E se algo de mal acontecer? Será uma doença? E se morrer? A perturbação obsessiva-compulsiva (POC) não dá descanso e a ansiedade converte-se em ações sem sentido. Há medo e consciência do exagero. A pandemia não ajuda. O humorista António Raminhos está a escrever um livro para contar a sua história. Os obsessivos-compulsivos não são malucos. São como são.
António Raminhos, humorista, tem problemas de ansiedade desde criança. Na altura, não sabia que as ideias que se enrolavam na sua cabeça eram, afinal, uma perturbação, uma doença. Teria oito ou nove anos quando passou dias com medo de engolir com receio de morrer asfixiado. Tinha pavor de adoecer ou ficar infetado com seringas que via abandonadas nas ruas sem nunca lhes ter tocado. “Era muito pequenino, não tinha noção das coisas, a minha mente assumia de tal forma o controlo que era embalado pelo raciocínio.” Chamavam-lhe esquisitinho, nojentinho, parvinho.
Cresceu e as obsessões nunca o largaram. Tinha o hábito de lavar muitas vezes as mãos e tomar banhos de duas horas, chegou a lavar-se com detergente da louça. No restaurante, inspecionava cirurgicamente os talheres à procura de manchas ou sujidade. Agora, um sinal no corpo pode ser motivo de preocupação. Será que está maior? Se calhar não está, mas poderá não ter reparado bem. Mede e tira fotografias. Se o sinal é na perna, a perna vai doer. Se é no braço, é no braço que vai ter dores. É psicossomático. “A minha cabeça coloca-me dúvidas, uma parte de mim sabe que são exacerbadas ou que, de algum modo, não fazem sentido, mas depois por várias componentes químicas, biológicas e comportamentais, não as consigo eliminar”, conta.
Um dia disseram-lhe que um homem descobriu, por acaso, que tinha um cancro no estômago. E se tiver também? Passou seis meses sem apetite e dores no estômago. Tem obsessões com o medo de morrer, com a saúde, e o que não lhe sai da cabeça manifesta-se no corpo. São ataques de pânico, aquela sensação de morte iminente, a garganta a querer fechar-se, o coração a bater muito forte, o suor nas mãos, a perda de noção da realidade. São picos de ansiedade, voltas à barriga, insónias, pouco apetite. E a procura constante pelo próprio conforto que pode durar minutos ou horas. “Estou sempre a fazer verificações que me levem a esse alívio, mas, estranhamente, estou à procura de verificações que confirmem o meu medo”, revela. É uma mecânica exaustiva, demasiado cansativa, bastante pesada.
Joana Marques Brás, atriz, estudante de Direito, 25 anos, começou cedo, por volta dos 12, com pensamentos que se tornaram obsessões que davam origem a rituais de repetição. Bater numa mesa, num corrimão, numa maçaneta, em qualquer superfície quatro vezes, séries de quatro, duas séries, se calhava no seis, número do diabo, não podia ser, mais quatro e assim sucessivamente, vezes sem conta, as que tivessem de ser, senão algo de mal aconteceria à mãe, ao pai e à irmã, um acidente de carro, uma doença terminal.
Tinha de fazer aquele exato movimento, daquela exata maneira. “A nossa cabeça arranja sempre formas de dar desculpa sobre desculpa sobre desculpa para nos fazer acreditar que esses rituais têm um fundo de verdade.” Ela sabe que não têm. “É um jogo de manipulação connosco próprios.” Como uma parte doente que manipula uma parte saudável. “Como se a minha vida fosse um livro e ao fazer e desfazer uma ação pudesse estar a apagar um dos pensamentos que tive e que ficou escrito nesse livro.” Uma analogia do que lhe mexe nas entranhas.
Escondia-se na casa de banho da escola, afastou-se dos amigos, havia dias em que queria ficar quieta sem se mexer. Do 7.º ao 10.º ano, foi complicado, um medo que lhe congelava o corpo. Batia quatro vezes com as mãos de forma simétrica nas ombreiras das portas, sem ter propriamente um pensamento associado. Durante algum tempo, pouco, quando sentia um cheiro intenso e mau tinha de tirar todo o ar de dentro de si. Quatro fortes expirações, duas a duas, com uma certa cadência musical, para eliminar todas as partículas do odor malcheiroso.
O quatro, par com par, um par de pares, também é o número mágico de David Carvalho, 25 anos, estudante de mestrado de Economia. Aos 18, os pensamentos tomaram-lhe conta dos dias e das noites também. Se tinha alguma doença, se tinha sido infetado, se poderia comer algum alimento estragado, um medo tremendo de morrer envenenado.
As obsessões começaram ainda em Luanda, Angola, onde nasceu. Veio estudar Bioengenharia para o Porto e as ideias persistiam. No supermercado, era certinho, escolhia os produtos que estavam mais atrás das prateleiras, verificava se as embalagens estavam bem fechadas, se não havia buraquinhos. Foram os primeiros rituais para tentar aliviar a ansiedade, não aguentou, voltou para Luanda. “É uma doença galopante, cresce muito depressa”, desabafa. Depois veio o medo de ficar cego e os rituais de contagem, acender e apagar a luz quatro vezes, abrir e fechar a porta, abrir e fechar a torneira. Quatro vezes, sempre quatro vezes. “É um número seguro, é o pensamento mágico, uma contagem perfeita, limpinha.” Seis meses em Luanda, procurou ajuda, voltou a Portugal, a Lisboa, há sete anos, e começou a perceber que doença é esta.

(Foto: Carlos Costa/Global Imagens)
Não são manias, não são cismas, não são tiques. Não é obstinação tão-pouco. A perturbação obsessiva-compulsiva (POC) tem obsessões, pensamentos ou imagens intrusivas e repetitivas, que surgem na cabeça contra a vontade, e provoca ansiedade e sofrimento. E tem compulsões que são rituais motores ou mentais recorrentes para reduzir a ansiedade alimentada pelas obsessões relativas a contaminação por doenças, sujidade, ordem ou simetria, acontecimentos violentos e agressivos, entre outras coisas.
Repetitivos e imparáveis. Prisioneiros de si
Ricardo Moreira, psiquiatra do Centro Hospitalar e Universitário de São João (Porto), estabelece as diferenças. “O que distingue a POC de uma simples mania ou cisma, ou característica de personalidade, é a intensidade e a frequência com que as obsessões e as compulsões surgem, a sua irracionalidade”, explica. “Estes pensamentos e comportamentos são reconhecidos como absurdos e ou exagerados, bem como o sofrimento psíquico e o impacto que estes sintomas têm na funcionalidade dos doentes”, acrescenta.
Sofia Santos, psicóloga clínica, diretora técnica e psicoterapeuta da Domus Mater, a única associação no nosso país que apoia doentes com POC e seus familiares (cerca de 300 neste momento) e disponibiliza serviços especializados, tem muitas histórias dentro de si. Tantos desabafos, tantas inquietações, tantos pedidos de ajuda. “Um doente com POC vive prisioneiro de si mesmo, tem consciência de tudo, mas não consegue libertar-se. Esta doença causa muito sofrimento, principalmente pelo sintoma constante de ansiedade. Quanto menos aceita os pensamentos intrusivos e a ansiedade, mais ritualiza mental e comportamentalmente, alimentando um círculo vicioso de dependência”, refere.
A POC não deve ser confundida com características pessoais, avisa Pedro Morgado, psiquiatra, professor da Escola de Medicina da Universidade do Minho. “Todas as pessoas podem experienciar pensamentos intrusivos e rituais considerados normais. Quando esses pensamentos e rituais se repetem excessivamente, quando causam um sofrimento extraordinário, ou quando têm um impacto negativo no funcionamento da pessoa, então, podemos falar numa situação patológica”, sustenta.
A ciência estudou o que se passa no cérebro. “Na POC, existe uma disfunção que afeta algumas regiões cerebrais, provocando alterações na forma como o cérebro toma decisões. O cérebro passa a sobrevalorizar os riscos de algo negativo acontecer e implementa mecanismos de proteção que são excessivos e desnecessários”, explica Pedro Morgado. “É um circuito do cérebro que funciona mal”, observa Rui Vaz, neurocirurgião do São João. E é uma questão de saúde mental. “É uma doença psiquiátrica porque interfere com a qualidade de vida e provoca aos doentes um enorme sofrimento.”
Inês Ferreira tem 23 anos, aos 14 a POC começou a manifestar-se em pequenas coisas. Via um vídeo e tinha de voltar atrás porque se não o fizesse algum mal podia acontecer-lhe. “É difícil explicar, é um pensamento que me ocorre, um desejo que não é o meu desejo, é difícil explicar”, confessa. As obsessões não passaram, cresceram. Lava as mãos vezes sem conta, limpa torneiras, muda toalhas. Sempre a limpar, sempre a desinfetar. É um stress que lhe tolhe os dias com altos e baixos. Está a ser acompanhada. “Melhoro e passados uns dias fico pior, um dia estou melhor e depois volto atrás.”
As regras sanitárias impostas pela pandemia não lhe alteram o quotidiano. “Como já fazia tudo isso, acaba por não interferir muito na minha rotina, é apenas mais um extra de coisas que tenho de desinfetar”, conta Inês. Já Joana Brás sentiu que, com a pandemia, o Mundo tinha entrado na cabeça de um obsessivo-compulsivo. Mas não regressou aos rituais da adolescência. “Conheço como esta perturbação funciona em mim, como nasce uma obsessão, como reconhecê-la, para conseguir desconstruí-la, tirar-lhe peso, desvalorizá-la.” É um trabalho diário, constante. E, na parte que lhe toca, liga o chip de obsessivo-compulsivo quando vai às compras, não toca em lado algum, desinfeta depois de qualquer contacto com superfícies, evita tudo o que é de evitar para afastar qualquer risco de contágio. Tudo o que faz, garante, tem de ter uma base científica, fontes credíveis que validem o que faz, em nome dessa necessidade de segurança e de conforto.
Raminhos tem vivido a pandemia de forma tranquila, no seu registo normal de ansiedade. No entanto, em setembro do ano passado, teve uma crise, aquele medo de morrer, e a confirmação da importância do acompanhamento e da medicação.
David Carvalho, que tem a POC controlada há cerca de um ano, sem rituais, teve igualmente uma recaída em 2020, em plena pandemia. “As obsessões vieram em força, muito tempo para pensar, é um contexto que predispõe a estas recaídas.” Outra vez o medo de morrer envenenado, começou a ritualizar mentalmente, a dúvida da comida que tinha em casa ter sido ou não comprada por si. “Tinha de fazer este filme todo para trás para baixar a ansiedade”, recorda. Outra vez o medo de morrer envenenado, os tremores e os suores, o nervosismo, a concentração em baixa. “Com a cabeça 24 horas por dia a tentar perceber onde tinha comprado uma laranja.” A duvidar do que tinha em casa.

(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)
Um estudo do Instituto de Investigação da Escola de Medicina da Universidade do Minho revela um pico de comportamentos de lavagem e de verificação excessivos no início da pandemia que, no entanto, foram-se reduzindo significativamente no período de março de 2020 a março de 2021, na população em geral. O psiquiatra Pedro Morgado adianta que “as pessoas que dizem lavar as mãos excessivamente diminuem continuamente, isto significa que a maioria da população se adaptou.” No entanto, realça, que por razões desconhecidas, “é expectável que algumas pessoas não reduzam esses hábitos de lavagem e tenham maior probabilidade de desenvolver POC devido à pandemia”. “Tal como sucedeu no passado com outras situações pandémicas, é provável que se verifique um aumento da prevalência de POC ao longo dos próximos anos”, acrescenta.
Não ralhar. Reconhecer e enfrentar o problema
Raminhos faz meditação, o trabalho de autoconhecimento ajuda, continua o seu processo de autoconsciência. A POC não desaparece com um estalar de dedos. “É uma coisa com a qual vou viver para sempre, uns dias melhores, outros piores.” Joana Brás e David Carvalho são acompanhados pela Domus Mater. Joana a partir dos 13 anos, David desde os 18. “Começo o tratamento e foi fascinante: começo a aprender a gerir a ansiedade, a focar-me no momento presente, a não ter sempre ânsias pelo futuro, a não estar sempre a ruminar o passado”, recorda Joana que refere ter tido “alta clínica” por volta dos 16 anos, mas continua a fazer “manutenção das ferramentas” para gerir picos de ansiedade, para não deixar que pensamentos cresçam e se tornem obsessões. Para si, é mais fácil gerir tudo isso se tiver alguém com quem conversar. “Nunca ninguém me vai tirar, por muita terapia que faça na vida, e ainda bem, a minha personalidade mais obsessiva, mais perfeccionista, mais minuciosa, mais detalhada”, comenta.
David Carvalho não quer ter pensamentos que causem ansiedade e motivem rituais que apaziguem o sofrimento. “A ansiedade chega a níveis elevados, é incontrolável. A arma número um é nunca ceder aos rituais.” Elevar a autoestima e encontrar escapes saudáveis. É isso que sabe que tem de fazer.
E como lidar com um obsessivo-compulsivo? Não é fácil e o que se vê é o que já não se consegue esconder, tal como a ponta de um icebergue. Para Joana Brás, não adianta fazer de conta, fingir que está tudo bem, assobiar para o lado. É preciso tirar o penso rápido, admitir que há um problema, encará-lo de frente, pedir ajuda. “Reconhecer a seriedade desta doença, aceitá-la sem tabus, com mente aberta para a pessoa se sentir confortável e sentir que tem um aliado com quem pode desabafar.”
Há tantos medos e receios relacionados com crenças e dúvidas que, segundo a psicóloga Sofia Santos, são irracionais, mas imparáveis. “O medo de perder o controlo e acontecer algo é muito forte, o que dá uma falsa ilusão que pode mesmo acontecer algo, levando o doente a ritualizar. A crença, a insegurança, o medo, a ansiedade, são mais fortes que a tomada de consciência do lado irracional e, por isso, procuram a segurança através dos rituais.” A psicoterapia é fundamental para aprender a lidar com a doença, saber o que fazer quando os pensamentos intrusivos invadem a mente sem pedir licença.
E como se deve comportar quem está por perto, quem está à volta? O psiquiatra Ricardo Moreira ouve muitas vezes essa pergunta dos familiares dos doentes durante as consultas. É preciso perceber que as obsessões e compulsões não são caprichos. Não ralhar, evitar zangas para não aumentar o sofrimento. “É importante realçar que os familiares não devem colaborar com os rituais dos doentes, uma vez que se o fizerem estarão a contribuir para o agravamento da POC. Devem, isto sim, procurar distrair o doente, ajudá-lo a desfocar a atenção do pensamento obsessivo.” Não são tarefas fáceis. Nada fáceis.
“É uma doença psiquiátrica pesada, como não se vê e não há nenhuma deformidade, é subvalorizada”, comenta Rui Vaz. “Há formas mais ligeiras, há formas mais marcadas, depende da intensidade da doença, que pode dar para uma pessoa não sair de casa. Tem de ser encarada como um doente que precisa de tratamento.” E avisa: “O erro é contrariar, contrariar a obsessão provoca um sofrimento atroz”.
Quatro em cem portugueses sofrem de ansiedades e medos. Neste momento, Raminhos está a escrever um livro sobre a POC, a sua história, tudo o que se lembra, as suas experiências, tirando-lhes o peso dramático, com pitadas de humor. Para, de alguma forma, dar o que não teve, falar da POC sem rodeios, partilhar. A obra será lançada em setembro, em princípio, e o título poderá ser “Somos estranhos até perceber que isso é normal”.
Joana Brás tem na gaveta uma série juvenil para televisão que escreveu há algum tempo e que gostaria de ver no ecrã. É a história de uma rapariga que vive com POC e que escreve um diário que outra miúda lê. É como ouvir o que um obsessivo-compulsivo pensa, é como entrar-lhe na cabeça. É tentar entender a doença de todas as dúvidas. Por quem sabe como ela é. Por dentro e por fora.