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O dia do casamento

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Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

O senhor Sérgio tinha uma elegância de gestos que parecia não bater certo com o resto. Obeso, as cuecas saltando das calças pelo rabo, o corpo em forma de pêra. Mas entrou risonho e esvaziou a sala de tensões. Atrás dele, no banco dos réus, estava um homem que movia a testa como se carregasse uma corda ao pescoço. Já tinha pedido desculpa pelos assaltos a carros, das amnésias da droga, admitira todos os crimes mas agora trabalhava e era outra pessoa. O homem-pêra deslizou para a cadeira de testemunhas, que lhe ficou curta. A procuradora começou:

– Senhor Sérgio, o senhor sabe o que está em questão, gostaria de saber onde é que tinha o carro, que marca…

– O meu carro é uma carrinha Mercedes e estava ali estacionada na…

– E qual é a matrícula?

Sérgio disparou algarismos e letras da matrícula, tomando o cuidado de advertir: “se não estou em erro”.

– Estava estacionada no parque ao lado do Vela Latina, aquele restaurante ao pé da Torre de Belém.

– Em que dia é que isto aconteceu?

– Dia 6 do 6 do ano passado.

– … será 6 ou será 4?

– Ahhh… ‘Pere aí, eh, eh, que eu agora ‘tô! Que eu…

Momento de cinema: Sérgio tirou a aliança de ouro do anelar, aproximou-a do nariz, afinou os olhos em microscópio e conferiu:

– Sim, dia 4. Exactamente.

– Mas escreveu no anel?!

– Não, eu fazia anos de casado nesse dia.

– E é preciso ir ver o anel, ó senhor Sérgio! Não sabe a data do seu casamento?!

– Já me bastou aturá-la naquele dia!, ria-se o homem.

Foi para estas ocasiões que se inventou a simpática palavra bruá: “oh, ah, ah, eh, eh, isto é que, oh, oh, etc.!”

– Mas já não é casado?

– Sou, sou!

E para estas ocasiões surgiu a expressão silêncio total. A juíza olhou aquela metade de matrimónio e expirou.

– Bem, vamos em frente, senhora procuradora, se não a testemunha vai-se enterrando!

– Exactamente, concordou a procuradora. Bom, a que horas tinha parqueado lá a viatura?

– A hora certa não sei, mas foi para aí a meio da tarde. Nós demos uma voltinha pelo jardim, fomos comer um gelado, quando voltei já estava com os vidros partidos.

– E tiraram alguma coisa do seu carro?

– Tiraram uns óculos pretos da Ray-Ban.

– Quanto é que valiam?

– Eu tinha-os comprado há pouco tempo, quase 300 euros.

– Houve algum dano nas fechaduras, nas portas?

– Sim, sim, uma amolgadela.

– E no local apurou quem é que poderia ter feito isto?

– Um senhor que assistiu veio ter comigo e disse-me. Tinha ido lá avisar ao posto da GNR, mas a GNR não fez nada.

O homem-pêra saiu e entrou outra testemunha. Queria falar sem o acusado na sala, mas quando soube que este tinha confessado tudo, falou logo: ao parar o carro, desconfiara e vira um homem a partir o vidro. O réu, aliás, partira nesse dia carros dali até à Fundação Champalimaud, imparável.

A procuradora pediu mais uma oportunidade para o ladrão. É verdade que roubara em período de prova, mas queria dar mais uma oportunidade a quem agora trabalha num supermercado e deixou a heroína e o álcool. O arguido agora estava com os molhados. E um sopro fresco, verde, subiu ao terceiro andar do Campus de Justiça, a ponte Vasco da Gama lá ao fundo, toda mergulhada num intenso azul, os pilares na água, as torres dos cabos no céu. E eu pensava no homem pesado, em forma de pêra, de cuecas à mostra no rabo, quando tirou a aliança e se pôs a estudar o interior como um relojoeiro. Foi a 4 de Junho que me casei, e foi a 4 de Junho que nos assaltaram o carro quando fomos comer um gelado de aniversário.

E também eu me senti refrescado das violências, mentiras, sofrimentos a que assisto quando vou contar o que vejo nos tribunais. Aquele homem – se não estou em erro, se não estou em erro – ainda amava a sua mulher, mesmo nos dias enganados.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)