No rasto das vacinas [c/ vídeo]

No meio do nada, mas perto de tudo, há um armazém onde entram e saem milhares de frascos com a solução contra a covid-19. Ali trabalha-se dia e noite, por vezes a temperaturas negativas, debaixo de uma logística complexa, onde nada pode falhar. Em Arazede, a NM acompanhou a chegada de uma encomenda da Moderna e seguiu-a até ao braço de Alzira, em Ermesinde.

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Dia 18, quinta-feira, 20.30 horas. Está tudo a postos à porta do armazém do Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH), quartel-general das vacinas para a covid-19. A GNR barra a entrada, há dois guardas de metralhadora em punho e um pastor alemão irrequieto, seguro pela trela. Já escureceu e o frio começa a sentir-se naquele descampado, em Arazede, Montemor-o-Velho, mesmo à saída da autoestrada. O camião que carregou as caixas de vacinas da Moderna no aeroporto de Lisboa está a caminho, mas vem ligeiramente atrasado. A monitorização é feita em tempo real, o GPS indica cada metro percorrido, não há surpresas. Minutos depois, ouvem-se as sirenes da escolta policial. A luz da estrada incide sobre as letras gordas na lateral do pesado: “Transportes Cá Vai Sintra, Lda.”. A gargalhada é geral. Ninguém imaginaria a importância da carga que vem ali dentro. A centenas de quilómetros de distância, a filha de Alzira Cunha recebe um telefonema do posto de saúde. É para a mãe, de 83 anos, ser vacinada, segunda-feira à tarde, na Unidade de Saúde Familiar (USF) de Ermesinde. “Qual é a vacina? Moderna.”

Um camião insuspeito transporta a valiosa encomenda da Moderna desde o aeroporto de Lisboa até ao armazém do SUCH, em Arazede, Montemor-o-Velho. O percurso é feito com escolta e a descarga decorre sob o olhar atento das autoridades
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

A traseira do camião aproxima-se da rampa e a empilhadora inicia o trabalho de descarga. Oito caixas, com 5 760 frascos, são rapidamente levadas para dentro da câmara frigorífica, a menos 20 graus centígrados. Mal a porta se abre, uma viagem ao Ártico. É ali dentro que a diretora técnica de farmácia Joana Bigares Grangeia e o resto da equipa têm de trabalhar. Usam blusões quentes, carapuços, luvas e botas, mas nada chega. Só dá para ficar dentro da câmara alguns minutos, antes que as pestanas comecem a congelar. O trabalho tem de ser rápido e eficaz. É preciso abrir as caixas e confirmar se está tudo em condições, se as quantidades condizem com o esperado, e desligar os “data loggers”, uns pequenos dispositivos que vêm agarrados às embalagens e registam a temperatura das vacinas desde o início da viagem, em Bruxelas. Qualquer oscilação fica gravada e pode ser observada no computador. Se for relevante, ao ponto de pôr em causa a estabilidade do fármaco, o lote tem de ficar em quarentena para posterior análise.

A farmacêutica Joana Grangeia confirma se as oito caixas, com 5 760 frascos, condizem com o esperado
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

As vacinas da farmacêutica norte-americana Moderna têm de ser transportadas, armazenadas e expedidas a 20 graus negativos. O processo de descongelação só começa no ponto de vacinação, em frigoríficos com temperaturas entre os dois e os oito graus. Ali podem ficar 30 dias até serem inoculadas, mas nunca leva tanto tempo porque a pressa de imunizar a população é muita. Os frascos que acabaram de chegar da Bélgica são expedidos na mesma madrugada para serem entregues nos centros de saúde logo pela manhã. Joana e a equipa voltam à câmara frigorífica de noite para separar as unidades de acordo com as encomendas e as rotas, colocá-las em caixas térmicas com termoacumuladores bem gelados.

Arcas a menos 80 graus davam para guardar 1,6 milhões de doses

Para as vacinas da Pfizer/BioNTech, os requisitos são ainda mais exigentes. Acondicionadas em gelo seco, chegam entre os 60 e os 80 graus negativos. Não há tempo a perder e a transferência das caixas para as arcas tem de ser feita em tempo recorde. “Pela complexidade do processo, há uma equipa do Infarmed que vem sempre acompanhar a entrega”, explica Joel Azevedo, administrador do SUCH. Na sala onde estão armazenadas as vacinas da Pfizer, há cinco arcas frigoríficas que congelam a 80 graus negativos. No total, poderiam armazenar 1,6 milhões de doses, mas a capacidade máxima nunca é esgotada porque as boas práticas exigem redundância.

Dentro da câmara frigorífica, a 20 graus negativos, a equipa conta e verifica as condições de todo o material. Mais tarde, voltam à mesma sala gelada para selecionarem os frascos para a distribuição
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

De cada vez que a farmacêutica Joana abre a porta de uma das arcas, o cronómetro do computador dispara. Três minutos é o tempo máximo de que os técnicos dispõem para tirar e voltar a pôr os frascos. Na preparação das encomendas, os frascos são manipulados noutra sala frigorífica, um pouco maior do que a da Moderna. Ali, a uma temperatura mais suportável – entre os dois e os oito graus -, estão também armazenadas as vacinas da AstraZeneca. A partir do momento em que os frascos da Pfizer entram na câmara, inicia-se o processo de descongelação e os minutos correm. As caixas têm de ser expedidas o mais rapidamente possível porque o líquido só dura cinco dias descongelado. Para ganhar tempo no destino, o transporte começa pelas três ou quatro da manhã.

Em todo o circuito, as vacinas são sempre acompanhadas por “data loggers”, dispositivos que monitorizam a temperatura e guardam a informação, que pode ser visualizada num computador. Em caso de oscilações relevantes, é feito o reporte à marca e os frascos ficam de quarentena
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

A temperatura das arcas onde estão as vacinas da Pfizer é controlada num dos computadores da sala de operações, no piso superior. Aquele espaço é um dos “cérebros” da receção, armazenamento e distribuição rápida de todas as vacinas que chegam ao país. O outro “cérebro” está no Ministério da Saúde, em Lisboa, e estão interligados pelo sistema informático. Em qualquer um dos dois, dá para seguir todo o processo em tempo real. Em Arazede, Joel Azevedo mostra os pontinhos que percorrem o mapa de Portugal projetado na parede. São os veículos a terminar as rotas, o último está no distrito de Bragança, já bem encostado à fronteira. “Estamos a quatro horas de qualquer ponto do país”, nota o administrador. Mas as viagens são bem mais longas, já que envolvem várias paragens.

As encomendas são preparadas durante a madrugada para que as carrinhas possam chegar aos centros de vacinação espalhados pelo país logo pela manhã
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Os trajetos que estão a terminar foram escolhidos no dia anterior, alterados e validados pelas forças de segurança. Evitam-se as repetições, fazem-se desvios e há estradas menos usadas. Ainda assim, para reduzir riscos, a maioria das rotas tem escolta da GNR e da PSP, uma organização que também tem de ser coordenada com a distribuição.

O “plano mestre” e os imprevistos

Carlos Branco, diretor de operações do SUCH, vai passando as folhas com tabelas no ecrã do telemóvel. Já passa das 21.30 horas e o “plano mestre” do dia seguinte está finalmente fechado. É naquele ficheiro que está toda a informação relativa à receção, armazenamento e expedição das vacinas para os hospitais, centros de saúde, lares e afins. As encomendas feitas pelas administrações regionais de Saúde, a distribuição aprovada por Lisboa, as quantidades e horas de chegada, as rotas que as carrinhas vão realizar, entre muitos outros dados – está tudo naquela base de dados, construída de raiz pelo SUCH para dar resposta ao Plano de Vacinação contra a Covid-19. As alterações de última hora são as que dão mais dores de cabeça: é o lar que já não vai vacinar porque teve um surto de covid-19 e é preciso encontrar alternativa para aqueles frascos já descongelados; é o centro de saúde que afinal quer vacinas da Pfizer porque tem utentes para a segunda toma; são os pequenos stresses informáticos que aparecem de vez em quando. Imprevistos que é preciso ir resolvendo para chegar ao fim da jornada com a missão cumprida.

Na sala de operações, monitoriza-se a distribuição das vacinas em tempo real, controla-se a temperatura das arcas e preparam-se as rotas para o dia seguinte
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Nas instalações do SUCH em Montemor-o-Velho (adquiridas para servir a área alimentar dos hospitais e, entretanto, adaptadas para a logística das vacinas), trabalha-se noite e dia. Há dez pessoas no armazém, outras dez na sala de operações, incluindo elementos das Forças Armadas e consultores do Instituto Kaizen, duas farmacêuticas e cerca de 20 motoristas. São poucos e trabalham em espelho para garantir o funcionamento permanente, mesmo em caso de surto. Por ora, os recursos têm sido suficientes, mas já se contam muitas noites em branco.

Cerca de 15 horas depois de entrar no armazém do SUCH, a encomenda chega à Maia
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Naquela madrugada, o plano mestre “manda” distribuir 625 frascos da Pfizer e 1 462 da Moderna, num total de quatro rotas, cada uma com cerca de uma dezena de paragens. “Já chegaram a sair 30 mil frascos numa só madrugada, em 20 rotas diferentes”, enfatiza Carlos Branco. A suspensão temporária da vacina da AstraZeneca baixou o ritmo mas, ainda assim, há bastante trabalho pela frente. A primeira encomenda tem de sair às 6 horas para Lisboa porque o centro de saúde começa a vacinar pelas 9 horas. Para o Norte preparam-se outras tantas caixas. Espinho, Gondomar, Maia. A distribuição segue agora em carrinhas mais pequenas, país adentro, num emaranhado de traçados que abraçam o território para chegar junto dos cidadãos. Alzira Cunha já foi informada pela filha e sabe que será uma das contempladas.

Alzira Cunha, 83 anos, é inoculada com a vacina da Moderna que voou de Bruxelas para Lisboa quatro dias antes. Sai com um cartão a lembrar a data da segunda dose, 28 dias depois
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Enfermeiros: preparar seringas e sossegar os utentes

Às 13 horas do dia seguinte, as sirenes voltam a soar, desta vez na USF de Terras da Maia. Uma carrinha laranja, da empresa Empifarma, aproxima-se, escoltada pela PSP. Em menos de cinco minutos, descarregam-se cinco caixas de vacinas da Moderna, com doses suficientes para 550 utentes do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Maia/ Valongo. A enfermeira Helena Gonçalves faz a receção da encomenda, confirma se está tudo em condições, assina e devolve os “data loggers” ao SUCH. Em segundos, separa os frascos, prepara uma nova caixa térmica e segue noutra carrinha para a USF de Ermesinde. Finalmente no destino, as vacinas são colocadas no frigorífico, entre os dois e os oito graus. Não se vê lá para dentro, há um saco preto a tapar a luz. Inicia-se a descongelação para, no dia seguinte, os utentes serem vacinados.

A enfermeira Carolina Jesus, da USF de Ermesinde, retira o líquido dos frascos. Cada um dá para 11 seringas, ou seja, 11 utentes
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

A enfermeira Carolina Jesus observa o líquido esbranquiçado para confirmar se está tudo bem. Segura o frasco entre os dedos, pega numa das 11 seringas, enfia a agulha e enche-a com 0,5 ml. Repete o processo mais dez vezes, até não haver sobras. Entrega as seringas a uma das colegas que estão a inocular e continua a abrir frascos. É segunda-feira à tarde. Na sala ao lado, Alzira Sousa Cunha, 83 anos, cabelo grisalho curtinho, espera sentada numa cadeira. Por trás da máscara, os olhos curiosos marcados pela idade seguem o movimento que a rodeia. Veio de Valongo, acompanhada por uma vizinha. Não está absolutamente tranquila. As notícias sobre a suspensão preventiva da vacina da AstraZeneca, entretanto levantada, têm inquietado os utentes, admite a enfermeira Carolina. “Perguntam sempre se a que vão tomar é da AstraZeneca ou se têm mesmo o líquido lá dentro.” O diretor executivo do ACES, Fernando Filgueiras, confirma os receios. “Na semana passada, para conseguir reunir 120 doentes, tivemos de contactar mais de 200”, recorda.

Preparação das vacinas
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Alzira vai tomar a vacina da Moderna, que voou de Bruxelas para Lisboa quatro dias antes. Cerra os olhos, prepara o braço e “pronto, já está”. Deixa o centro de saúde com indicação para voltar 28 dias depois. A segunda dose que completará a imunização de Alzira há de chegar em meados de abril, depois de percorrer o mesmo caminho. De Arazede a Ermesinde.