O ilusório escape das redes sociais durante o confinamento

Há dicas simples que podemos seguir para nos mantermos a salvo das consequências deste ilusório desconfinamento prometido pelas redes sociais

Fechados em casa, refugiamo-nos nos contactos virtuais para manter a tão desejada proximidade com os outros. E corremos o risco de pagar a fatura em solidão e dependência.

Meses depois do confinamento massivo de março e abril do ano passado, uma grande parte dos portugueses volta agora a fechar-se em casa – ou pelo menos assim deveria ser. A Internet, e em particular as redes sociais, reaparecem como escape de tempos difíceis, até como ilusório tónico para dias de solidão.

É frágil a linha que separa uma ferramenta útil e proveitosa de uma tentação potencialmente perversa. E estaremos tão mais imunes quanto maior consciência tivermos dos riscos. Desde logo, o risco de vermos a ansiedade aumentada pela quantidade imensa de notícias e conteúdos sobre a pandemia a que estamos expostos continuamente.

Ou o risco da desinformação, à custa das fake news que proliferam pela web. Ou o risco do cyberbullying, facilitado por um potencial aumento da vulnerabilidade em tempos de dificuldade. Ou o risco de uma solidão que, ironicamente, se pode instalar de mansinho. Mesmo quando pensamos estar a combatê-la.

“É um efeito perverso. Achamos que estamos a ter mais contacto e relacionamento, que estamos acompanhados o dia inteiro, mas na prática não tocámos em ninguém”, realça Judite Alves Pinheiro, psicóloga clínica. É uma “falsa sensação de companhia”, que em nada substitui o papel essencial do contacto físico nos processos vinculativos.

“Horas seguidas de conversa online não reparam a falta do beijo e do abraço. As redes sociais virtuais jamais irão substituir as verdadeiras redes sociais, o grupo de amigos, o convívio em família. Aliás, detesto que se lhes chame redes sociais”, lamenta a especialista, que trabalha como psicóloga no Agrupamento de Escolas Joaquim de Araújo, em Penafiel.

A este propósito, Ivone Patrão, docente no ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lisboa), aponta novos dados, relativos ao primeiro confinamento, recolhidos no âmbito do projeto “Geração Cordão”, que pretende ser uma resposta no âmbito da promoção da gestão saudável do uso das tecnologias.

“Três quartos dos inquiridos aumentaram para o dobro o tempo que passavam online, mas, destes 75%, a maioria admitiu que isso não os fazia sentir bem, que sentiam falta de estar com os amigos. Esta ausência do contacto pessoal custou-lhes muito.”

A reboque da solidão, chegam outros problemas, potencialmente mais graves. Para todas as faixas etárias. A dependência é um deles. José Azevedo, uma carreira de mais de 30 anos na área da Sociologia que complementa com a formação na área das Ciências da Comunicação, ressalva que, em relação aos efeitos concretos do confinamento, ainda estamos perante “um território não mapeado”, mas estabelece um paralelismo com outro tipo de eventos que nos pode servir de guia de entendimento para o que está em causa.

“Sabemos, por exemplo, que quando há um terramoto as pessoas tendem a ficar mais ligadas aos media. Sabemos também que em situações como a que estamos a viver, em que há incerteza, riscos, fragilidade económica, eventualmente fragilidade da nossa saúde, se gera um medo difuso e generalizado e que isso pode ter efeitos sobre os grupos mais frágeis em termos de saúde mental. Alguns de nós vão ficar mais deprimidos. Outros, que já tenham predisposição para isso, vão ter os comportamentos aditivos mais acentuados. Seja ao nível da comida, da bebida, do jogo online ou das redes sociais. É, no fundo, uma resposta de escapismo social.”

Não espanta, por isso, que a utilização da web – e em particular das redes – cresça em flecha durante este período. Há estatísticas registadas a nível internacional, durante o primeiro grande período de confinamento, que ajudam a constatá-lo.

Em março do ano passado, por exemplo, o Facebook reportou um aumento de utilizadores do serviço de chat na ordem dos 50%. No mesmo período, o WhatsApp foi 40% mais usado. Já num estudo desenvolvido na América do Norte, meses depois do início da pandemia, 72% dos utilizadores inquiridos admitiam que o consumo das redes tinha aumentado nesse período.

E ninguém nega que a web e as redes encerram virtudes difíceis de contestar (ainda mais neste período). Seja para assistir a aulas online ou ter reuniões de trabalho, para matar as saudades dos pais ou dos avós que queremos preservar a todo o custo mas a quem não queremos falhar, para manter o contacto com os amigos ou rir daquele meme que ajuda a aligeirar o fardo de uma pandemia com contornos dramáticos, para fazer exercício com o acompanhamento virtual de um personal trainer ou mesmo para aumentar conhecimentos, graças ao vasto leque de cursos que é possível encontrar atualmente na Internet. O difícil é encontrar um equilíbrio entre o aproveitamento dessas vantagens e a fuga à dependência.

Os jovens, esse grupo de risco

Mas o que é isto da dependência da tecnologia? Falamos de dependência quando está em causa um distúrbio que implica a incapacidade de controlar o uso da mesma, ao ponto de se tornar disfuncional e impactar a vida social, por vezes de forma devastadora. Judite Alves Pinheiro enumera algumas das potenciais consequências desta dependência, que muitas vezes surge associada a quadros depressivos.

Uma estimulação cognitiva permanente e excessiva, “com o inerente cansaço físico e mental”, a ansiedade (“a pessoa em estado de privação pode mesmo ter ataques de pânico”), os estados confusionais, a violência e a agressividade, a privação de sono, um défice de atenção e concentração ou até a alienação e a incapacidade de cumprir as rotinas diárias são alguns dos exemplos apontados pela psicóloga que teve oportunidade de constatar os traços de uma adição crescente quando, no ano passado, conduziu sessões de orientação vocacional via web.

“Uma das dificuldades do ensino à distância foi o facto de os alunos estarem a assistir às aulas e ao mesmo tempo nos jogos e nas redes sociais através do telemóvel.”
De facto, os riscos de desenvolver uma crescente adição às redes são particularmente notórios entre os mais jovens. Ivone Patrão admite isso mesmo.

“Sente-se mais nos jovens do que nos adultos, até porque nos adultos, tendencialmente, há mais aquele instinto de sobrevivência, de terem mesmo que trabalhar e por isso não poderem passar tanto tempo nas redes”, aponta a psicoterapeuta, lembrando que, segundo estudos prévios conduzidos pela sua equipa, 15 a 20% dos jovens estão dependentes de ajuda profissional para tratar a dependência à tecnologia.

A psicóloga ressalva que estes são precisamente os casos que constituem a exceção à regra de sentirem falta do convívio com os pares, mesmo passando mais tempo online. “Esses, que íamos vendo em consulta, durante as primeiras semanas de confinamento diziam que estavam ótimos. Porque já antes passavam muito tempo online e o confinamento, de alguma forma, veio diminuir os conflitos em relação a isso.”

A especialista mostra-se ainda particularmente preocupada com a possibilidade de o confinamento poder gerar casos de dependência da tecnologia em jovens que até aqui não a tinham. “Sobretudo porque muitos estarão mais vulneráveis do ponto de vista psicológico e o mundo online está mesmo ali à mão, é mais confortável. Os mais vulneráveis podem acabar a olhar para o mundo digital como uma zona de conforto.”

Sinais de alerta e um guia para desintoxicar

O problema é tanto mais relevante quanto a elevada probabilidade de se prolongar no tempo, como sublinha José Azevedo. “O que acontece com os comportamentos aditivos, de um modo geral, é que permanecem para além do período que os motivou. Ou seja, se tenho comportamento aditivo, ele tenderá a permanecer além da pandemia. É importante, por isso, que haja alguma prevenção desde já”, avisa o docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, alertando para a necessidade de se apostar numa maior sensibilização para o assunto.

Enquanto isso, há dicas simples que podemos seguir para nos mantermos a salvo das consequências deste ilusório desconfinamento prometido pelas redes sociais, mesmo sem nos desligarmos totalmente delas (até porque em muitos casos, seja por motivos profissionais ou para manter contactos familiares, isso não será opção).

Desativar notificações, por exemplo, para contrariarmos a inevitável tentação de estarmos constantemente a ser sugados para as redes. Mas também impor-se a si próprio limites na utilização das mesmas – reservando-as, por exemplo, para um determinado período do dia depois de terminar uma tarefa importante – e apostar na procura de outros hobbies que nos mantenham a salvo dos ecrãs. Ou mesmo eliminar parte das aplicações do género, reduzindo o stock de apps do telefone ao essencial.

Diretamente para os pais que possam andar preocupados com a propensão incontrolável dos filhos para as redes em tempos de confinamento, Ivone Patrão deixa outros conselhos. “Há uma certa dificuldade em termos de comunidade em gerir o mundo digital”, começa por defender. “Regra geral, ficamos muito contentes porque conseguimos oferecer aos nossos filhos tecnologia. Mas temos de oferecer isso com um bom plano de negociação, em termos de número de horas diárias e de conteúdos adequados, e com uma supervisão diária.”

Curiosamente, a psicoterapeuta também aconselha os pais a reservarem um período de tempo para… jogarem com os filhos ou estarem com eles nas redes. “Há uma grande evolução quando os pais se dedicam e se predispõem a isso, até porque passam a conhecer coisas dos filhos que não conheciam. Geram-se partilhas muito giras, muito interessantes.” De resto, anota, os erros e as situações de risco online são quase uma inevitabilidade.

É preciso é encará-las com naturalidade e (dentro do possível) tranquilidade. “Não entrem em conflito. Sentem-se e falem. Pô-los a pensar sobre as coisas é muito importante”, enfatiza a docente do ISPA, recordando ainda que a tecnologia não pode ser a única recompensa para os bons comportamentos. “É preciso pensar em adotar outras estratégias.”