Rui Cardoso Martins

O cachorro voador

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Uma das coisas enervantes que as pessoas têm, quanto ao meu olho de vista, é não perceberem o que uma pessoa está a explicar. Eu já disse tudo limpinho. Aliás, um bocadinho engordurado… não limpei as mãos mas pronto, foi só isso, doutora meritíssima, o que é que eu posso mais explicar se já disse tudo?

Entrei na sala do tribunal e vi um homem-vareta-de-guarda-chuva, magríssimo, e ouvi esta pergunta profunda como um poço:

– O que levou a sua mulher a tentar dar-lhe com o candeeiro?

Logo o homem explicou a cristalina verdade do Mundo, “a sua verdade”, como agora se diz. A mulher tentou dar-lhe com o candeeiro não porque ele lhe batesse, mas porque ela tomava comprimidos e depois foi atropelada e perdeu 5% de capacidade cerebral e depois houve uma tentativa de suicídio e um aborto, não sabe se antes se depois, mas a culpa não foi dele, não foi minha, meritíssima. O homem não vive em casa. Um tribunal mandou-o sair porque a mulher apareceu na esquadra da polícia com balas e pistola que ele tinha no armário, com medo que a usasse nela e nos filhos. Uma arma de alarme modificada para munição verdadeira. Mas o homem apagou as dúvidas:

– Essa arma acompanha-me desde que fui casado. Achei-a quando tinha 13 anos.

– Onde?

– Achei-a num jardim frente ao local de trabalho.

Aos 13 anos, de buço ralo e hormonas borbulhantes, já trabalhava.

– Eu sempre pensei que não era uma arma a sério.

– Olhando para uma arma a gente sabe se é verdadeira, se é a brincar!

– Eu pensava que era, doutora meritíssima. Ao meu olho de vista, era. Eu não percebo nada de armas.

De expressões imaginosas percebe. Olho de vista. Agora, a magna questão de um julgamento de violência doméstica:

– E a situação com o cachorro?

– Era do meu filho Orlando.

– Alguma vez atirou o cão de umas escadas?

Claro que não, o cão caiu. Foi acidente. Com a pandemia, o homem fechou o café. O seu subsídio de desemprego cai todo na conta da mulher. Quer voltar para a moradia das sardinhadas.

– Portanto, esta acusação é toda composta de mentiras.

– Sim.

– Se querem continuar juntos, porque é que a dada altura do processo ela vem a tribunal dizer que o senhor a agredia?

O cão voou, ou foi atirado, segundo a acusação, da altura de um primeiro andar.

– Como é que o cão caiu das escadas?

– Eu tive uma discussão com o meu filho, que queria sair de casa. Eu, como tinha as mão engorduradas de uma sardinhada, a caixa escorregou-me…

– Mas porque é que pegou na caixa?

– Para dar a caixa ao meu filho Orlando.

– Mas o seu filho já tinha as malas prontas?

– Não, só estava a dizer que se ia embora.

– Mas porque é que agarrou na caixa com o cachorro!?

– Porque o cão era do Orlando, não era meu!

– Mas porque é que agarrou na caixa do cão em vez de ir ao quarto agarrar-lhe as malas?!

– Porque… eu estava a assar as sardinhas. Depois eu não limpo as mãos e venho com a travessa das sardinhas.

– Então, mas se tinha a travessa, como é que agarrou na caixa?

– Eu deixei primeiro a travessa na cozinha.

– E como é que a caixa lhe escorregou das mãos?!

– Porque tinha gordura nos dedos, das sardinhas!

Perceberam ou é preciso explicador? Ah, e “o cão nem a partir nada chegou, foi só um ferimento penso eu que na pata traseira”. Era um cachorrinho bull terrier que aos dois meses de vida aprendeu a voar. A mulher entrou e disse que não queria dizer nada. A procuradora do Ministério Público ficou nuns nervos.

– Sabe que ficará gravemente prejudicado, o processo?

– Sim.

– Sabe que tudo o que disse antes não poderá ser avaliado?

– Sim, eu sei.

A mulher saiu sem olhar para o homem. Não viu a aliança gorda de ouro no dedo fino do marido. Mas lá está ela, toda bonita.

A esta hora, já ele pode ir dar banho ao cão.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)