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Mulheres que desmascaram os corpos perfeitos

A atriz Sofia Arruda explica aos seguidores que em televisão ou nas fotografias profissionais "as imagens são defendidas" (Foto: Joanna Correia/DR)

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Atrizes, modelos e outras figuras públicas tiram fotografias sem maquilhagem, mostram a celulite, as estrias e a flacidez. Tendência, que veio para ficar, aumenta a proximidade com os fãs e facilita a aceitação das imperfeições reais.

Desde que Sofia Arruda voltou aos ecrãs, depois de ser mãe, que as fãs se interrogam sobre a sua forma física: “Que corpo de sonho, como consegues?”; “Nem parece que foste mãe! Qual é o truque?”. Para “desmistificar” e sossegar as seguidoras, sobretudo mães frágeis no pós-parto, a atriz publicou nas redes sociais uma fotografia “sem filtros” e um texto em que assume as estrias, a celulite, a flacidez na barriga e até uma hérnia que ganhou na gravidez. O impacto foi ainda maior. “Recebi muitas mensagens depois desta publicação e senti que, às vezes, é preciso deixar cair o pano e mostrar o que está por detrás.”

A tendência #sem filtro ou #corpos reais não é nova. Começou com atrizes e modelos estrangeiras, alastrou ao Mundo e já motivou incontáveis páginas na imprensa cor-de-rosa. São “ídolos” que descem do pedestal da fama para o mundo real. Mostram rostos sem maquilhagem, com olheiras cinzentas, olhos encovados e rugas que ninguém suspeitava. Revelam corpos sem bronzeados perfeitos, expõem barrigas, nádegas e coxas com excesso de gordura e riscadas por estrias. Focam cicatrizes, pelos encravados, verrugas e espinhas. Sem limites, nem pudor. A mensagem que acompanha as imagens é quase sempre no mesmo sentido: não há corpos perfeitos, aceitem-se como são. Os fãs deliram. Identificam-se e “aquelas imperfeições, físicas, morais ou psicológicas, transformam-se em qualidades e virtudes”, analisa Jean-Martin Rabot, sociólogo e docente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho.

“A fotografia da direita tirei no domingo passado, 1 semana depois de o Xavier nascer. A da esquerda tirei hoje, 2 semanas depois de ele nascer”, reconheceu a atriz Sofia Arruda, em agosto de 2019
(Foto: DR)

Sofia Arruda fez o que sempre lhe pareceu óbvio: explicar que em televisão ou nas fotografias profissionais “as imagens são defendidas”. “Quis dizer-lhes que não há um ‘close-up’ da perna, da barriga ou da celulite, mas não significa que não existam”, sublinha à “Notícias Magazine” a atriz de 32 anos que integra o elenco da série da SIC “Patrões Fora”.

Em março passado, escreveu no Instagram: “Obrigada pelos elogios ao meu corpo no pós-parto. Mas não se esqueçam que na TV não se vê quase nada. Não contribuo para mães odiarem os seus corpos, por isso, deixo aqui esta foto tirada agora mesmo sem filtros nenhuns”. Sem vergonha, a atriz resumiu, num texto pequeno, o rol de imperfeições até então desconhecidas: “Tenho estrias (muitas desde os 12 anos), tenho celulite, uma hérnia que ficou da gravidez e que tenho de operar para tirar e uma flacidez na barriga que nunca tive na vida. Repito, na TV os planos são afastados, não se vê nada. Com amor de mãe para mãe”.

Foi um momento único, dedicado em especial às mulheres que após o nascimento dos filhos se deparam com transformações difíceis de aceitar. “No pós-parto, as mulheres estão muito frágeis e verem as pessoas que seguem [nas redes sociais] com corpos supostamente perfeitos causa, de certeza absoluta, uma sensação de desconforto, até perante os parceiros”, refere a atriz. O feedback pós-publicação, com “dezenas de mães a agradecer e a elogiar” a atitude e a coragem da atriz, atesta o efeito de identificação dos seguidores.

Ídolos cada vez mais humanos

O fenómeno de aproximação dos fãs aos seus heróis foi descrito pelo sociólogo francês Edgar Morin na década de 1950. Mas, quase 70 anos depois, Jean-Martin Rabot acrescenta-lhe outra explicação. “A passagem da era das massas para a era das tribos”, do momento em que as “estrelas” eram inacessíveis e distantes para uma nova fase, em que os heróis descem à terra, são cada vez mais humanos. “É um fenómeno pós-moderno. Os homens continuam a adorar os seus ídolos, mas estes são cada vez mais humanos”, observa o sociólogo, realçando que a “imperfeição que antes era um defeito torna-se hoje uma qualidade”.

E não há volta atrás. “O herói de hoje não pode ser distante. A proximidade é uma característica do nosso tempo”, diz. Na prática, as figuras públicas – da indústria do entretenimento à moda, da política ao desporto – não têm como escapar a esta evolução. “Veja-se a exposição privada do presidente da República, que já foi fotografado vezes sem conta na praia, de barriga à mostra”, exemplifica. Também na política, “são cada vez mais os que expõem as suas vidas privadas para eliminar a distância que os separa do povo”.

“Sê gentil com as pessoas e contigo e, por favor, pára de comentar sobre a mudança de corpos dos outros”, pediu a modelo Sara Sampaio, em fevereiro de 2021 (Foto: DR)

E o efeito nos seguidores acontece por imitação. “Os heróis influenciam a moda, a maneira de falar, de pensar, de agir dos seguidores. Quando uma figura pública fala sobre a sua celulite influencia a forma como o fã vê o seu próprio corpo”, sustenta o sociólogo.

Há dois meses, outro exemplo de aproximação à realidade deixou fãs de todo o Mundo em êxtase. Sara Sampaio, de 29 anos, a musa portuguesa que desfila nas passarelas mais cobiçadas, publicou um vídeo nas redes sociais para mostrar que o corpo perfeito é uma questão de postura e ângulo. De biquíni, frente a uma câmara sem filtros, a modelo internacional faz ver que quando se curva sobre a barriga, ela aparece; quando se inclina sobre um dos lados, há uma gordura que se acumula; quando as costas não estão na posição certa, há pele que sobra sob a omoplata. “Sê gentil com as pessoas e contigo mesmo e pára de comentar sobre a mudança de corpo dos outros”, lê-se na mensagem que acompanha o vídeo.

Aceitar as limitações para uma boa autoestima

“A pressão social para um corpo perfeito é enorme e as figuras públicas são vítimas dessa pressão de uma forma ainda mais exacerbada”, destaca a psicóloga Rute Agulhas. Por isso, continua, assumir o corpo real traduz, antes de mais, um processo de autoaceitação, que passa por conseguir olhar-se ao espelho e identificar os aspetos de que gosta mais e aqueles de gosta menos. Por mais que se trabalhe nesse sentido, fazendo exercício físico ou usando maquilhagem, “aceitar as limitações e as imperfeições é muito importante para uma boa autoestima”, nota a especialista em Psicologia Clínica e da Saúde.

“Amo a minha pele. Não me envergonho de alguns caroços, inchaços ou celulite… e tu também não deverias”, reconhecia a modelo Ashley Graham, em janeiro de 2020
(Foto: DR)

A partir daqui fica mais fácil dar o passo seguinte, “assumir a sua aparência real perante os outros”. Por outro lado, aceitar as críticas alheias e, ainda, aceitar de que não agradamos a todos é também um passo importante para o nosso bem-estar psicológico.

Docente universitária e investigadora, Rute Agulhas distingue “aparência real” de “imperfeições”. Porque o termo “imperfeições encerra uma conotação negativa, um filtro social”. “Porque é que ter estrias fruto de uma gravidez tem de ser uma imperfeição? Porque é que as rugas próprias da idade têm de ser uma imperfeição? Porque é que uma mulher que veste XL é mais malfeita do que uma que veste o S?”, questiona.

A libertação do jugo da vergonha

Cansada de sentir vergonha, a atriz e cantora Demi Lovato, atualmente com 28 anos, surpreendeu os fãs, em 2019, com uma fotografia de biquíni sem edição. “Este é o meu maior medo. Uma foto minha de biquíni não editada”, escreveu na legenda. “E adivinhem, é celulite!!!! Estou literalmente tão cansada de ter vergonha do meu corpo, editá-lo (sim, as outras fotos do biquíni foram editadas – e eu odeio ter feito isso, mas é a verdade) para que os outros pensem que eu sou a ideia deles do que é bonito, mas não sou eu”, acrescentou.

Aos 33 anos, já não sobram dedos para contar as vezes que a norte-americana Ashley Graham publicou fotografias que desafiam os padrões de beleza do mundo ocidental e promovem a autoestima. Um caminho longo, com os elogios a superar as críticas. Em 2016, foi a primeira modelo “tamanho 48” a sair na capa da revista “Sports Illustrated” e a introduzir o conceito “plus size” no mundo da moda. De Cameron Diaz a Adele, passando por Carla Bruni, não faltam imagens na Internet de quem há muito aderiu à tendência #sem filtro.

“Este é o meu maior medo. Uma foto minha de biquíni não editada. E adivinhem? é celulite!!! Estou tão cansada de ter vergonha do meu corpo”, afirmava a atriz e cantora Demi Lovato, em setembro de 2019
(Foto: DR)

No Brasil, o movimento corpos reais cresceu pela mão de influencers, modelos e atrizes e continua a ser dinamizado por figuras públicas de todas as idades. A apresentadora Xuxa, as cantoras Anitta e Preta Gil, as atrizes Susana Vieira (74 anos), Carolina Ferraz (53) e Deborah Secco (41) são algumas das “famosas” que já assumiram o que são nas redes sociais.

Por cá, os exemplos também se multiplicam. A escritora e apresentadora de televisão Luísa Castel-Branco, a atriz Rita Pereira, a cantora Carolina Deslandes, entre outras, têm presenteado os seguidores com publicações sem retoques. Pouco antes de Sara Sampaio, também Sofia Ribeiro aproveitou as férias no Brasil para atacar o tema. “Acordar em Arraial do Cabo. Celulite? Temos! Barriguita? Também! Estrias, cicatrizes e tudo o que é normal ter. A fórmula é como nós nos vemos, não os outros. Como nós nos sentimos!”, escreveu a atriz de 36 anos, dedicando o post às “muitas miúdas” que lhe escrevem a dizer que “gostavam de ter o corpo assim ou assado”. “Aceitem-se miúdas! E sejam felizes na vossa pele. Somos todas únicas e maravilhosas por isso mesmo!”, atirou.

Há vários anos que Sofia Ribeiro estreitou o caminho para o mundo real. Em 2015, deu um passo gigante nesta aproximação aos fãs ao revelar nas redes sociais ter cancro da mama. A partilha das experiências vividas, as imagens (algumas chocantes), as mensagens, o livro que escreveu e a campanha que protagonizou com uma marca de lingerie para a Liga Portuguesa contra o Cancro despertaram consciências e ajudaram milhares de mulheres a lidar com a doença. Mais tarde, a atriz assumiu ter sido pressionada a divulgar o diagnóstico para que outros não o fizessem por si, mas agradeceu o empurrão. Porque a “onda de solidariedade e amor” que se gerou após a partilha ajudaram-na a ultrapassar os momentos difíceis.

“Celulite? Temos! Barriguita? Também! Estrias, cicatrizes e tudo o que é normal ter. A fórmula é como nós nos vemos, não os outros. Como nós nos sentimos!”, garantiu a atriz Sofia Ribeiro, em janeiro de 2021
(Foto: DR)

Para Jean-Martin Rabot, não há estratégia por detrás deste fenómeno, “corresponde ao espírito do tempo”. A supressão de filtros, a exibição das ditas imperfeições facilita o processo de identificação entre as pessoas e o modelo. “Os ídolos caem para o mundo real, mas continuamos a idolatrá-los porque são cada vez mais humanos, mais próximos e mais empáticos”, defende.

Os corpos “perfeitos” vão continuar a fazer capas de revista, a maravilhar os fãs nas redes sociais, no pequeno ecrã, no cinema e nas passerelles. Mas cada vez mais terão de partilhar espaço com todos os outros. Porque a evolução e os tempos modernos exigem uma aproximação ao mundo real.