É um dos rostos da luta contra a covid e escreveu um livro que relata a pandemia vista de dentro, a partir da Urgência do Hospital de São João. A braços com a quinta vaga pandémica, não tem dúvidas de que haverá um aumento de casos após o Natal e que é crucial reforçar o uso da máscara e impor limites nos restaurantes. E, se tudo correr bem, lá para o verão já estaremos na nova normalidade.
Durante semanas, não folgou. Viveu dois meses na cave para proteger a família. Por vezes, chegava a casa tão exausto que não conseguia dormir e gravava notas sobre a doença que virou o Mundo do avesso. Para memória futura. “O homem da tenda” é o testemunho, na primeira pessoa, da luta contra a covid por Nelson Pereira, 50 anos, médico e diretor da Unidade Autónoma de Gestão de Urgência e Medicina Intensiva do Centro Hospitalar de São João, Porto. Nesta entrevista, realizada antes de serem anunciadas as novas medidas de combate à pandemia, o clínico revive os momentos mais dramáticos e olha para o futuro. Com preocupação, mas também com esperança.
Começamos pelo título. Porquê “O homem da tenda”?
A tenda foi um marco de todo este período pandémico, um ícone sempre que se falava do São João, e o seu desmantelamento corresponde ao fim de um ciclo e do próprio livro, pelo que tem esse simbolismo. O nome foi puramente acidental. Uma colega convidou-me para escrever um artigo e, na sua argumentação, disse que seria uma honra ter uma entrevista com o “homem da tenda”. Na altura, dei uma gargalhada, mas acabei por começar um blogue com esse nome e dar esse título ao livro.
O livro parte de 124 publicações sobre a covid no Facebook. O que pretende com esta obra?
Fui desafiado e fiquei a pensar nisso. E depois fez-me sentido porque a pandemia vai ficar para a História, não sei se ao longo da nossa existência vamos ter outro acidente histórico tão relevante como este. Vivi a pandemia por dentro e tendo acompanhado tudo de forma tão intensa no São João, que de alguma forma foi líder em todo este processo, de facto, eu tinha muita informação que devia partilhar para memória futura. Desde o início, muito longe de pensar escrever um livro, fui tomando notas para mim. Por vezes, quando chegava a casa, às quatro da manha e, apesar do cansaço, as insónias não me deixavam dormir, gravava áudios, para não me esquecer. Por outro lado, ao longo do processo, não quis ser demasiado literal nem criar ruído ou alarme. Agora, ao reler as publicações, acrescentei comentários e, com alguma distância, já posso ser mais claro e objetivo.
Qual foi o momento mais difícil que viveu no hospital ao longo da pandemia?
Há três ou quatro momentos-chave. Um deles é o dia 12 de março [o primeiro caso confirmado em Portugal foi a 2 de março e a primeira morte ocorreu a 16]. Passámos de meia dúzia de casos suspeitos para as dezenas. A estrutura não estava preparada e, em menos de 24 horas, revolucionámos completamente o hospital e passámos a utilizar o hospital de campanha. O dia 18 foi o dia em que passámos de muitos suspeitos e poucos graves para muitos suspeitos e muitos graves, cada doente que entrava ia para os Cuidados Intensivos. Percebemos que o que estava a acontecer em Espanha e Itália ia chegar cá. Escrevi, para mim, que foi o dia da viragem. Do ponto da Urgência, outro dia marcante foi o 27 de março: entraram 307 suspeitos de covid. Qualquer outro serviço de urgência deste país teria claudicado e nós, com um grande espírito de entreajuda, fomos capazes de modelar a resposta. Tivemos filas de pessoas, no jardim, que não arredaram pé ao longo de toda a noite, apesar de estar muito frio. Os doentes, mesmo aqueles que vieram por ter febre, chegavam ao interior da tenda hipotérmicos, com menos de 33 graus centígrados e os nossos termómetros não funcionavam. Estes dias foram especialmente complexos.
E a nível pessoal, qual foi o dia mais negro?
Não sou muito dramático relativamente à minha vida, mas confesso que o dia em que houve suspeita de que podia estar infetado assustou-me. Não por razões clínicas – já conhecia a doença minimamente para saber que não estava em risco -, mas por ter de ir para casa e deixar os outros sozinhos. Naquela altura, era preciso estar em casa até ter dois testes negativos e a perspetiva de abandonar o barco na fase mais crítica deixou-me muito preocupado. Felizmente, foram só algumas horas até ter o resultado.
Teve de fazer escolhas difíceis: quem tratar, quem priorizar?
Felizmente, não no sentido de decidir quem é tratado ou não. O risco existiu mas nunca aconteceu. Se não tivesse havido inflexão de curvas – e no caso da região Norte e do nosso hospital foi principalmente nas primeira e segunda vagas que estivemos muito perto do limite -, poderíamos ter sido confrontados com decisões em que ficaríamos a pensar para o resto da vida.
Acredita que a sua experiência teria sido diferente num hospital de Lisboa? Ou do Interior?
Teria sido muito diferente em qualquer outra instituição. Já trabalhei noutros hospitais e no INEM e não encontrei em nenhuma outra estrutura do Ministério da Saúde a capacidade, a competência, a resiliência, a dedicação e o companheirismo que tive aqui e que se traduzem numa prestação acima da média.
Considera aceitável haver médicos não vacinados?
A vacinação é uma responsabilidade de todos. Os profissionais de saúde foram dos primeiros a ser vacinados e enfrentar o medo do desconhecido. Aderiram e foram a bandeira da vacinação.
Defende a vacinação obrigatória para profissionais de saúde?
Por princípio, obrigar alguém a fazer algo não me faz sentido. As pessoas devem ser livres de tomar decisões e responder por elas. As escolhas têm consequências, principalmente quando as decisões não são meramente individuais. Portanto, faz-me sentido impedir que não vacinados façam algumas coisas.
Vivemos novamente uma situação de aumento de casos e de internamentos. Que medidas restritivas se justificam?
Em minha opinião, o que estamos a viver hoje resulta de uma menor perceção do risco real. As decisões tomadas nos últimos meses foram no sentido de transmitir a ideia de que a situação estava controlada, que estávamos todos vacinados e que ia correr tudo bem, apesar de não sabermos efetivamente que era assim. As pessoas começaram a aligeirar as medidas de proteção individual e passou-se para uma situação de completo à-vontade.
Comunicou-se mal?
Sim, ao longo de todo o processo e também nesta transição, provavelmente por excesso de otimismo. O problema dos contágios está nos pequenos grupos. A tónica da comunicação tem de ser que o risco é real quando há contacto com pessoas fora do agregado familiar, sem máscara, e que o risco é maior em espaços fechados.
Justifica-se voltarmos à obrigatoriedade de uso de máscara em todos os espaços fechados públicos?
Sem dúvida.
E na rua?
Esse nunca foi o principal problema. Impor sempre máscara não me parece necessário, mas deve ser usada em aglomerados.
Fechar discotecas?
Essa decisão exige mais informação do que a que temos atualmente. Mas é evidente que ao permitir o acesso a discotecas, só com certificado digital e sem máscara, estamos a facilitar o contágio. Há momentos em que é preciso tomar decisões aparentemente drásticas para transmitir a sensação de risco. Se as pessoas tiverem uma perceção correta do risco, vão modelar os seus comportamentos, mas como nem todos o fazem, é preciso impor esses comportamentos.
Faz sentido limitar os grupos em restaurantes, numa altura em que há tantos convívios de Natal?
Acho imprescindível impor medidas nesse sentido. Este é daqueles casos em que não se pode deixar ao livre-arbítrio de cada um.
E quanto ao Natal, o Governo devia impor regras que não impôs no ano passado?
No ano passado, passou-se a ideia de que a situação estava suficientemente bem para podermos ter o Natal clássico. Agora, já estamos novamente com o discurso “vamos salvar o Natal”. As pessoas vão juntar-se e a seguir vai haver muito mais casos do que havia antes. Não vai ser como no ano passado, porque a situação epidemiológica é completamente diferente, mas pensar que não vai haver um grande acréscimo de casos após o Natal é ingenuidade total. A seis semanas de distância, não é possível fazer previsões seguras. É da responsabilidade de cada um viver a quadra com parcimónia de contactos e, caso tal não aconteça, fazer autotestes antes.
Como vai ser o seu Natal?
Vai ser como o do ano passado: ceia com a família próxima, sempre de máscara dentro de casa até ao momento de comer, e com uma mesa maior do que o habitual, com uns numa ponta e outros noutra.
A par do aumento da covid, assistimos à elevada procura dos serviços de saúde devido a infeções respiratórias. Vamos ter um inverno caótico nos hospitais?
Vamos ter um inverno muito difícil. O caos vai depender da capacidade de resiliência de cada um e da organização global da rede que se impõe às autoridades de saúde. É o segundo inverno que vamos passar em pandemia e este é muito diferente. Em janeiro/fevereiro, estávamos em plena terceira vaga, com elevada mortalidade, mas não tínhamos outras infeções respiratórias – não tivemos um único caso de gripe no São João, por exemplo -, o que é anormal e quase incompreensível. Este ano, já estamos a ter todas as infeções, exceto gripe. E estamos a ter sobrecarga dos serviços de urgência por causa destas infeções. O grande problema da covid, além da letalidade superior à da gripe, sempre foi provocar uma pressão no sistema de saúde, que é finito. Mas, como houve uma diminuição de doenças respiratórias e dos traumas, foi possível equilibrar. Agora, já estamos com maior afluência à Urgência do que em 2019, portanto, vamos passar por momentos muito difíceis.
Defende uma mudança nas regras de acesso às Urgências. Os doentes azuis e verdes devem ser impedidos de ir às Urgências?
Defendo que os doentes devem chegar à Urgência referenciados pelos centros de saúde, linha SNS 24 ou INEM e só excecionalmente entrariam diretamente. Claro que primeiro é preciso garantir resposta por parte desses serviços e depois estabelecer regras.
Houve contratação de milhares de profissionais de saúde, mas os problemas subsistem. Foi feita alguma reforma? Ou foi uma oportunidade perdida?
Foi uma oportunidade perdida. Não se reformou. Houve tempo e não se fez nada. Continuamos a sobreviver e hesitamos sempre na hora de reformar.
Fomos os melhores, depois os piores, novamente bons. Como antecipa que estaremos em janeiro?
Em janeiro, vamos estar a sofrer muito. Os profissionais vão ter um dia a dia muito difícil. E as pessoas vão ter dificuldades de acesso porque os serviços vão estar pior. Todos os anos, a situação das Urgência em janeiro é crítica. Se não se reformou e continuamos com a covid, vai ser muito pior.
Qual é a vantagem da segunda geração de vacinas?
Não faço ideia do que vem aí, mas não tenho grandes expectativas. Já os dois medicamentos aprovados para tratar o início de doença, da Pfizer e da Merck, se os resultados forem tão bons como o que foi publicitado, podem ser uma mudança de paradigma.
A prometida imunidade de grupo é um mito?
Imunidade do grupo no sentido que a estudamos, e que pressupõe que com 70% da população vacinada a doença desaparece, já vimos que não existe. Mas podemos falar de uma espécie de imunidade. Se estamos numa situação relativamente tranquila e a Alemanha, que tem uma taxa muito mais baixa de vacinação, está a viver o pior momento, deve-se às vacinas. E se hoje não somos propriamente bestiais mas também não somos bestas é devido às vacinas.
“Seguimos juntos e com esperança” – era assim que terminava as suas publicações – tornou-se o seu mote. Quando voltaremos a ter uma vida “normal”?
Podemos falar em probabilidades. Eu diria que há boa probabilidade de este ser o último outono-inverno com estes condicionalismos se as características da epidemia não mudarem. Ou seja, se não surgir uma nova estirpe e se a doença se mantiver estável, vamos chegar ao momento em que aceitamos que teremos de viver com esta doença e sem medo permanente. Se tivermos medicamentos que sejam eficazes a tratar a doença, como se espera que venha a acontecer, e a população estiver vacinada e com o reforço, é provável que, no próximo verão, cheguemos a uma situação em que somos capazes de conviver com esta doença como já convivemos com outras.