A resiliência de um menino de dois anos e meio que aguentou a fome, a sede e o cansaço de dez quilómetros, durante longas 36 horas perdido nos montes, deixou o país rendido e surpreendeu até os especialistas. O caso virou odisseia de mediatismo e saltou as fronteiras da Beira Baixa. Os finais felizes são comuns em desaparecimentos espontâneos e o empenho das autoridades tem dedo nisso. Mas as agulhas viram-se para os pais de Noah. Que método é este de educação? Liberdade ou negligência? E como se supera a culpa?
Numa freguesia rural de menos de 200 habitantes, 10% deles imigrantes que foram em busca de uma vida ligada à Natureza, ecoa a história de um milagre. Quinta-feira, ao cair da noite, em Proença-a-Velha, 36 horas depois do desaparecimento do menino de dois anos e meio, num mato, perdido entre javalis e veados, depois de ter percorrido talvez dez quilómetros, Noah foi encontrado, desidratado, com escoriações, mas bem. A estranheza pela resistência de uma criança que cresceu, afinal, de pés enfiados na terra, deixou um país inteiro rendido. Os finais felizes em casos de desaparecimentos espontâneos – a tese de crime não parece caber – são comuns, mas Noah, de tão pequeno e autónomo, espantou.
Quarta-feira, aí entre as 5 da madrugada, quando o pai saiu para trabalhar num terreno agrícola ao pé de casa, e as 8, o menino terá saído com a cadela Melina, sem que a mãe e a irmã de seis anos dessem por isso. Saiu com a roupa com que dormiu, calçou as galochas azuis para ir ter com o pai. Já era habitual, a porta ficar destrancada e a ida de Noah sozinho até ao campo. Desta vez, não chegou a encontrar o pai. Eram 8.30 horas, a mãe comunicou o desaparecimento às autoridades. E a longa odisseia de mediatismo começou aí. Uma criança tão autónoma? E os pais não fecham a porta à chave?
“Com dois anos e meio, do ponto de vista motor, as crianças são muito despachadas. Já têm autonomia para andar, trepar, explorar, são naturalmente curiosas. Não há nada que impeça isto que aconteceu. Mesmo a questão do calçar-se é fruto da autonomização que a família deu à criança”, explica o pediatra Hugo Rodrigues, que defende que os irmãos mais novos são sempre mais desenvoltos. Nestas idades, é certo, os miúdos precisam de ajuda nesses pequenos afazeres, mas “a rotina desta criança assentava muito na liberdade” e autonomizar é uma mais-valia. “Deve incentivar-se. Permite que se desenvolvam. Aqui correu mal, porque faltou alguma supervisão. Uma criança não consegue avaliar os riscos. Aí é que está o problema, não se pode dar liberdade total.”
A resiliência, a liberdade ou a negligência
A história dos pais a viver numa terra onde os perigos não parecem espreitar é tida para aqui. A portuguesa Rita e o uruguaio Leandro já viajaram pelo Mundo numa carrinha movida a óleo alimentar. A mãe trabalhava na área audiovisual em Lisboa, o pai era chef em restaurantes. Trocaram a cidade pela aldeia da Beira Baixa, em 2017, à procura de uma vida simples, longe de padrões convencionais. Ela trabalha num turismo rural, ele no campo. Vendem em feiras locais produtos biológicos. Criam os filhos no meio da liberdade.
A Sociedade Portuguesa de Montessori, a propósito do caso, já veio defender o método de ensino que promove a independência funcional das crianças desde o nascimento. Beatriz Vasconcelos, a presidente, conhece e sabe que a família de Noah segue o método criado pela psiquiatra Maria Montessori no início do século XX. “Gabriel García Márquez e os fundadores da Google foram educados segundo esta metodologia, o príncipe George também”, diz. Divide-se por faixas etárias. Por exemplo, dos zero aos três anos, incentiva a criança a vestir-se e a comer sozinha. Dos três aos seis, promove atividades do dia a dia, como descascar alimentos, fazer a cama. “Há pessoas que praticam em casa, e também há escolas de Montessori.” Há duas no Porto, até aos seis anos, duas em Lisboa e duas no Algarve, até aos 12. “Não nos é estranho alguns comportamentos que foram tidos como impossíveis para uma criança daquela idade. E tendencialmente reagem melhor à adversidade”, comenta. O método que educa para a autonomia estende-se até aos 18 anos, mas não é reconhecido pelo Ministério da Educação cá.
Ainda assim, o psicólogo clínico Manuel Coutinho acredita que “nesta idade, o excesso de autonomia associado a uma baixa vigilância pode expor a criança a uma situação de perigo e ter por trás alguma negligência”. Foi aberto um inquérito pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). E Coutinho concorda que a família deve ser acompanhada.
Sem indícios da intervenção de terceiros no desaparecimento, a resiliência do pequeno espantou o também secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança (IAC). “Tendo em atenção a idade, o estado de desnutrição e desidratação, o estado do tempo, deixa-me alguma reserva como é que a criança percorre cerca de dez quilómetros e, no final, não apresentava sinais de ter passado por condições tão adversas.” Mas reconhece que há crianças com uma resistência excecional. “Admito que uma criança que vive no meio rural adquira um conjunto de competências que as crianças que vivem em meio urbano só mais tarde adquirem, porque para dar um passo estão sempre acompanhadas por um adulto.”
Também Patrícia Cipriano, advogada e presidente da Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas (APCD) que fundou em 2007, depois do caso Maddie, se surpreende. “Não nos podemos esquecer que esta criança viveu sempre num ambiente virado para a liberdade. Mas ter conseguido desenvencilhar-se sozinho num terreno extremamente acidentado e atravessado pelo rio Torto, com pedras escorregadias, durante 36 horas sem comer, beber, cair, sem partir uma perna… Adultos que fizeram o mesmo trajeto ficaram muito cansados, picados da vegetação. Isso é estranho, de facto.” As conclusões cabem à avaliação médica. Noah teve alta do hospital de Castelo Branco na segunda-feira.
Mas o pediatra Hugo Rodrigues resume bem quando diz que “há crianças que têm quase superpoderes”. “Para nós, adultos, imaginar-nos numa situação dessas já é difícil. Parece ser uma criança muito resiliente que se foi entretendo a brincar. O tirar a roupa é normal [Noah foi encontrado nu], nestas idades gostam mais de andar despidas e, se não tiverem mais que fazer, inventam. O gerir a fome, a sede, o cair da noite é que é o mais surpreendente.”
Coordenação de meios, finais felizes
O caso é exemplo da atuação das autoridades num desaparecimento, segundo Patrícia Cipriano. “Tudo aquilo que foi feito está correto e seguiu as melhores práticas. Houve uma coordenação extraordinária, nem sempre acontece.”
A operação foi coordenada pela GNR nas buscas e pela PJ na investigação criminal por se tratar de um menor de 12 anos. Logo depois de ser comunicado o desaparecimento, e porque as primeiras horas são fundamentais, foi estabelecido um raio de ação de cinco quilómetros a partir da casa da família para as buscas. Mais tarde, foi alargado o perímetro e o número de elementos envolvidos nas buscas, que chegou aos 140 militares. Além de cães, motas, viaturas todo-o-terreno, mergulhadores para a zona de água, drones com câmaras de infravermelhos.
“Foi feita avaliação de risco, montado um centro de operações, com coordenação entre bombeiros, polícia e comunidade. Todos os minutos contam e a população tem de ser envolvida, algo que não se fazia há uns anos e isso foi muito importante. De tal forma que foram populares que encontraram o menino”, sublinha Patrícia Cipriano. Houve uma corrente de amor com gente à procura de Noah, uma centena de populares a pôr pés ao caminho ao lado de militares. Já estava previsto um helicóptero entrar em ação, caso o menino não aparecesse. A cada hora que passa num caso de desaparecimento de uma criança, a probabilidade de a encontrar com vida diminui.
O final foi feliz. E Noah não é caso único. Em 2014, o bebé Daniel, de 17 meses, desapareceu na Madeira durante um almoço em casa de familiares. Só foi encontrado três dias depois, muito perto de onde tinha desaparecido, na Calheta. Encharcado e com sinais de hipotermia. A mãe ainda chegou a ser acusada de encenar o desaparecimento do próprio filho para o poder vender, mas foi absolvida pelo tribunal.
Em 2016, o pequeno Martim, de dois anos, desapareceu da casa dos avós maternos, em Ourém, quando estava a brincar no exterior da habitação e a avó se ausentou por breves instantes. Foi encontrado pela GNR, numa zona florestal, ao fim de longas 24 horas de buscas.
Um ano depois, na Póvoa de Lanhoso, um menino de ano e meio aguentou 15 horas até ser encontrado por uma vizinha que o ouviu a chorar, num terreno próximo de casa. Terá saído pelo próprio pé, o portão estaria aberto e andou a vaguear.
A APCD, que dá apoio jurídico e psicológico nestes casos, diz que os desaparecimentos acidentais não são muito frequentes e acontecem normalmente em contexto de férias de verão, no exterior das habitações, em praias ou grandes multidões. Os finais felizes são comuns. No ano passado, a PJ recebeu 1 011 participações de desaparecimento de crianças, quase três por dia, um pouco mais do que em 2019 (1 004). A maioria dos casos está relacionada com adolescentes, fugas de curta duração, mas os inspetores também procuraram 53 crianças com menos de dez anos. Aqui, os raptos parentais são a grande fatia.
A pp que tarda, o kit genético que não é usado
Em Portugal, pode recorrer-se à Linha da Criança Desaparecida (116 000) que pertence ao IAC e funciona 24 horas por dia. E a APCD há seis anos que espera por financiamento para uma aplicação para telemóvel – Miúdos e Graúdos no Radar – que recorre à georreferenciação e ajudaria nestes casos. “Esta realidade só é visível quando acontece uma desgraça. É uma causa extremamente acarinhada no resto da Europa, em Portugal não temos apoio nenhum”, critica Patrícia Cipriano, que ainda faz parte da organização internacional AMBER Alert Europe. Além da app, a APCD lamenta a falta de adesão ao Kit de Identificação Genética criado em parceria com a GNR, “único na Europa, quando uma criança desaparece, é essencial ter uma amostra de ADN”. O kit pode ser comprado à APCD, que envia por correio. Custa cerca de 25 euros. Traz informação sobre como deve ser usado, uma zaragatoa para retirar saliva e um cartão para armazenar a informação genética. Pode ser guardado durante mais de 20 anos.
Ninguém parece duvidar da aflição de uns pais em desespero, que acabaram enredados em especulações e remorsos. “Acredito que estes pais, por muito liberais que sejam, estejam com um sentimento de culpa muitíssimo grande. Trinta e seis horas é muito tempo e vão precisar de apoio psicológico”, aponta Patrícia Cipriano. Quando tudo acaba bem, superar é mais fácil, mas não é de um dia para o outro. “Vai demorar. Eles agora vão tornar-se super protetores. Por isso é que é preciso serem acompanhados.”
O pediatra Hugo Rodrigues nem consegue calçar os sapatos do medo destes pais. Tudo indica que são família estruturada. Prova disso foi uma população unida em defendê-los com unhas e dentes. “Na criança, acho que não vai deixar marcas. Até porque as memórias abaixo dos três anos, a existirem, são muito ténues. A curto prazo, pode haver alguma ansiedade de separação, dificuldade em estar sozinha. Vai deixar mais marcas aos pais. Porque o entendimento é muito mais racional. Vão ter dificuldade em dar tanta liberdade.”
Para Manuel Coutinho, há pais e pais. “Para aqueles que sentem uma grande responsabilidade perante uma situação destas, pode ser muito traumático.” O caminho vai voltar a construir-se aos poucos, só que a luz vermelha há de piscar sempre, para todos os que passam por semelhante, ao mínimo desaparecer da vista.