A “geladeira”, o “trollar” ou o “policial” estão a entrar a toda a velocidade na fala das crianças à boleia de youtubers brasileiros de conteúdos infantis. As modas da oralidade sempre existiram e a influência do país irmão já cá anda há umas décadas. Fomos saber se há motivos para alarme.
Os olhos arregalados e expressivos, a fala despachada e a brincadeira é num mar de bonecos vestidos de t-shirt e boné azul, tal e qual o youtuber brasileiro Luccas Neto. Maria Luís fala pelos cotovelos e, no meio de um discurso articulado a enganar os quatro anos de idade, entram palavras como geladeira, mamadeira, picolé, sorvete ou trollar. O português do Brasil está a invadir o vocabulário das crianças à boleia de influenciadores infantis do outro lado do Atlântico que inundam o YouTube e acumulam dezenas de milhões de seguidores.
As respostas de Maria Luís têm pressa, chegam num ápice. “O meu youtuber preferido é o Luccas Neto porque ele é divertido e ensina que temos de pôr o lixo no caixote para não sujar o ambiente.” O maior influenciador infantil do Brasil tem 29 anos e salta fronteiras. Lança episódios em que recria momentos do dia a dia, na escola, no supermercado, em brincadeiras no exterior, com várias personagens. Produções que envolvem uma equipa enorme e que já chegaram à Netflix e ao merchandising, com brinquedos, mochilas, jogos, discos, livros. E há mais exemplos de youtubers infantis do Brasil a ganhar terreno por cá, como Maria Clara & JP. O fenómeno aterrou em força em Portugal, é transversal no mundo dos mais pequenos.
Na agenda de Maria Luís, que mora em S. João da Madeira, o dia 20 de novembro está reservado. É o musical de “Luccas Neto e a Escola de Aventureiros” em Guimarães. O youtuber esgotou aí duas sessões e já abriu a terceira. Em Lisboa, idem. Na costureira, a mãe Maria João Lima já tem uma fatiota “igual à da irmã do Luccas Neto” a ganhar forma para Maria Luís vestir no dia do espetáculo. Ou melhor, do “show”. E a pequena, que parece carregar toda a energia do Mundo, leva as músicas do youtuber na cabeça, sabe-as de cor e salteado, e as coreografias também.
“Quando a Maria Luís começou a ver estes vídeos, notámos que começou a usar algumas palavras de português do Brasil. Não fala com sotaque, mas vai introduzindo algumas expressões”, revela Maria João. A solução mais simples não foi pôr-lhe travão em proibições aceleradas, foi antes explicar que em Portugal não se diz “banheiro” mas sim “casa de banho”. “Os vídeos até são pedagógicos. Dou por ela a brincar sozinha e a falar sobre o ambiente. E embora não ache graça nenhuma a ouvi-la dizer estas palavras, a verdade é que ela evoluiu muito na fala, porque vai reproduzindo o discurso”, constata a mãe. O fenómeno, acredita Maria João, “tem a ver com o facto de a língua brasileira ser muito mais sonante e de não haver oferta infantil portuguesa no YouTube”. Mas Maria Luís, de tão desenvolta, faz os pais baixarem os alarmes, já sabe dizer palavras com o mesmo significado em português do Brasil e em português europeu.
As modas, as influências, a oralidade
E parece ser esse o caminho: não corrigir, mas sim explicar aos mais novos a diferença. Pelo menos é nisso em que acredita a linguista Margarita Correia, que não entra em histerismos com o abrasileirar da fala. “Vejo este fenómeno não só como linguista, mas também como avó. Tenho um neto que chama a mãe de mamãe e o pai de papai.” Os desenhos animados dobrados em português do Brasil também são sintoma de uma tendência que diz ser “normal e enriquecedora”. Basta rebobinarmos umas décadas para o tempo em que as telenovelas brasileiras, como “Gabriela”, inundaram a televisão portuguesa. “Nessa altura, já se dizia que a língua estava em risco e sobreviveu. O mesmo aconteceu com as influências do inglês. Depois o pânico veio com as abreviaturas que se usavam nas SMS, as crianças iam deixar de saber escrever. Nada disso aconteceu. E é muito saudável ouvirem outras variantes do português.”
As modas da oralidade raramente têm impacto na língua escrita. Mas é certo que já bebemos muita influência do Brasil. A expressão “nem que a vaca tussa”, importada das novelas brasileiras, é prova disso. “Eles são 200 milhões, nós somos dez. É inevitável. E não há que combater as influências. Há mais de sete mil línguas no Mundo, a língua portuguesa é provavelmente a quinta mais falada. Como é que pode estar em risco? A evolução de uma língua resulta da evolução da sociedade que a fala.” E num português vivo que cresce à boleia das modas de cada época, Margarita Correia aponta umas quantas. Foi Alexandra Lencastre no programa “Na cama com”, no início dos anos 90, que introduziu a expressão “à séria” em vez de “a sério”. “E foi uma reportagem da TVI que aproveitou o título de uma canção para chamar música pimba à música popular. E não é uma expressão enriquecedora?”, questiona.
A professora de Português Filomena Viegas também não dramatiza. O “policial”, o “café da manhã” ou a “geladeira” até a podem incomodar, mas sabe que o pequeno Portugal não pode lutar contra um gigante Brasil. “Não vale a pena remar contra uma maré de milhões, isto vai continuar a acontecer.” De purista tem pouco, a verdade é que já dizemos “email” em vez de “correio eletrónico” ou “site” em vez de “sítio”. “Também enraizamos o bué. E há problema? Não é isso que faz uma língua. O caminho é explicar que o youtuber diz assim e nós cá dizemos assado. Perdemos tempo a ensinar? Sim, mas vale a pena tirar partido disto, é uma oportunidade para a aprendizagem. Mesmo em Portugal, temos variantes, no norte, no sul, nas ilhas.”
Numa idade em que absorvem tudo, ainda antes da entrada na Primária, as crianças são “pequenos aspiradores de palavras” e proibir não é solução. Os pais, aconselha, devem continuar a falar no português europeu. “Os miúdos têm capacidade para aprenderem várias línguas ao mesmo tempo e, quanto mais variantes ouvirem e isso lhes for explicado, mais vão aprender.”
“Já sei que gramado é relva”
Henrique Guerra está em casa, em Lisboa, agarrado ao tablet a ver o youtuber brasileiro Robin Hood a ensinar a jogar Minecraft. Tem cinco anos. “Ele está a jogar e vejo para aprender. Mas os meus pais já me ensinaram que gramado é relva”, atira o petiz. Deixa logo tudo em pratos limpos, como quem quer vincar, no meio de uma timidez apressada, que sabe distinguir o português do Brasil do português europeu. Os pais, André Guerra, bancário, e Patrícia Luz, administrativa, foram corrigindo algumas palavras. “Não é querer castrar. Mas ele dizia reais em vez de moedas, marrom em vez de castanho, goleiro em vez de guarda-redes e quisemos ensinar. Não para dizer que está errado, mas para explicar que no Brasil diz-se de uma maneira e em Portugal diz-se de outra. Até porque ele tem amigos brasileiros no pré-escolar e já percebe a diferença”, comenta o pai.
O caminho no YouTube começou aí há uns dois anos, quando Henrique descobriu o Luccas Neto. Desde então que os youtubers brasileiros, que falam alto e bom som – para irritação dos pais -, entraram pela porta de casa da família sem pedir licença. André e Patrícia já os reconhecem só de os ouvir entoar no tablet. E os brinquedos que abundam nos vídeos também trazem atrelados pedidos constantes. “Acho que os conteúdos até são interessantes e podem influenciar positivamente. Mas há uma grande vertente comercial, virada para o consumismo, e isso, sim, tentamos combater”, diz André. A entrada de algumas palavras do Brasil no vocabulário de Henrique não os assusta, mas o casal conhece o caso de uma menina que só fala com a pronúncia brasileira e talvez aí o fenómeno ganhe outra escala.
Os riscos e quando é preciso intervir
Segundo a psicóloga Manuela Cameirão, é aí que está o risco. “Já me deparei com casos desses, sobretudo em contexto pré-escolar, é nessa faixa que o fenómeno mais está a acontecer. Duas crianças, muito fãs de youtubers brasileiros, com total ausência do recurso ao português de Portugal.” Sabe que os vocábulos do Brasil já começaram a entrar no país há uns bons anos, “e isso é normal e desejável, as línguas estão vivas”. A preocupação chega quando vê crianças que falam integralmente o português do Brasil. É o nível extremo. “Porque uma criança que cresce em Portugal, filha de pais portugueses, que está exposta ao português europeu diariamente, falar português do Brasil de forma intensiva significa uma grande exposição, tempo excessivo no YouTube. Quer dizer que não está a trabalhar a motricidade e que passa muito tempo sozinha a interagir com um aparelho eletrónico.”
A psicóloga antevê potenciais alterações ao nível da socialização e o risco de dificuldades de aprendizagem na hora de entrar no 1.º Ciclo, nomeadamente na leitura, que implica associar sons da fala a letras. “Os fonemas numa variante e noutra são diferentes. E mesmo na escrita, a língua difere muito na construção de frases. É o exemplo do dá-me ou me dá.” Para os casos em que a criança já só fala com o vocabulário e o sotaque típico do português da outra margem do Atlântico, Manuela Cameirão alerta que os pais podem procurar ajuda de um terapeuta da fala. “Mas isso deve acontecer antes de entrar para a escola. A partir dos sete anos, pode ser difícil reverter. E, mesmo querendo, a criança já será muito resistente à intervenção.”
O fenómeno tende a crescer – também já se faz notar entre adolescentes e jovens -, é o mundo do YouTube infantil em ascensão. E unânime, entre os especialistas, é a ideia de que importar algumas palavras do Brasil para a fala não é problemático. Tal como Maria Luís faz. No próximo domingo, a pequena grande fã do Luccas Neto faz cinco anos. Antes disso, a irmã mais nova, que ainda está na barriga da mãe, deve nascer. Mas o entusiasmo maior dos próximos tempos ela não tem dúvidas qual é: “Ir ao ‘show’ do Luccas Neto. Acho que ele vai saltar e cantar muitas músicas”.