plataformas digitais não funciona, especialmente com crianças destas idades”, vinca, adiantando que até na linguagem oral as crianças regrediram. No segundo confinamento, diz o investigador, as escolas estavam prontas a responder rapidamente, os professores e as crianças estavam mais habituados às plataformas e a duração foi mais curta, mas “não houve mudança de estratégia, continuou a fazer-se o mesmo do que em sala de aula”. E os mais prejudicados são sempre os mesmos, os alunos de contextos sociais mais desfavorecidos, com menos suporte familiar. “A pandemia veio acentuar ainda mais as diferenças que já existiam”, observa.
E o impacto nas aprendizagens é recuperável? Embora discorde do tema recuperação porque “não se recupera algo que não foi dado”, Miguel Borges acredita que sim, mas, para isso, as escolas terão de inovar, de fazer diferente. O primeiro passo “é definir as competências-chave a recuperar”, ir aos currículos ver o que realmente importa. No início deste ano letivo, muitas escolas optaram por andar para trás para ir buscar os conteúdos do meio do ano anterior, mas o investigador entende que não há tempo para isso. “Se vamos tentar fazer o mesmo, mas com menos tempo, então vamos piorar ainda mais o insucesso escolar”, avisa.