“O Evangelho de Maria Madalena”, o novo livro de Cristina Fallarás

A escritora espanhola é responsável pelo hashtag #Cuentálo (Imagem de Isidre Garcia Puntí manipulada digitalmente)

O mais recente livro de Cristina Fallarás, escritora e jornalista espanhola, é o retrato de uma mulher livre, culta, rica. Um relato polémico, uma história densa, uma perspetiva feminina de uma personagem da Bíblia. É uma obra literária, não é uma obra política, garante. Um pretexto para falarmos de violência e de opressão, do #Cuentálo, do que é necessário contar e do que continua igual.

Esta e não outra é a minha carne. Este e não outro é o meu sangue. Este e não outro é o ar que respiro. Este e não outro é o meu corpo. Eu. Esta sou eu e não outra coisa. Sou a que dá nome. Sou verbo, sou palavra. Ajoelho-me perante mim, perante o meu corpo soberano, leito da minha narração. E nomeio. Nomeio-me. Este e não outro é o meu nome: Maria. Maria Madalena.” O livro abre assim, o livro começa com Maria Madalena no início e no fim de tudo, narradora da história que mudou a História e transformou o Mundo.

É uma mulher livre, culta, rica, bissexual, sem pudor, que tem em si, escreve, “a mesma fúria provocada pela estupidez, pela violência que os homens impõem sobre outros homens e contra as mulheres”. Mulher do mar, mulher de água doce, que resistiu à solidão e ao escárnio, acompanhada por um gigante, um homem sem fala, que é a sua sombra. Uma mulher dona da sua própria história. Um romance audaz, um trabalho de ficção inspirado em documentos históricos e sagrados.

“O Evangelho de Maria Madalena” é o mais recente livro de Cristina Fallarás, escritora e jornalista espanhola, ativista pelos direitos das mulheres, feminista, analista política, comentadora em várias cadeias de televisão, responsável pelo hashtag #Cuentálo. O livro chega a Portugal quarta-feira, 3 de novembro. A partir de Madrid, ao telefone, uma conversa pausada sobre a obra, sobre uma história por contar, sobre mulheres, política, violência, religião, poder. “É uma obra literária, não é uma obra política. Há mais curiosidade literária do que política ou reivindicativa. Simplesmente me permito narrar do ponto de vista de uma mulher. Há uma personagem que não está contada, então vamos contá-la”, diz-nos numa manhã de sol de outono, morno nas primeiras horas do dia, mais quente à tarde e que arrefece antes de anoitecer.

O livro não surge por acaso ou ao acaso. Cristina Fallarás estudou, pesquisou, percebeu que os evangelhos cristãos não narram a alimentação, a gestação, o parto, a higiene, os cuidados, a saúde. “Tudo isto desaparece das narrações porque são coisas tradicionalmente atribuídas às mulheres”, comenta. E quem é Maria Madalena, a única pessoa que aparece do início ao fim da vida de Cristo e que o vê ressuscitado? Em meados do século XX, apareceram os Manuscritos do Mar Morto, textos evangélicos encontrados em cavernas. O papel e a tinta foram analisados por técnicas modernas, confirmou-se a veracidade desses pergaminhos que Cristina Fallarás estudou. “Maria Madalena tinha de ser uma mulher muito rica porque sabia escrever, e nenhuma sabia escrever na altura, e tinha tempo, ou seja, tinha dinheiro.” A escritora quis saber mais, qual era a maior indústria em Magdala no século I, percebeu que era a salga de peixe. Maria Madalena era dona de uma conserveira porque “não havia outra maneira de ser rica.” “Comecei a ver um mundo de mulheres economicamente interessante e decidi estudar a economia da zona.” E não só. “Os alimentos são os peixes e o maior milagre de Jesus é a multiplicação de peixes. Quem tinha peixes? A indústria. Maria Madalena.” Cristina Fallarás estudou também os milagres de Jesus. “Cura leprosos, cura mulheres, cura doentes, cura loucos. Então decidi estudar quem curava na altura. Naquela época, não havia doutores, havia doutoras, as que curavam eram mulheres porque eram as que sabiam de cirurgia, as únicas, porque faziam os partos e tratavam das agressões sexuais das meninas. Então pensei: vou escrever um livro económico.” Um relato polémico. “Os últimos três anos de Jesus, até que o crucificam, são o equivalente a uma grande campanha política, uma grande campanha política”, observa. Maria Madalena tem dinheiro, tem poder, é ela que financia essa campanha. O livro é um evangelho contado por uma mulher que avisa que não escreve dominada pela raiva e pela fúria, a mulher que conheceu o Nazareno e que quer apagar mentiras. Para que nada seja narrado em vão. Na primeira pessoa. Maria Madalena, narradora da sua história, que diz o que vê, pensa e sente. Uma visão feminina e feminista de factos e personagens da Bíblia.

#Cuéntalo, uma memória coletiva

Cristina Fallarás coloca a mulher, que a Bíblia apresenta como prostituta, a mulher que dorme com Jesus, no centro da narrativa. Ela e as mulheres. Quem ordenha as cabras e as ovelhas? As mulheres. Quem amassa o pão? As mulheres. Quem trata dos fornos? As mulheres. “Jesus falava da pobreza e dizia ‘ide aos campos que os senhores vos darão de comer’. Quem dava de comer eram as mulheres que ordenhavam as cabras e amassavam o pão.” O pão não caía do céu. Quem faz os partos, quem trata das mulheres violentadas pelos homens, das agressões sexuais feitas às meninas, do sangue que escorre pelas pernas ou sai pelo corpo, das feridas marcadas na pele? As mulheres.

No livro, Maria Madalena tem pavilhões abertos para receber mulheres e meninas violentadas, muitas que se arrastam, muitas abandonadas ali, algumas que morrem, outras que sobrevivem, todas tratadas pelas mulheres doutoras. E ela conta o que vê e o que sente. “É assim. A injustiça e a maldade apodrecem o interior, como o fazem a usura e a crueldade. Apodrecem as partes suaves do corpo, eu que o diga. Desde menina que vejo em decomposição os úteros das mulheres devoradas pelo ódio e a amargura que os homens despejavam sobre elas”, escreve a escritora pelo punho da narradora.

A escritora espanhola é responsável pelo hashtag #Cuentálo que depressa, em 2018, levou muitas mulheres, e foram milhões, a relatar agressões sexuais de que haviam sido vítimas. Para contar o que nunca havia sido contado. “Para elaborar uma história das mulheres que não existia, construir uma memória histórica, uma memória coletiva, uma memória comum”, revela. #Cuentálo tornou-se um fenómeno mundial. “O #MeToo e o #Cuentálo são, no fundo, a mesma coisa. Pela primeira vez, uma mulher e outra, e outra, e outra… contam o que se passou e, portanto, uma memória construída relato a relato começa a existir, e que os meios de comunicação e da literatura histórica nada haviam contado.” Nas plataformas que permitem fazê-lo. “As redes sociais não necessitam de capital para contar. As mulheres não podem ter uma cadeia de televisão porque não têm dinheiro, porque não as deixaram ter capital. Quando aparecem as redes sociais, permite-se às mulheres narrar o que não lhes era permitido contar.”

O Mundo contemporâneo, de hoje e de agora, continua a falar de agressões sexuais, do papel subordinado das mulheres, das diferenças, das desigualdades. “Em toda a Europa, há mulheres que ganham menos salário para fazerem o mesmo trabalho do que os homens. Eu era subdiretora de um jornal, tínhamos um subdiretor e uma subdiretora, tínhamos o mesmo cargo, a mesma função, e o subdiretor ganhava 30% a mais do que eu. Quando perguntei porquê responderam-me que ele era homem e, como homem, podia ir às reuniões executivas com o conselho de administração.” Quem se sacrifica pelo cuidar dos filhos, pelos cuidados domésticos, pelo cuidar da família e dos doentes, pelos trabalhos não remunerados? A resposta é a mesma. “E tudo isto leva à violência. A agressão à mulher tem a ver com a violação, com o aborto, ou com uma mulher que se separa para ter outra relação com outro homem e, portanto, outra relação sexual”, acrescenta.

E a religião que abafa, que amordaça, que constrói modelos e os perpetua. “Na religião muçulmana, temos a opressão da mulher que é brutal, brutal e evidente. No Ocidente, à medida que a mulher tem acesso à educação e aos meios de comunicação, essa opressão, em teoria, é menos evidente, mas não desaparece.”

Ontem, como hoje, como amanhã, o discurso da igualdade continua a fazer sentido? “Necessitamos constantemente de reclamar a igualdade porque é evidente que não existe. A igualdade entre homens e mulheres não existe de nenhuma maneira”, responde. Em Espanha, milhões de mulheres saem às ruas em manifestações feministas contra a violência. “Não conheço nenhuma associação de homens que convoque uma manifestação quando há um assassinato, que convoque uma manifestação contra a violência machista. Não dão um passo nesse sentido porque creem que esse é um problema das mulheres – e enquanto não assumirem que é um problema próprio não avançamos nada, não conseguimos modificar a sociedade neste sentido. Colocaram uma máscara na violência contra as mulheres, como se não existe. Mas existe, existe, existe”, sublinha. E repete, repete, repete.

A culpa e o castigo, a tirania e a obediência

Cristina Fallarás volta à Bíblia e às três personagens femininas mais relevantes. Nesse livro sagrado da Humanidade, sustenta, “todos os papéis das mulheres estão sexualizados”. Eva, Maria, Maria Madalena. Eva dá a comer uma maçã a Adão. “Para tentá-lo com uma maçã a ter relações sexuais, quando consegue, expulsam-na do Paraíso. A sexualidade da mulher é punida, pela qual devemos sentir culpa, pela qual devemos ser castigadas.” O corpo e a sexualidade da mulher como castigo e como culpa. Maria, virgem, o modelo a seguir. “De novo para castigar as mulheres que não são virgens porque a Virgem Maria é capaz de parir, em teoria, sendo virgem. E como para parir temos de ter relações sexuais, já não se é igual ao modelo de mulher, e se não é igual ao modelo é preciso castigar e, de novo, o castigo e a culpa.” A terceira mulher, a personagem do seu livro. “Maria Madalena tem um papel económico e, por isso, colocam-lhe o papel de prostituta, a única mulher que pode ter relações sexuais, aquela que o homem vai usar.” Séculos e séculos de culpa. Séculos e séculos de castigo.

No livro, Madalena e Jesus estão próximos e distantes. “Ambos queríamos derrubar o poder, as leis, o templo, a obediência, a tirania do castigo e da violência, do castigo e da violência. Eram estas as desculpas. Todavia, as minhas razões para o fazer eram umas e as dele eram outras, muito diferentes. Apesar disso, partilhávamos as armas e a impostura”, escreve a autora. Partilhavam os dias, partilhavam os corpos. “Naquela noite, o Nazareno não foi um homem, mas um parágrafo a seguir ao outro. Eu não fui uma mulher, mas sim o enunciado completo de alguém que está a meio do pensamento”, relata.

Contar a fundação do Cristianismo, a morte destinada e preparada de Cristo, a ressurreição pela voz de uma mulher permite contar o que nunca foi contado numa obra de ficção, em que se percebe o trabalho de pesquisa, os mesmos lugares, as mesmas personagens, os mesmos nomes, os mesmos discípulos, os mesmos traidores. E contar do ponto de vista de uma mulher não é a regra, é a exceção. “As mulheres são histórias como todos os seres humanos. O que se passa é que as histórias do que somos, até ao momento, foram narradas por homens. Agora começa a mudar.”

Os séculos passam, o tempo passa, e a Bíblia fundamenta muito do que se vive hoje. Por vezes, como se nada tivesse mudado. E os dias que correm trazem-lhe preocupações, apreensões, indignações. A sociedade que se cola à Direita e está cada vez mais conservadora, a extrema-direita que conquista poder, o feminismo que se quer culpar e castigar. “Preocupa-me ver como reivindicações clássicas, tanto marxistas como anarquistas, como comunistas, se criminalizaram atualmente. Jamais havíamos pensado que um homem como Trump poderia alcançar o poder. É um homem grotesco, evidentemente racista, evidentemente machista. Em Espanha, jamais tínhamos pensado que haveria mais de 50 deputados da extrema-direita no Parlamento, a terceira força mais votada.”

Cristina Fallarás é uma voz pública, ativa, audaz. A sua voz não se cala perante os direitos ameaçados das mulheres, o seu corpo manifesta-se contra a violência machista. Tem sido ameaçada de morte. Os seus filhos também. Insultam-na na rua, cospem-lhe quando passa. Mudou de casa porque a vida se tornou insustentável e insuportável num certo bairro. Há zonas em Madrid em que anda com medo. Mas não se cala. Não se cala, não se calará. Cristina falará. “O convencimento do que falo e do que digo é muito maior do que o medo.”

“Viveria melhor calada? Não, não viveria melhor calada. Vivo incomodada, tenho medo, sim, mas creio que viver sem dizer o que penso seria muito pior do que ter medo.” Que vida quer viver? Como quer viver a vida? As perguntas que faz para dentro têm respostas muito claras. “Não me vou calar por causa de ameaças e isto é fundamental numa sociedade. Porque quando uma sociedade consegue que uma parte da população se cale com ameaças, ou mesmo com danos físicos ou morte (tivemos uma ditadura em Espanha de 40 anos e uma parte da ditadura ainda permanece na sociedade, na política, na economia e sobretudo no poder judicial – uma parte do franquismo permanece na sociedade e, a somar a isso, a omnipresença e omnipotência da Igreja Católica), o resultado é uma sociedade francamente feia e perigosa.” O resultado, sublinha, é “uma democracia incompleta”. Uma democracia amputada na sua essência. Na voz, no corpo e na alma.