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O grito de liberdade das mulheres sobre duas rodas

Os motoclubes femininos multiplicam-se em Portugal. Do "Princesas do Asfalto" ao "The Litas", grupo internacional, contam-se vários pelo país (Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

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São mulheres feitas, muitas tiraram a carta de mota já depois dos 40. Sem amarras a estandartes sociais, na vida destas motards vai-se sempre a tempo. Carregam a liberdade no discurso e o espírito das viagens na alma. No conta-quilómetros de estrada, marcam milhares. Guiné, Rússia, Marrocos, Europa, países sem-fim. Capacete na cabeça e mãos no guiador: abram alas para uma paixão eterna.

O vento com o Tejo aos pés empurra-lhe os cabelos escuros para a cara. Carla Barbosa ri. Agarra as mãos ao guiador, o Padrão dos Descobrimentos ali a meia dúzia de passos. É sábado, 11 horas em Lisboa, já tomou café. Está sentada numa BMW novinha em folha, a matrícula é a prova viva: 2021. Branquinha a luzir de mala prateada nas costas. “É uma 1 250, o topo das motas”, atira despachada. A tecnologia subscreve: ajusta a altura consoante o peso, punhos e bancos aquecidos, computador de bordo, suspensão automática. Carla tem 49 anos e no corpo, 1,70 de altura, carrega Mundo. “Na Guiné, demorei seis horas a fazer 50 quilómetros”, comenta de rompante.

Fala pelos cotovelos. Nem parece que morria de medo das duas rodas. Enganou-o quando decidiu tirar a carta, tinha aí uns 30 anos. Quis seguir a enxurrada de mulherio que começou a aderir ao motociclismo à boleia da moda das Harley-Davidson. Um acidente na instrução deixou-lhe o pé engessado, de baixa quatro meses. Quase desistiu, não fosse a escola de condução ter uma mulher à frente que a incentivou. Continuou às escondidas dos pais e juntou “uns dinheirinhos”, que é como quem diz 1 300 contos na altura (quase 6 500 euros atualmente), para a primeira companheira de viagens. Os pais chegaram a ameaçar pô-la fora de casa se a comprasse – no início dos anos 2000, as mortes em acidentes de mota eram o prato do dia. Carla fez ouvidos moucos. “Era uma mota linda, verde-garrafa, 1 100 de cilindrada, com malas laterais, já era um canhão.” E dos passeios saltou para viagens que enchem as redes sociais e revistas da especialidade.

Na capital, o termómetro ultrapassa os 20 graus, o vento continua a soprar, Carla aperta o blusão azul. Tem o ano na memória, 2015. “O Carlos, meu namorado, começou a ser tour leader de mota, a fazer excursões a Marrocos.” E ela lá se atirou para fora de pé. Tem África colada ao corpo, nasceu em Luanda, não podia deixar de ir. Marrocos, Alemanha, Áustria, Suíça, Liechtenstein, França, Mónaco, Itália, Eslovénia, Croácia. Agora, não há cabeça que lhe valha para tantos países a que deitou as rodas.

Em 2018, Carla Barbosa foi de mota até à Guiné-Bissau. Raramente pega no carro. Mesmo com chuva torrencial vai trabalhar na sua BMW
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

O mais especial? Guiné-Bissau. O namorado desafiou-a e, na verdade, Carla nunca achou que a viagem fosse para a frente. Foi. Intercomunicadores, tendas, colchões, duas motas carregadas. “Ir a África não é o mesmo que ir ao Algarve. Dois malucos sozinhos na Guiné, sem nada marcado.” Saiu de casa a 1 de novembro de 2018. Andou sobre areia, terra, pedras, no meio da selva, passou ao lado de torres de térmitas, javalis, crocodilos, cobras, camelos. “Calor, muito calor, quase 50 graus. Estive muitas vezes perto de desmaiar.” Fez milhares de quilómetros no deserto. E conheceu gente boa, muita, que se surpreendia com uma mulher numa mota a pedir respeito. Não só na Guiné, na Mauritânia, no Senegal, na Gâmbia. “Conduzir em África é um caos. Vimos paisagens bonitas, feias, toneladas de lixo, de plástico.” Vinte e sete dias na estrada, 11 mil quilómetros.

Já apanhou sustos, tantos. Como na Croácia, a caminho dos lagos Plitvice, com ventos tão fortes que lhe arrastavam a mota. Este ano, mesmo em pandemia, Carla carregou no acelerador até à Tunísia. Maria-rapaz? Só no espírito. Veste-se de feminismo. Com as viagens ganhou traquejo e agora vai trabalhar de mota. “Faça chuva, faça sol. Às vezes, chego ao trabalho ensopada, a deixar um rasto de água, despenteada mas bem-disposta.” Trabalha numa companhia de seguros. Vê acidentes todos os dias, talvez por isso tenha tanto respeito. Tem fato de inverno, verão, meia estação. Não facilita. Poucos lhe conhecem o carro, raramente lhe pega.

Um milhão de quilómetros sozinha

Em Portugal e lá fora, há cada vez mais mulheres a conduzir mota. Para viajar, passear, trabalhar. Foi nos anos 1940 que nasceu um dos primeiros clubes de motociclismo feminino – o Motor Maids, nos Estados Unidos -, numa época em que as motociclistas eram raras. Hoje, não faltam motoclubes de mulheres. E há muitas a fazer o Rali Dakar, outras tantas percorrer o Mundo sozinhas, a largar medos e preconceitos, em cima das duas rodas. Como Noraly, a holandesa de 33 anos, uma motociclista a full-time que está a dar a volta ao Mundo numa viagem que podemos ver de camarote no site “Itchy Boots”. Ou a polaca Kinga Tanajewska que vai a caminho da Namíbia e pode ser seguida em “On Her Bike”. Por cá, também não faltam exemplos. A portuguesa Paula Kota já foi até ao Irão. Gracinda Ramos até à Rússia.

O cabelo usa-o quase sempre a bater na cinta, tem a sensação de que se o cortar vai parecer um homem. Capacetes e chapéus são provavelmente os acessórios prediletos. Aos 56, Gracinda Ramos põe os olhos no Douro, continua à espera de ganhar juízo. “Ainda há muito preconceito. Ainda me perguntam quando é que cresço, dizem-me que andar de mota não é para mulheres da minha idade.” Só que é. Nunca andou de carro, enjoa. Resume rápido a vida: três motorizadas, cinco bicicletas, oito motas de grande cilindrada e um milhão de quilómetros. A paixão não é às motas, é conduzir. Pega em qualquer uma, grande, pequena. As pernas compridas ajudam. Aos 13, já andava em cima de duas rodas. Ia trabalhar para pagar bicicletas e vespas. Só tirou a carta aos 30, em duas semanas, já depois de voltar da Suíça onde esteve a estudar. É pintora. Dá aulas de Artes.

A primeira grande mota, uma Honda, 600 cc de cilindrada, comprou-a nessa altura. Em ano e meio fez 76 mil quilómetros. Anda todos os dias, para trabalhar, ir às compras. “Nunca entro em período de carência.” Foi subindo a cilindrada e abriu as portas à Europa. Com Vespas já tinha corrido a Península Ibérica. “Quem é viajante não são as motas, são as pessoas.” Não tem medos, é desprendida. Teve três motas iguais, três Grande Turismo (GT), 1 300 de cilindrada. De cores diferentes. Só nessas fez 540 mil quilómetros. No mapa, assinala 48 países. No calendário, é agosto o mês, quando tem férias da Escola Secundária de Paredes. Sempre que se faz à estrada sozinha, não diz a ninguém. “Se digo, vai acontecer-me tudo. Morrer, cair, ser violada.”

Gracinda Ramos viaja sempre sozinha, já percorreu 20 mil quilómetros de estrada até à Rússia. Aos 56, conta mais de 40 países
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Nos primeiros tempos, ia com o cartão de crédito, ganhava pouco. Passava o resto do ano a pagar. “Pensei sempre que não sei quanto tempo tenho para ver tudo o que quero.” A vida não espera. Dorme em hostels, pousadas, come em estações de serviço, tascas, não segue rotas turísticas nem autoestradas. Gosta de conhecer os países por dentro. Uma mochila chega, lava a roupa à noite no banho para voltar a vestir de dia. A primeira grande viagem foi à Polónia, ver os campos de concentração de Auschwitz. A mais longa, 20 mil quilómetros, 20 países, até à Rússia, ilustrados num livro. A mais extrema no leste da Europa. “Albânia, Macedónia, Roménia, estive 22 dias a conduzir com 45 graus. Emagreci nove quilos.” A mais exigente à Islândia, com ventos de 150 km/h. Diz que é “fraquinha”, tem pouca força, mas ganha em habilidade. “Já andei com neve, gelo, gravilha, vento, com trovões a caírem perto de mim. Já nada me assusta.”

Uma mulher sozinha numa mota de 350 quilogramas, é a própria polícia que lhe pergunta onde estão os amigos. “Digo que estou sozinha e ficam escandalizados.” É mais feliz assim. O companheiro, que conheceu quando a socorreu num acidente de mota há 18 anos, não a acompanha. Isso não a trava. Tiram-lhe fotos, oferecem-lhe de comer. “As pessoas são muito simpáticas para uma mulher a viajar sozinha.” Atravessou a Albânia, um dos países mais pobres da Europa, sem gastar um tostão em comida. É alta e livre. Não viaja para fazer quilómetros, faz quilómetros para conhecer aldeias, cidades. E desenha, muito, nas paragens. Ir é o combustível da vida.

A paixão de miúda num Portugal de lés a lés

O primeiro dia do mês chegou e ela fez-se à estrada. Chaves-Faro, acaba hoje. Portugal de lés a lés pela Nacional 2, a mais longa estrada do país, a Route 66 portuguesa. Rita Guerra já a conhecia. Foi outra vez. A voz grave de “Chegar a ti” tem outra paixão para lá da música. Não é de agora. A cantar no Casino Estoril, onde esteve duas décadas, apercebeu-se que muitos bailarinos iam de mota. Também quis. Já antes, em miúda, a única rapariga de cinco filhos, andava com os irmãos à pendura. “Na minha família, havia o gosto por motas, para lá do meio de transporte. Estimavam-nas, poliam-nas. E acompanhava o meu pai nas corridas do Autódromo do Estoril.”

Sempre foi contracorrente. Devia ter 30 anos quando comprou “uma 50, amarela, com ar de brinquedo”. A vida meteu-se no caminho, foi mãe de Diogo, o segundo filho, vendeu-a e só voltou às motas era ele já adulto. Bateram as saudades de sentir o vento na cara. Comprou uma 125. Às tantas, começou a enfiar a maquilhagem e os sapatos na mala e a ir trabalhar de mota. A carta veio depois, aos 47, para aumentar a cilindrada, desafiada pelo filho que se rendeu à paixão da mãe. “As motas mais potentes têm pneus mais largos, ABS, mais aderência à estrada, são mais seguras. Fiquei convertida. Nunca é tarde. Vamos sempre a tempo. E a sensação de liberdade é brutal.” Os cabelos longos deixa-os de fora do capacete, de quando em vez faz uma trança.

Nem um acidente fez a cantora Rita Guerra largar a paixão de miúda por motas. Está a percorrer a Nacional 2, acaba hoje a viagem
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Um acidente na autoestrada, um carro tocou-lhe na traseira, voou e rebolou uns valentes metros, perdeu os sentidos. Ganhou medo. Vendeu a mota, logo no ano em que tinha concerto na concentração motard de Faro, o sonho que concretizou a cantar AC/DC e outros clássicos do rock. “Há um espírito muito positivo nesta coisa das motas.” Não demorou muito a voltar. Está em Oeiras, sobe à Kawasaki Vulcan cinzenta e vermelha. Tem um capacete com ar de Darth Vader. A roupa combina. Já teve motas iguais em verde tropa e em preto e dourado. Experimentou muitas, esta é a menina dos olhos. “Tem 650 de cilindrada, é baixinha, confortável, económica. É para curtir a viagem, a minha mota é um prolongamento da minha pessoa.”

Com o grupo 2 Rodas Solidárias, os passeios servem para recolher bens para associações de animais abandonados. E virou madrinha de uma loja de motas que tem equipa de pilotos a competir. Na mira, vários sonhos: ir até Roma, andar pelos Açores onde viveu a adolescência quando o pai militar lá esteve na base da Força Aérea, e percorrer o Peru. Já foi aos Picos da Europa, sempre por estradas nacionais. Para já, está a percorrer Portugal. Amanhã há de voltar a enfiar-se em estúdio, está a preparar um novo trabalho – um dueto deve sair em breve – e o regresso aos palcos.

“Sento-me em cima dela e fico bem”

Os motoclubes femininos multiplicam-se em Portugal. Do “Princesas do Asfalto” ao “The Litas”, grupo internacional, contam-se vários pelo país. Existem para motivar as mulheres e ajudar a perder medos. Das curvas, do peso da mota, das quedas. Também os há mais pequenos, grupos de amigas que partilham estrada, como as Backbone Babes. Domingo, Matosinhos. Daniela Alves sobe à Keeway Superlight, é uma 125. Veste blusão preto a contrastar com os cabelos loiros compridos e os olhos claros. Lembra-se de andar de mota com o irmão em miúda. “Tínhamos uma relação umbilical. O meu irmão faleceu num acidente de mota.” Foram anos difíceis, com a cabeça na lua e os pés na terra. Aos 18, os pais não a deixaram tirar a carta de mota. “E não tinha o direito de lhes exigir isso.” Mas contrariar o coração já não era possível quando, depois dos 30, vivia sozinha, foi tirar a carta. Comprou a fiel companheira há cinco anos para ganhar experiência. Chama-lhe “motita”. Tem 44 anos, está a juntar dinheiro para comprar uma Harley. Juntou-se às Backbone Babes para fazer estrada pelo país. “Umas têm motas melhores, outras de cilindrada mais baixa. Mas não interessa se é 125, 600 ou 1000.”

Daniela Alves ganhou coragem já com mais de 30 anos para tirar a carta de mota, depois de ter perdido o irmão num acidente
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

Continua a usar o carro para o trabalho, é psicóloga. A mota é para relaxar, antídoto natural. “Sento-me em cima dela e fico bem. Não sei explicar o fenómeno. É a liberdade que se sente.” Redobra cuidados na velocidade, motivos óbvios. Preconceitos? “Ainda há muitas pessoas que acham que uma mulher não domina a mota como um homem. E há sempre aquela ideia de rebeldia, de que são malucas.” Pouco se rala com o que os outros pensam. Em cima das duas rodas, vê mulheres independentes, com força de espírito e personalidade. “Se a mota descair parada, nem o homem mais forte e alto do Mundo consegue segurá-la. Conduzir mota não é uma questão de força física.”

Capacete, luvas, botas, blusão, “agora já há coisas giras para mulher”, tenta evitar as tentações. Enquanto isso, leva a “motita” até Lamego, Braga, país fora. “Às vezes, em autoestradas vou eu a esganar a minha mota para as acompanhar. Ela nunca me deixa ficar mal.” Gosta de emoções fortes, “é um engano que temos muito tempo”. Todos os anos faz visto na checklist da vida. Mergulho, salto de paraquedas. A próxima é andar num carro de rali.

Tirou carta aos 50 e mudou a vida

8.30 horas, domingo. Fernanda Mendes e mais meia dúzia de mulheres preparam-se para arrancar do Largo das Comunidades, lugar da feira em Fafe, para o Douro. Vestem coletes, sobre camisolas rosa, a denunciar-lhes o grupo: Asfalto Friends Fafe. Não é um motoclube feminino, junta homens e mulheres, mas é Fernanda a presidente. E tanto orgulho que tem nisso, em ser uma mulher. Às vezes, escolhem um bom restaurante para almoçar, outras levam farnel para comer na serra. Aponta para trás: “Cabe tudo na mala da mota”.

Fernanda tinha já 46 anos, as duas filhas criadas, quando investiu numa 125, “daquelas de ferro”. Cresceu em cima de duas rodas, o fascínio do pai que lhe passou nos genes e na educação. Só que casou adolescente e adiou o sonho de conduzir motas pesadas, “o objeto mais bonito que pode haver”. Foi aos 50, quando teve que renovar a carta de carro, que decidiu tirar a de mota, para poder conduzir “motões”. Não mais parou. “Nunca é tarde, já fiz muitas viagens. Portugal, Espanha, França, Marrocos.”

Fernanda Mendes é a presidente dos Asfalto Friends Fafe. Tirou a carta aos 50 anos, depois do divórcio. Tem duas motas: uma 1000 e uma 700
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

O começo de uma vida nova, depois de um divórcio. Foram as motas, e os amigos que encontrou, que a salvaram de se afundar na tristeza de um casamento falhado. Um refúgio para a sobrevivência. Na garagem, guarda duas, as suas meninas: a BMW 700 para as viagens e outra BMW 1000 a que não conseguiu resistir, “só para o estilo”. “E já estou a pensar mudar para a 1 200, mas é maior, muito mais pesada. Nas manobras sentimos o peso.” Se pudesse, apontava sempre o GPS para África. “É diferente, o cheiro, a cultura, ser felizes com pouco, andamos por aqueles caminhos onde os carros não vão, conhecemos tudo ao pormenor.” Transpira alma de motard, embora prefira que lhe chamem motociclista. “Já há muitas mulheres a conduzir motas grandes. A mota combina muito bem com mulheres. Isto é o melhor que há, é ser livre.”

A empresária do têxtil descobriu essa liberdade quando se desprendeu de amarras sociais. Dos cabelos arranjados, das unhas de gel. O pai ainda chegou a vê-la na sua 125, à porta do hospital, antes de morrer. Disse-lhe para gozar a vida antes que a vida goze com ela. E Fernanda segue o conselho à risca. Sem desvios. No verão há de ir aos Pirenéus. Repete a sua história vezes sem conta. Influencia mulheres. “Aos 56, já não queremos complicar, queremos tudo prático. Vamos para Marrocos com meia dúzia de t-shirts e dois pares de calças, nem pijama às vezes se leva. A mota ensina-nos a simplificar.” Agora, liga a ser feliz. O namorado conheceu-o no mundo das motas, é presidente do motoclube Conquistadores, de Guimarães. E ela não disfarça a picardia: “O grupo dele tem 27 anos e não tem nenhuma mulher a conduzir. E nós só temos sete e temos dez”.

“Aproveitar todos os dias para sermos felizes”

Cabelo claro, óculos espelhados, botas até à canela e blusão branco e cinzento. Atrás, com o mar do Estoril de fundo, uma Triumph Tiger 900. Acabadinha de comprar, a data é uma capicua: 12-02-2021. Liliana Almeida é uma portuense emprestada a Lisboa há mais de 20 anos. Desde a adolescência, quando um amigo a ensinou a conduzir mota, que tem o “bichinho”. O pai sempre disse que quando se reformasse haveria de comprar uma mota. “Claro que se reformou e nunca comprou. Olha para mim com orgulho pelo sonho concretizado.” Tem 45 anos, sempre teve carta de mota, juntou-a à de carro, fez tudo de enfiada. Mas acidentes fatais com amigos empurraram a ideia para as calendas.

Desde que investiu numa mota para ir para o trabalho, Liliana Almeida nunca mais parou. Agora, conduz uma Triumph Tiger de 900 de cilindrada
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Trabalha em comunicação e, quando se mudou de armas e bagagens do Porto para a capital, andava de metro e de táxi. Até que aos 33, depois de ser mãe, tinha a filha três anos, atrasava-se sempre para o trabalho e acabou a comprar uma maxi scooter em segunda mão. Era só para ir trabalhar, ver se ainda era capaz, mas o fascínio cresceu. Ainda teve uma 900, mas é pequenina, 1,55 metros, e em 2019 deu um passo atrás para uma Honda Rebel 500. “Tenho a perna curta, deixei cair a mota, assustei-me e ganhei medo.” Na 500, chegava bem com os pés ao chão, serviu-lhe para ganhar prática e coragem para comprar a Triumph que conduz agora. Ainda há manobras difíceis, nada que a faça desistir. “Há dois tipos de motards, os que já caíram e os que estão para cair. Agora, já tenho este mindset criado.”

A Croácia está no radar, não fosse a pandemia e já teria ido estrada fora com o namorado, com quem já foi de pendura aos Fiordes, Noruega. O plano é simples: enviar as motas para a Alemanha e percorrer os Balcãs a partir daí. Há pouco, foi até Faro num ápice, também já chegou a ir comprar cerejas ao Fundão. Ainda foge da chuva, tem receio. Uma coisa de cada vez. E sente o fascínio e a admiração. “Como é que uma mulher tão pequenina e feminina consegue estar em cima de uma mota?”, ouve. Uma coisa é certa, enquanto conseguir pegar na mota e dar umas voltas, não a há de largar. “Temos de aproveitar todos os dias para sermos felizes.”