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O espaço não é de todos, mas para lá caminha

Fotos: AdobeStock

Desde o início do século XXI que mais de uma dezena de grandes empresas, de vários pontos do Globo, têm envidado esforços para simplificar a ida ao espaço

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Feitos recentes das empresas de Richard Branson e Jeff Bezos dão fôlego a uma nova era do turismo espacial. O futuro, mais ou menos longínquo, passa pela “democratização”. E pelos hotéis no espaço. E pelos filmes gravados fora da atmosfera terrestre. Eventualmente pela vida em Marte. Mas há ainda uns quantos obstáculos por superar.

A 86 quilómetros da Terra, em plena mesopausa, lá onde o infinito é lei e as temperaturas chegam a roçar os 140 graus Celsius negativos, quatro humanos deambulam sem gravidade que lhes freie os movimentos. Por minutos, voam sobre as cadeiras, agarram-se para se fixarem, empurram-se se precisam de se deslocar, deleitam-se a vislumbrar a Terra através das pequenas janelas da nave. Chega a soar a cena arrancada à ficção, mas não. Aconteceu a 11 de julho, quando o multimilionário inglês Richard Branson e outros cinco elementos da sua Virgin Galactic (dois pilotos incluídos) se reivindicaram autores da primeira viagem turística ao espaço. Dias depois, a 20 de julho, era a vez de outro multimilionário, o americano Jeff Bezos, igualar a façanha, a bordo de uma nave da Blue Origin. Entre uma coisa e outra, um tweet de Branson insinuava-se como pretenso resumo destes dias frenéticos. “Bem-vindos ao amanhecer de uma nova era espacial.”

Aos 74 anos, Fernando Carvalho Rodrigues, o pai do satélite português, confessa ainda ter esperança de ir ao espaço
(Foto: Aníbal Guerra)

Será mesmo? Sim. E não. “É uma nova era, sim, mas uma era que começou muito antes, quando os sistemas de lançamento para fora da atmosfera terrestre começaram a ser desenvolvidos por empresas privadas”, defende Fernando Carvalho Rodrigues, o pai do primeiro satélite português. “O espaço deixou de ser só uma fonte de fazer ciência. Industrializou-se, já há uns dez anos. E claro que quando a capacidade de lançamento começa a estar acessível a instituições privadas estas são muito mais ágeis a fazê-lo do que as estatais.”

Também Tiago Rebelo, diretor da Unidade de Oceano e Espaço do CEiiA (Centro de Engenharia e Desenvolvimento, em Matosinhos), entende estarmos perante uma nova era, “que já se vinha a perspetivar há alguns anos”. E destaca o importante papel da empresa do magnata Elon Musk neste processo. “A SpaceX [fundada em 2002] foi, sem dúvida, a grande pioneira na democratização do espaço. Não em termos de turismo espacial, mas em termos de acesso ao espaço. Foi a primeira na chegada à Estação Espacial Internacional, depois a primeira a apostar na reutilização dos lançadores. E há muito que há astronautas a seguir para o espaço a bordo das naves da SpaceX.”

Tiago Rebelo, do CEiiA, acredita que estamos perante uma nova era, “que já se vinha a perspetivar há alguns anos”
(Foto: Joana da Silva)

Mas desde o início do século XXI que mais de uma dezena de grandes empresas, de vários pontos do Globo – entre as quais a Blue Origin, de Jeff Bezos, ou a Virgin Galactic, de Richard Branson, mas também a Space Adventures, a Roscosmos, a Zero2Infinity, a própria Boeing -, têm envidado esforços para simplificar a ida ao espaço. O resultado, antecipa Tiago Rebelo, será um acesso “cada vez mais facilitado”. O especialista estabelece até um paralelismo com a aviação comercial. “Se pensarmos no transporte aéreo, quando surgiu, também só estava ao alcance de poucos, dos muitos ricos. Entretanto, a tecnologia evoluiu de forma a torná-lo acessível a todos. Assistimos a uma massificação. Penso que este será também o caminho em relação ao espaço, mesmo que possa demorar duas ou três décadas.”

Dias depois, foi a vez da New Shepard (da Blue Origin, de Jeff Bezos) fazer o mesmo. Na imagem, as mãos de Jeff e do irmão, Mark, com uma mensagem especial: “Olá, mãe”
(Foto: Blue Origin/AFP Photo)

Ana Pires, a primeira mulher portuguesa a receber o título de cientista-astronauta, partilha do otimismo. “Julho foi um mês incrível de acontecimentos em termos de voos comerciais, um mês que abre possibilidades infinitas. Costumo dizer que o espaço é para todos e, a partir de agora, tenho ainda mais certezas disso. Abre-se todo um mundo de possibilidades.” No campo da ciência também, espera a investigadora do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC-TEC, Porto). “Espero que, aliada ao turismo espacial, possa haver uma componente muito forte de ciência. Espero que o Governo e as instituições possam investir e ver estes voos comerciais como um bom aliado para levarmos experiências até ao espaço.”

Ana Pires, a primeira mulher portuguesa a receber o título de cientista-astronauta, acredita que as recentes viagens abrem um sem-fim de possibilidades
(Foto: DR)

Também Fernando Carvalho Rodrigues antevê um futuro auspicioso. Com algum humor à mistura, vai dizendo que um dia “vamos levar pessoas para o espaço como vamos para a Madeira”. E que “vai haver filas para mostrar o certificado digital para ir ao espaço”. A própria História diz-nos isso mesmo, sublinha. “Nós, humanos, somos seres que gostamos muito de ter vizinhos. Primeiro, era muito difícil circular, até que Roma inventou a primeira estrada terrestre. E acabámos por ter uma rede de estradas que cobre a Europa toda. Depois, era difícil navegar por mar e os portugueses mostraram que era possível fazer. Hoje podemos correr o Mundo de paquete. Depois, a estrada aérea. Sempre que descobrimos uma estrada, estão lá as oportunidades e os perigos, mas é certo que, às tantas, todos nós vamos passar a andar naquela estrada. E acho que, no caso do espaço, não vai demorar tempo nenhum. As pessoas vão encontrar-se lá. Eu próprio ainda tenho uma grande esperança de lá ir.”

Lançadores reutilizáveis, hotéis, um filme

Rumo à democratização do espaço, é preciso, primeiro, garantir uma redução massiva de custos. E é aqui que entra a importância dos “lançadores reutilizáveis” que têm vindo a ser desenvolvidos por empresas como as de Elon Musk, Jeff Bezos ou Richard Branson. Mas há ainda obstáculos significativos por superar, aponta Rui Moura, um dos primeiros portugueses a concluir o projeto POSSUM, um programa comercial orientado para o estudo da mesosfera e desenvolvido com o apoio da NASA. “Nos próximos dez anos, acho muito difícil [uma democratização do espaço]. Porque o que está em jogo é o custo da energia necessária para elevar um corpo até àquela altitude. E aí não há milagres. Tem de haver desenvolvimentos do ponto de vista da transformação da energia em velocidade.” Estimando que atualmente um voo como aqueles a que assistimos durante o mês de julho esteja a custar perto de um milhão de euros, o docente da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto lembra os largos milhões desembolsados no desenvolvimento da tecnologia capaz de proporcionar tais experiências. “A tecnologia é cara e temos que nos lembrar que durante anos estes magnatas estiveram a investir sem retorno nenhum. Quererão sempre recuperar esse investimento primeiro.”

Richard Branson e outros cinco elementos, dois deles pilotos, da nave VSS Unity (da Virgin Galactic) realizaram um voo suborbital a 11 de julho
(Foto: Virgin Galactic/EPA)

Depois, há o impacto que estas viagens poderão ter ao nível da saúde. Neste campo, Pedro Caetano, que frequentou o curso de Medicina Aeroespacial da NASA, diferencia dois tipos de experiências. “Uma coisa é o turismo feito pela Virgin ou pela Blue Origin, os voos suborbitais, alguém que vai ao espaço por minutos ou por horas. Outra é pensarmos em dias ou meses no espaço.” Se no primeiro caso, a principal questão são os “movimentos de aceleração muito repentinos”, que podem ter impacto ao nível dos órgãos ou mesmo da tensão arterial, em viagens mais prolongadas desenham-se outros problemas. “A radiação é uma questão muito importante, dependendo do número de dias, semanas e meses que se passa no espaço. Temos de ter a certeza do tipo de isolamento que se faz nestas naves. E depois há a microgravidade, que pode ter impacto a vários níveis: perda de massa muscular, de massa óssea, distribuição de fluidos e gases de forma diferente, pressão intraocular muito superior, problemas renais, por exemplo.” Pedro Caetano advoga, por isso, que esta é uma área que requer ainda muita investigação, com muitos dos possíveis efeitos secundários a serem ainda desconhecidos.

Pedro Caetano, que frequentou o curso de Medicina Aeroespacial da NASA, ressalva que ainda faltam estudos para aferir o verdadeiro impacto de eventuais viagens prolongadas ao espaço
(Foto: DR)

Indiferente a isso, a ambição da exploração espacial continua a ganhar asas. Em 2018, a Bigelow Aerospace anunciava a criação de hotéis no espaço, recorrendo a módulos espaciais insufláveis. Já este ano, foi a vez de a Gateway Foundation comunicar a intenção de abrir o primeiro hotel espacial em 2027. Segundo a empresa, a construção do “Voyager Station”, uma infraestrutura de 50 mil metros quadrados, deverá arrancar em 2026. Outro sinal dos tempos é o facto de a competição já ter chegado ao cinema. Depois de, em maio de 2020, a NASA ter confirmado as gravações a bordo da Estação Espacial Internacional, num filme com a assinatura de Tom Cruise, a Rússia veio baralhar as contas. Quatro meses depois da confirmação da agência norte-americana, os russos anunciaram a intenção de serem eles os autores do primeiro filme a ser gravado no espaço. Já este ano, em maio, ficámos a saber que a ideia é que o elenco parta para a Estação Espacial Internacional em outubro.

Elon Musk, da SpaceX, promete colonizar Marte com um milhão de pessoas até 2050
(Foto: Brendan Smialowski/AFP)

Enquanto isso, Elon Musk continua a sonhar em grande, com a promessa de construir vida fora da Terra. A ideia, garante, é povoar Marte com mais de um milhão de pessoas até 2050. Um objetivo que Rui Moura, doutorado em Geofísica, considera algo irrealista. “O Elon Musk tem muitos atributos e eu acho-o uma pessoa fascinante, mas colonizar Marte, em tão pouco tempo, acho que é de mais. Tenho a certeza que é de mais. É preciso ver que uma viagem assim demora cerca de sete meses. Sete meses em que o corpo humano está sujeito a níveis de radiação altíssimos e acaba muito maltratado. Agora imaginemos viagens de ida e volta.”

Rui Moura, um dos primeiros portugueses a concluir o projeto POSSUM, lembra que a tecnologia ainda tem de evoluir consideravelmente até que haja uma democratização do espaço
(Foto: DR)

Já Tiago Rebelo, do CEiiA, confessa-se mais otimista. Admitindo que Musk não é propriamente conhecido por cumprir prazos (“O que não quer dizer que não tenha todo o mérito”), acredita que será possível chegar a Marte em 2030. E quanto a viver lá? “Acho que sim. Claro que há muitas barreiras e muita incerteza, muitas questões por responder. E vai depender de muita coisa, desde logo do investimento que tanto os países como os stakeholders privados fizerem, mas acho possível”, augura, lembrando as tecnologias que já estão em experimentação, em matéria de proteção à radiação e de gravidade reduzida. Ou como desafiou Branson, 86 quilómetros acima da Terra: “À próxima geração de sonhadores, se nós conseguimos fazer isto, imaginem o que vocês podem fazer”.