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#metoo à portuguesa

Bárbara Bandeira afirmou que “não é por ser miúda” que um agente a “pode apalpar, mandar piropos” (Foto: Igor Martins/Global Imagens)

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A atriz Sofia Arruda reacendeu um debate que quase passou ao lado do país em 2017, quando o fenómeno explodiu nos Estados Unidos. O assédio sexual não era, afinal, exclusivo de Hollywood. Por que é que as figuras portuguesas levaram mais tempo? E o fenómeno vai trazer mudanças estruturais?

Início de 2020, Nova Iorque. Um dos mais influentes produtores de Hollywood, que produziu filmes como “Pulp Fiction”, chegava ao tribunal vestido de fragilidade, agarrado a um andarilho, em jeito quase teatral. O julgamento haveria de ficar gravado nas páginas da história dos Estados Unidos. Harvey Weinstein, 68 anos, um dos principais rostos do fenómeno #MeToo que explodiu no outro lado do Atlântico em 2017, era condenado a 23 anos de prisão por violação e agressão sexual a duas mulheres. Ainda há outro processo a decorrer, em Los Angeles.

O mega produtor de Hollywood, Harvey Weinstein, usava a sua posição de poder para abusar de atrizes. Foi condenado
(Foto: Johannes Eisele/AFP)

As vozes das vítimas de assédio sexual ecoaram, ganharam força e rasgaram fronteiras. Uma bola de neve, uma razia que atingiu ídolos, que foi do cinema à política. O movimento mexeu nos EUA, pôs um sistema conivente a olhar-se ao espelho, trouxe condenações. Mas a famosa hashtag #metoo só parece ter aterrado em Portugal com força este ano. Alta Definição, programa da SIC. Sofia Arruda fez despertar consciências ainda sem saber que ia gerar, a reboque, uma onda de denúncias. “De repente, puxam-te o tapete e deixas de ter trabalho. Aconteceu comigo.” A atriz denunciou ter sido vítima de assédio por alguém “com muito poder” numa estação de televisão. Rejeitou propostas de cariz sexual e isso valeu-lhe ficar sem trabalho. Durante anos.

Sofia Arruda ouviu que nunca mais ia trabalhar em televisão após rejeitar proposta de cariz sexual
(Foto: Global Imagens)

Na sequência da entrevista, várias outras vozes se levantaram para denunciar casos semelhantes. E o país destapava os olhos. Catarina Furtado, Inês Simões, Raquel Henriques, Bárbara Norton de Matos, Carolina Deslandes, Bárbara Bandeira. Apresentadoras, atrizes, cantoras, jornalistas. “Acho que é uma onda que não acabou e ainda bem. E que se espalhou por todo o Mundo.” Zara Pinto Coelho, investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, interessou-se pelo fenómeno já em 2017, quando rebentou nos EUA.

O problema não era só de Hollywood

A verdade é que não começou nesse ano. “Já em 2015, no Brasil ou no México, havia movimentos feministas contra o assédio. Mas o que fez a diferença em 2017 foi o próprio momento histórico em que aconteceu, porque tínhamos Trump no poder. A atitude que ele revelou face às mulheres, a conjuntura, facilitou a divulgação mundial. E o movimento ficou transnacional.” Ficou, é certo. Só que levou uns anos a chegar a Portugal. “Não é por não ser uma realidade cá. Mas nesse ano, o #MeToo em Portugal, nas redes sociais, não pegou. Apesar de algumas iniciativas e de algumas, poucas, denúncias.” Agora pegou, “por ter sido no programa em que foi [com grandes audiências], isso ajuda a explicar”.

Se recuarmos ao #MeToo norte-americano e ao impacto que teve em Portugal, a análise é curta e grossa. Entre outubro de 2017 e final de janeiro de 2018, quando a Marcha das Mulheres protestou contra Donald Trump, Zara Pinto Coelho analisou os artigos de opinião que saíram cá sobre o assunto. “Primeiro, foram poucos. O interesse não foi muito. Mas a principal conclusão é que era tratado como se não fosse um problema português. Não era uma preocupação nacional.” Em quatro meses, só em quatro artigos num total de 45 é que se abordou o assédio sexual como um problema nacional. “A questão era a indústria cinematográfica, Hollywood.” O DN, diz a especialista em comunicação, foi à época o único jornal nacional a tomar posição pública em relação à causa. O problema também era, afinal, português. Demorou foi a vir à tona. “Temos uma cultura católica bastante hipócrita e opressiva. E isso tem muita força na demora das pessoas em porem a boca no trombone. E não é só isso. É o nosso sistema de justiça, que ainda é muito preconceituoso. Isso também é um fator que pesa em fazer algum tipo de denúncia.”

Catarina Furtado foi assediada por três pessoas com cargos superiores hierárquicos
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Mas podemos falar num #MeToo português? As denúncias não chegam ao volume americano, mas, sim, podemos. “O fenómeno continua é a ser muito personalizado. A questão estrutural das diferenças de poder e de género passam ao lado. Porque se continua a falar só de casos individuais.” A sociedade, no caso luso, também foi mais apressada a apontar o dedo às vítimas, a exigir nomes ou que tivessem falado mais cedo. “O problema está no sistema. O agressor só age assim porque está protegido por todo um sistema que lhe dá razão. Mas as mulheres já estão mais sensibilizadas para o assunto”, sustenta Zara.

Meio pequeno, culpar as vítimas

A psicóloga Renata Benavente, docente e vice-presidente da Ordem dos Psicólogos (OP), vê ainda outra explicação para a demora: o meio artístico em Portugal é muito limitado. “Há tendência para culpabilizar as vítimas e essas têm a perceção de que este tipo de alegações pode pôr em causa a sua carreira. É um meio pequeno, as oportunidades são restritas e isso justifica que as pessoas não se queiram expor. E depois há a questão emocional, de colocar na praça pública uma experiência muito íntima, vivências complexas, perante filhos, família.” Há medo de represálias, que as acusem de terem provocado ou de quererem projeção mediática. E há traumas. “As mulheres que viveram estas situações podem estar em processo de evitamento, comum em eventos traumáticos, e agora ouvindo situações semelhantes sentem-se mais capazes.” Para a dirigente da OP, há uma questão premente, “a necessidade de apoiar de forma especializada, ao nível da intervenção psicológica, mulheres que viveram este tipo de experiências”. O problema vai muito além das figuras públicas.

No Agrupamento de Centros de Saúde Almada-Seixal, Renata Benavente tem uma consulta especializada na violência. “Muitos pedidos aparecem-nos com base na sintomatologia, desde depressão a alterações de apetite, e quando vamos procurar a história de vida encontrámos situações desta natureza que nunca foram tratadas.” Falar do tema é meio caminho andado para tirar peso dos ombros. “A pessoa tende a questionar-se. Será que fui eu que provoquei? Será que fiz um gesto de maior proximidade física? Será que tive responsabilidade?” E é preciso distanciar-se do stress emocional, processo que leva tempo e carrega marcas. “Não são incomuns casos em que passam a ter dificuldade em relacionar-se com pessoas do sexo oposto, com receio de dar os sinais errados. Privam-se de usar saia ou decote, de se comportar de forma natural e genuína. Há muito estigma associado à vítima. É a velha história do ‘estava a pedi-las’.” A culpabilização, a falta de solidariedade, “está enraizada na cultura portuguesa”, frisa Renata.

Carolina Deslandes contou que o promotor de um concerto forçou a entrada no seu quarto de hotel
(Foto: Carlos Costa/Global Imagens)

Põe os olhos no #MeToo português e não vê condenações como objetivo. “As mulheres que vieram falar querem dar uma mensagem de esperança a quem viveu isto. Mostrar que acontece. Mas é preciso depois ter estrutura interna para gerir. Todos ouvimos comentários duros face às recentes denúncias. ‘Querem aparecer. Porque não disseram antes?’.”

Crime já é, falta flexibilização da prova

Em 2017, o assédio em contexto laboral passa a estar expressamente proibido no Código de Trabalho. Dois anos antes, o assédio já surgia no Código Penal, enquadrado no crime de perseguição. “Tende a caracterizar-se como todo o comportamento indesejado de caráter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”, diz a advogada Sara Palminhas. É punível com pena de prisão até três anos ou pena de multa. Já em 2017, as queixas aumentaram. Pouco se sabe de desfechos. E muitos casos não chegam sequer a ver a luz do dia. “Normalmente, os comportamentos acontecem em meios privados, como no local de trabalho, e sem a presença de terceiros que possam confirmar”, sublinha a causídica. A isto soma-se a vergonha, a culpa, o o medo de denunciar e das repercussões quando se tratam de superiores hierárquicos.

A lei exige uma queixa da vítima que “deve apresentá-la no prazo de seis meses a contar da data em que os comportamentos foram praticados”. E o procedimento criminal – todo o caminho trilhado a fim de apurar os factos – prescreve ao fim de cinco anos. Sara Palminhas defende que os prazos “parecem razoáveis”. Só que é preciso dar a conhecer a necessidade de uma denúncia rápida e célere.

A advogada admite que, ainda assim, é um crime muito difícil de provar, raramente deixa rasto. “Não havendo testemunhas, mensagens ou emails, a vítima poderá, por exemplo, relatar os acontecimentos a uma terceira pessoa e indicá-la como testemunha.” Este é um tipo de prova pouco valorada, “mas em casos de assédio pode não restar muitas opções”.

Bárbara Norton de Matos relatou ameaças de despedimento
(Foto: Carlos Manuel Martins/Global Imagens)

E alerta que, não se conseguindo provar o crime, “muitos são os agressores que viram as regras do jogo e terminam a apresentar queixa contra as vítimas fazendo destas o lobo mau da história”. Acabam acusadas de inventar uma mentira. As questões que se levantam nestes crimes acentuam-se quando acontecem em contexto laboral. É preciso mudanças, sem cair em extremismos. “Os crimes praticados no silêncio da noite têm margens de impunidade muito grandes. Não basta que o legislador criminalize condutas. É necessário flexibilização dos meios de prova.” Pode acabar por ser a experiência judicial dos magistrados a “salvar a honra do convento”, ao “aferir da credibilidade da vítima” e “do interesse da mesma em retirar ou não partido da situação”, explica Sara.

O fenómeno vai gerar mudanças?

As sementes foram lançadas, a denúncia de Sofia Arruda reacendeu um debate que foi esfriado em 2017. Mas será que é fenómeno fugaz ou vai ter o impacto transformador que teve na América? Zara Pinto Coelho acredita que depende de como o debate for feito. “Se continuarmos a falar apenas a título individual e não pensarmos nas mudanças estruturais que têm que ser feitas, não.” Este não é só um problema de “maçãs podres” no meio televisivo, é “estrutural, transversal”. “O #MeToo original teve consequências. Nada mais ficou igual. As instituições começaram a introduzir mudanças.”

Raquel Henriques deixou de trabalhar como atriz por não ter cedido
(Foto: DR)

Isso também pode acontecer em Portugal? “Há sinais de que já está a fazer mexer.” A RTP vai ter um código antiassédio sexual, a TVI prepara um plano de ação sobre o assédio, a SIC tem procedimentos desde 2016 e quer coordenar-se com produtoras. Os canais estão a querer prevenir o assédio sexual no trabalho. Mas é preciso que o sistema judicial entre na discussão. “Em 2017, as queixas aumentaram muito. E o que é que depois o sistema fez com isso?”, questiona Zara Pinto Coelho. A UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta já defendeu que o assédio sexual deve ser crime público porque a vítima sente que ninguém vai acreditar nela e tem medo. Mas o silêncio está a quebrar-se e a mudança está à espreita. Resta esperar pelos próximos episódios.