Melatonina, a hormona que acaba com muitas noites mal dormidas

Há vários estudos sobre as potencialidades da melatonina em diversas áreas

Os problemas de sono afetam milhões de portugueses e o recurso a suplementos com melatonina não pára de crescer. Em 2020, venderam-se 600 mil embalagens. Uma arma eficaz, mas não perfeita, alertam especialistas.

Vira, revira e volta a virar. O corpo pede descanso, mas a cabeça não pára e, no meio da escuridão e do silêncio, os problemas agigantam-se. Vira, revira e volta a virar. Os problemas de sono afetam milhões de portugueses. Estima-se que só a insónia crónica (três vezes por semana) atingirá cerca de 25% da população. A maioria recorre a medicamentos, sedativos, ansiolíticos e hipnóticos, mas há quem veja nos suplementos alimentares à base de melatonina – a chamada hormona do sono – uma boa arma terapêutica. O recurso a estes produtos, dispensados sem receita médica, cresce de ano para ano e a pandemia ajudou às vendas.

No ano passado, venderam-se 595 681 embalagens de suplementos à base de melatonina nas farmácias e nos espaços de saúde das grandes cadeias de supermercados. Um aumento de 5,3% face a 2019, revelam os dados enviados à “Notícias Magazine” pela HMR, empresa de estudos de mercado e consultoria na área da saúde. Os produtos com melatonina representam mais de 80% de todos os suplementos para o stress e sono vendidos nas farmácias e fora delas.

Todos os anos, há produtos novos nas prateleiras e outros a sair do mercado. A Associação Portuguesa de Suplementos Alimentares (APARD) estima que exista cerca de uma centena de suplementos destinados à promoção do sono e que cerca de metade tenha melatonina. Os produtos para ajudar a dormir são uma pequena franja do mercado dos suplementos alimentares (cerca de 2%), mas ainda assim em crescimento. Para o presidente da APARD, Pedro Lôbo do Vale, o confinamento, o envelhecimento da população, bem como o aumento da prevalência dos problemas do sistema nervoso, ajudam a explicar a maior procura.

Sem evidências para covid

Miguel Meira e Cruz, diretor da Unidade de Sono do Centro Cardiovascular da Faculdade de Medicina de Lisboa, não conhece os números em concreto, mas tem a sensação de que há cada vez mais pessoas a recorrer aos suplementos com melatonina. “Sendo de fácil aquisição e alegadamente com poucos efeitos colaterais, tem sido um produto procurado numa altura em que aumentaram os problemas com os ritmos, em particular o do sono”, refere o especialista, também diretor do Centro Europeu do Sono. Por outro lado, nota, as investigações recentes que apontaram a melatonina como protetora da infeção por SARS-CoV-2 poderão ter influenciado a procura.

Há vários estudos sobre as potencialidades da melatonina em diversas áreas, desde o cancro ao SARS-CoV-2, mas a maioria carece de comprovação científica. Por ora, o que está provado é que esta substância originalmente produzida no cérebro quando começa a anoitecer tem uma ação sedativa e cronobiótica, que funciona como indutor e regulador do sono.

As insónias começaram na adolescência. O sono chegava sempre atrasado e, muitas vezes, Clara ficava até de madrugada à espera do primeiro bocejo para correr para a cama. As dificuldades em adormecer e em manter um sono tranquilo levaram-na a experimentar quase tudo, sem sucesso. Em fases mais agudas, tomou medicação prescrita por médicos, incluindo hipnóticos. Estes fármacos até cumpriam o propósito, “dormia a noite toda”, mas os efeitos secundários alarmaram-na. Deixou os hipnóticos e iniciou uma busca pelos produtos à base de melatonina. “Estava em desespero de causa, só faltava experimentar isso.”

Foi há quase cinco anos. Comprou uma embalagem que lhe aconselharam, “completamente descrente”, e foi surpreendida. Aos poucos, passou a ter sono a horas normais. O vira, revira e volta a virar acompanham Clara há quase 40 anos. A melatonina “não é um milagre”, mas foi uma mudança significativa. “Ainda acordo de noite e continuo a ter fases em que durmo pior”, reconhece. A grande vantagem, nota, é que mesmo quando não dorme bem já não acorda “com aquele peso na cabeça típico de quem toma medicamentos fortes para dormir”.

Controlo não passa pelo Infarmed

“É uma boa arma terapêutica e relativamente inócua em termos de efeitos secundários”, sintetiza André Ponte, psiquiatra do Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada. Alerta, porém, que “há cuidados a ter” com estes produtos que estão à venda sem receita médica e cujo controlo de qualidade não passa pelo Infarmed (os suplementos alimentares estão sob a alçada da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária). André Ponte recorda análises nos Estados Unidos e Canadá a suplementos com melatonina que detetaram enormes divergências entre o produto e a informação apresentada na embalagem. “Encontraram suplementos com menos 80% da quantidade de melatonina anunciada e outros com mais 400%”, realça o também responsável pela consulta da insónia do Hospital Internacional dos Açores.

Miguel Meira e Cruz é ainda mais cauteloso. Reconhece na melatonina uma arma terapêutica importante, desde que administrada de acordo com as indicações. “No que respeita ao sono, as indicações primárias são as alterações do ritmo circadiano sono-vigília, jet lag, algumas alterações de sono nas crianças e ansiedade associada a cirurgia”, explica. Porém, o especialista pede cautelas quando se fala na inocuidade da melatonina porque “faltam estudos com um prazo alargado para assegurar esta inocência da hormona da escuridão”. Sabe-se que pode gerar sonolência prolongada em alguns pacientes suscetíveis, sobretudo se administrada em horários inadequados, e pode interagir com outros medicamentos, nomeadamente, para a epilepsia e para “diluir” o sangue. Ainda há dúvidas sobre a segurança da utilização em grávidas e idosos e não são de excluir possíveis reações alérgicas.

Na insónia crónica, para a qual a melatonina é muito utilizada, “também não existe evidência acumulada que permita assegurar a eficácia e/ou a inocuidade da hormona nestes pacientes, sobretudo quando comparada com as estratégias cognitivo-comportamentais, que devem ser a primeira abordagem naquela condição”, adverte.

Em regra, quando os doentes chegam à consulta de André Ponte com problemas de sono já experimentaram melatonina e outros suplementos de venda livre, sem resultados. No caso da insónia, a primeira abordagem deve ser a terapia cognitivo-comportamental, que passa, por exemplo, por simples ajustes nos horários de sono. “Nem toda a gente precisa de dormir oito horas. Uns precisam de nove, outros de sete e outros de seis horas, depende de pessoa para pessoa”, elucida o psiquiatra. Encurtar ao máximo o tempo que se está na cama – evitar ler, ver televisão ou estar ao telemóvel – é outra regra importante para quem tem insónias.