
Aqui entram o amor, os afetos, a homossexualidade, os riscos, a gravidez, a violência no namoro, e tanto mais. É uma viagem sobre os "lobos maus" da sexualidade. O pediatra Mário Cordeiro lançou-se no mundo de tabus do sexo nas conversas entre pais e filhos em mais um livro. Já lá vão cerca de 60. E faz contas ao tempo que lhe falta, tenta enfiar o "Rossio na Betesga" para não pôr travão à overdose da escrita.
Para um agnóstico sem crença num qualquer futuro para lá da queda do pano, escrever, deixar “património”, é o remédio que apazigua a alma. Aos 65 anos, a sexualidade entra nos livros de um dos mais conhecidos pediatras do país. O mundo sem fim da internet não dá, afinal, todas as respostas às crianças e adolescentes de hoje. Mário Cordeiro dá uma ajuda no livro “Venha conhecer o Lobo Mau” e traz os lobos maus da gravidez, da homossexualidade ou da violência para cima da mesa. Para os desmontar, desmistificar, esclarecer, mostrar que os adolescentes não são todos uns libertinos e até são mais responsáveis hoje. É muito mais do que um guia para a sexualidade, é serviço de cidadania do pediatra que seguiu as pisadas do pai, e que cresceu rodeado de crianças. É para pais e filhos, só para pais ou só para filhos. Para todos quantos queiram aprender.
Lançou um guia para uma sexualidade gratificante e responsável dos mais jovens. Apesar de todos os avanços sociais, o tabu ainda domina o tema nas famílias?
Creio que sim. Vou acompanhando os jovens, não apenas aqui no consultório, mas quando vou ao Secundário dar aulas disto e daquilo. E durante 11 anos fiz parte da associação de pais do liceu dos meus filhos. Notei que, apesar de toda a informação que há – e que é fácil pesquisar, o “doutor Google” dá-nos milhões de entradas para uma simples palavra -, há uma ignorância e muitas noções erradas. As próprias redes sociais, muitas vezes, propalam coisas erradas. E as dúvidas devem ser esclarecidas. Porque se um rapaz de 14 anos até pode ser um compêndio e saber tudo, se calhar outros da mesma idade não sabem.
É para filhos e para pais também…
O livro tentou, por um lado, ser fácil para os pais, porque não só têm de atualizar conhecimentos, como têm de quebrar tabus e falar num certo tipo de linguagem, que é a linguagem científica, com os filhos. Por outro, tentou responder às dúvidas dos mais jovens. Não é para que todos estejam ali a debater o livro, mas para que os jovens também possam ler com gosto, nomeadamente todas as perguntas que tem a ver com eles.
Falar de sexualidade com os filhos com naturalidade não quer dizer sem privacidade. Que linha é que separa?
A linha que separa é o que são factos gerais e é a linha do bom senso. E depende do contexto, da idade – e não há uma idade certa -, da evolução da criança ou adolescente. E se vem a propósito, ressalvo sempre isso, não vamos agora marcar na agenda um dia para falar sobre flores e abelhas. Por exemplo, alguém fala daquele caso em que duas raparigas assassinaram um rapaz. Isso levanta várias questões para lá do crime. Afinal, elas eram lésbicas? Ou tinham uma relação com o rapaz? Pode surgir aí um tema de conversa geral. É aproveitar esses momentos, factos que aparecem em jornais, televisão, revistas a que as crianças dão atenção. Outra coisa – e é aí que está o interdito – é os pais falarem da sua própria relação. Podem e devem dizer que se amam muito, e até falar daquela vez em que o pai levou a mãe a jantar e que o restaurante era horrível. Agora, falar da sua sexualidade ou da dos filhos, isso acho que não. Porque há coisas, como dizem os franceses, “va sans dire”, não é preciso esmiuçar. E é essa a fronteira que deve ser respeitada. Mesmo hoje, em que os pais têm relações muito mais cúmplices e descontraídas com os filhos, a relação não pode ser de igual para igual. Pais são pais, filhos são filhos. É preciso que essa autoridade, que implica algum distanciamento positivo, seja marcada.
A sexualidade, os afetos, a paixão, são uma parte bonita da vida, que não se deve pôr só na caixa dos perigos. É sobretudo aí que os pais erram?
É um dos erros, e não apenas dos pais. A sexualidade é uma coisa bela, bonita. Os afetos, o respeito, a relação com o outro, a cumplicidade, a descoberta do corpo, o toque, toda essa sensibilidade é fantástica, não é por acaso que a pele é o órgão maior em termos de sentido sensual e erótico. E isso é uma coisa que deve ser, no fim de contas, realçada. Mas como tudo na vida, pode ter partes más. Há muitos pais e adultos em geral que não gostam de abordar a sexualidade como uma coisa bela, porque sentem, por um lado, que se os filhos já estão a começar essa fase da vida então é porque eles já estão um bocadinho idosos; depois há uma espécie de inveja de os filhos estarem numa fase da vida fulgurante e os pais, alguns, estarem a sentir-se a vegetar. Errado. Por duas razões. Primeiro, porque há a ideia falsa de que os adolescentes são todos uns malucos e inconscientes. E segundo, porque muitos pais com filhos adolescentes olham para trás e pensam que desde essa idade que a sua relação é um rame-rame. Dormir juntos, tomar o pequeno almoço, trabalhar, regressar estoirado, ver uma série e ir para a cama. E isto repete-se. As surpresas, as coisas bonitas, são importantes para manter a chama e não ficarem amarrados ou invejosos do amor que os filhos estão a viver. O fator surpresa e o namoro são essenciais toda a vida.

(Foto: Gonçalo Villaverde/Global Imagens)
Sobre a ideia de que os adolescentes são uns libertinos, cita um estudo francês que mostrou que preferem descobrir o amor antes do sexo e que a idade das primeiras relações com penetração até está a aumentar. Porque será?
Porque há mais responsabilidade. Há a ideia de que uma gravidez indesejada pode alterar profundamente o percurso de vida. O adiamento é por isso, mas também porque os jovens descobriram, ao invés de gerações anteriores, que há muitas formas de erotismo, de relação sexual, igualmente compensadoras e às vezes até mais, porque implica um jogo de sedução mais lento do que simplesmente a penetração. Recordo-me que quando andava no liceu – foi há algumas décadas, mas não tantas assim -, havia pais que quando os filhos faziam 15 anos arranjavam uma festa com uma série de prostitutas para o rapaz e os amigos. Hoje seria uma aberração. Evidente que se saltava a sedução, já sem falar dos afetos, era exclusivamente, como dizia Natália Correia, o “truca truca”. E isto é infinitamente pobre. Acho que eles hoje descobriram que há outras coisas engraçadas e estimulantes, isto se não forem muito perturbados pelas redes sociais e pela comunicação internética, e também pela pornografia que está a invadir crescentemente o território dos jovens.
A gravidez na adolescência tem vindo a cair e a legalização do aborto também não o fez disparar. Diz que a entrada na universidade é o melhor contracetivo.
A frase não é minha, é do meu grande amigo e tutor Aidan Macfarlane. Ele criou a primeira organização no Reino Unido de saúde na adolescência, e tinha um site pago pelo Governo britânico onde os adolescentes faziam perguntas. E dizia que o melhor método anticoncetivo é entrar na universidade, porque é um projeto de vida em que a pessoa está muito comprometida, a longo prazo. Uma pessoa que quer tirar um curso sonha vir a trabalhar, a ter autonomia, comprar casa, carro, fazer uma viagem e se calhar viver com alguém e ter filhos. Por isso, pensa-se: uma gravidez aqui ia rebentar com tudo isto. No fundo, o que Aidan queria dizer é que o saber e a responsabilidade são os melhores métodos anticoncetivos.
As dúvidas das crianças e jovens às quais responde no livro vão desde masturbação ao número ideal de parceiros. Ainda se surpreende?
Algumas surpreendem. Porque são tão ingénuas, tão pueris, que a pessoa pensa: “Como é que eles não sabem isto?”. Eles podem pesquisar tudo na internet, mas ficam muito baralhados com a profusão da informação e com a maneira como é dada. Ainda no outro dia, tive ocasião de explicar a uma rapariga porque é que se diz que uma mulher é histérica, que se diz menos dos homens. Era como se dissesse que uma mulher tinha aqueles humores do útero, do “histerus”. Isto é possível numa conversa olhos nos olhos. Se for ao Google isto não está nada explicado, diz o que é, não fala dos sentimentos, e não é um motor de busca que o vai fazer, por muito emojis que existam.
Como olha para a atual geração de pais? Estão a fazer um bom trabalho?
Acho que sim. Há uma ligação muito maior aos filhos. Um acompanhar da vida dos filhos, às vezes até exagerado, numa claustrofobia um bocado irritante. Ainda assim, há alguns jovens que andam à solta de mais. No sentido em que os pais ligam-lhes pouco. Os pais chateiam-se, aborrecem-se de estar com os filhos. Isto tem a ver com uma coisa, é que a infância é muito cansativa. Eles fazem-nos cabelos brancos, são uns diabretes. O pediatra Octávio Cunha escreveu um livro sobre a infância que se chama “Adoráveis Chantagistas”, e é realmente isso. Uma birra é uma coisa horrível de aturar. Os pais chegam à adolescência dos filhos já completamente desgastados. Para consumo externo, claro que dizem que os adoram. Mas depois não têm paciência. E os adolescentes precisam dos pais. O que deve haver é mais diálogo e sintonia.
Sobre a saída do armário do “lobo mau” da homossexualidade, diz que é importante os pais pensarem que não há culpas nem “defeito de fabrico”.
A homossexualidade foi sempre vista como um desperdício. Eram pessoas que não iam reproduzir-se. E era vista como anti-natura. Ainda hoje, algumas pessoas acham isso. Daí surgir uma cultura homofóbica. Havia e há uma sensibilidade no ser masculino, os homens são sensíveis, e isso não era admissível, tinham de ser homens de barba rija, armados em machões. A Igreja veio contribuir enormemente para isto, com ideias ultramontanas, algumas delas que permanecem. Sou agnóstico, respeito as crenças, mas também denuncio e a Igreja contribuiu para a perseguição e clandestinidade. Em Portugal, ser homossexual foi crime até 1982, foi preciso passarem oito anos do 25 de Abril para a homossexualidade deixar de ser crime. E ainda hoje muita gente continua com essas ideias. Se um miúdo não quer saltar um muro de dois metros é um mariquinhas. Como se o salto fizesse dele heterossexual. É uma aberração toda esta perspetiva. Se virmos da janela dois adolescentes de sexo diferente a darem um beijo na boca, comentamos logo o amor na adolescência e comovemo-nos. Se forem dois rapazes, toca a correr a persiana. Se forem duas raparigas, é porque devem ser muito amigas. São conceitos totalmente idiotas. Porque é que duas pessoas que se amam não hão de manifestar o seu amor?
E falar do tema não torna as pessoas homossexuais…
A orientação sexual só se manifesta em termos reais no final da adolescência, a partir dos 15, antes disso são sempre experimentações. Um menino que gosta de se vestir de rapariga ou coisa semelhante não é sinal de coisíssima nenhuma. Está provado que a homossexualidade é uma coisa inata, ninguém cultiva isso, nem diz “Eu agora vou ser homossexual”. Não é assim. As pessoas são. Ninguém questiona que uma pessoa seja heterossexual. Ninguém pergunta ao filho porque é que é heterossexual. Estive envolvido na luta pela adoção por casais do mesmo sexo, havia pessoas que diziam que as crianças, coitadas, iam ficar gays ou lésbicas. Ora, a esmagadora maioria dos gays são filhos de casais hetero. Não há relação nenhuma. Estes preconceitos têm de ser vencidos.

(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)
O caso da Hungria, que proibiu a divulgação de conteúdos LGBTI a menores, prova que estamos longe de os vencer?
Falou-se muito do caso abjeto da Hungria, mas quando se pensa na Polónia em que o presidente disse, há escasso tempo, que os movimentos LGBTI eram tão maus ou piores do que o comunismo, isto mostra onde estamos. Ainda no outro dia, estive com um casal de lésbicas que trabalham na União Europeia e que não podem ir à Hungria. São casadas, mas não podem andar de mão dada no meio de Budapeste, porque o senhor Orbán, que é um ditador, diz que as crianças podem ficar muito mal impressionadas. E se forem ao Dubai, ou à Arábia Saudita, são presas. É chocante, e daí ter ficado muito desagradado com a atitude do Governo português, que agora já emendou a mão, de não ter assinado logo a declaração contra a nova lei húngara. Devíamos ter sido um dos primeiros, até pelo facto de termos a presidência e tratando-se de uma coisa tão grave.
O movimento contra as aulas de Cidadania em Portugal também é exemplo do caminho que falta?
Este movimento das aulas de Cidadania foi um epifenómeno, mas é representativo e mostra que há forças de bloqueio, de resistência, que têm acesso a poder e que podem inverter as coisas. Respeito que as pessoas tenham uma opinião, não tenho problema com quem acha que a Terra é plana. Agora se se dá poder a essa pessoa, por exemplo, para definir programas para as escolas, então aí já me assusta. Porque essa pessoa vai pôr isso nos manuais de Geografia e dizer aos professores que têm de ensinar que a Terra é plana.
É defensor destas aulas, mas não é a favor das de educação sexual. Porquê?
Acho que a educação sexual é uma coisa transversal, que se devem aproveitar as oportunidades, os contextos e os momentos. As aulas de educação sexual, designadamente quando se fizeram de um modo explícito ao pôr um preservativo numa banana e coisas assim, podem ferir crianças que ainda não estão preparadas para isso. É melhor aproveitar os fenómenos não tão diretos, não tão gráficos, e ir buscar coisas a todas as disciplinas. Quando se fala d’”Os Maias”, pode ser interessante falar do que é o incesto. Já a Cidadania tem a ver com um exercício dos direitos e deveres. Em relação ao meio ambiente, aos animais, e outras tantas coisas. No fundo, é falar do que um cidadão deve ser. E isso inclui obviamente falar de sexualidade.
Nomeadamente da violência no namoro, que é aceite por quase dois terços dos jovens. Consegue entender o fenómeno numa geração tão informada?
Isto é a evidência de que a informação não é conhecimento. E que o conhecimento não é sabedoria. A informação está em overdose e passa uma ideia de poder. O controlo não é só a agressão física, é a psicológica, é o controlo do telemóvel, das redes sociais. Esse tipo de coação é violência. Num namoro não pode caber nenhum ato de desrespeito. E o facto de em cerca de metade dos casos isso acontecer, até mesmo fisicamente, e de ser ainda em maior percentagem os que aceitam essa violência, é preocupante. Não pode ser. O amor não é uma prisão. Pelo contrário, é um espaço amplo de liberdade, de acreditar no outro, de confiar, de cumplicidade. Essa noção de que “ele controla-me porque gosta muito de mim e quer saber com quem é que falo” tem de ser desfeita. Isso não é amar.
O mundo virtual entrou no jogo e surgiu o cyberbullying. Diz que é preciso educar as crianças para o uso da internet.
Hoje, está tudo à distância de um clique. Antes, podíamos pensar que estávamos furiosos com a namorada, e que quando chegássemos ao liceu íamos dizer tudo e mais alguma coisa, mas se calhar a caminho do liceu íamos a pensar que talvez não valesse a pena. Agora não há esse tempo de latência. E a raiva é logo canalizada. Não dá tempo para passar do estado da raiva, que é acéfala, para momentos mais lúcidos. Se escrevo uma publicação num momento de raiva, sai tudo completamente desproporcionado e quando publico já não me posso arrepender. E aquilo que antes era o apoio dos amigos, que é muito positivo, é substituído pelo número de likes. Se aparecem 500 pessoas a achar bem que diga mal da minha namorada, então, sinto que tenho 500 amigos. Isto tem de ser falado na escola, família. É uma deturpação das relações humanas.
A lei da autodeterminação de género está de volta à ribalta, precisamente no que toca ao respeito dos jovens trans nas escolas. A legislação veio permitir a mudança de sexo no registo civil aos 16 anos. Espanha definiu recentemente os 14. O que é que defende?
A identidade de género estabelece-se aos dois anos e meio. Mas acho os 14 muito cedo, porque há uma enorme imaturidade em relação ao próprio corpo, a gostar do corpo ou não. Depois, porque sendo uma coisa tão importante e que deverá ser definitiva, tem de ser uma coisa bem pensada, com o apoio e parecer de especialistas. A própria legislação portuguesa consagra coisas importantes a partir dos 16, como o casamento. A lei não pode antecipar muita coisa e sobretudo em coisas tão críticas em que não dá para andar para a frente e para trás, dia sim, dia não.
O sistema de “bolhas” e o ensino remoto vão manter-se no próximo ano letivo. Que impacto é que isto pode vir a ter nas crianças e jovens?
O ser humano precisa de tocar-se e cheirar-se. Não somos apenas audiovisuais. A memória olfativa e tátil é muito forte. As barreiras que a covid impõe, como a distância física, as máscaras e todos os cuidados que sabemos necessários não deixam de ser barreiras e têm um efeito muito negativo nas relações entre crianças e entre jovens, e nestes, por exemplo, impedem o namoro, a experimentação, as condutas de ensaio próprias desta idade. Os jovens precisam de tocar-se, de experimentar o corpo dos outros, de o sentir, de cheirarem os outros e sentirem as feromonas que os outros exalam. Com máscaras e distanciamento, com “bolhas” e outras coisas que tal? Será difícil.
Há a ideia generalizada de que estão menos sensibilizados para a vacinação. Sente isso?
Vejo mais pais preocupados com a vacinação dos seus filhos, no sentido de pensarem que pode haver efeitos secundários, do que jovens preocupados com o assunto. Eles já fizeram tantos e tantos testes, PCR e outros, nas escolas e a propósito disto e daquilo, que, francamente, não creio que haja resistências de maior. Obviamente que a task force terá de ter uma estratégia e uma campanha diferente da dos mais velhos. Espero que isso esteja a ser pensado e considero que os grupos acima de 12 anos deveriam ser imediatamente vacinados.
Quanto às dúvidas dos pais, vacinar as crianças contra a covid: sim ou não?
Sim. Se as vacinas forem consideradas seguras pelas firmas e pelas agências reguladoras europeia e nacional, sem sombra de dúvida.
É um feminista e deixa isso claro no livro. É uma urgência lutar pela igualdade?
Acho que é uma luta muito necessária e urgente. As mulheres continuam a ser preteridas, mas obviamente que a situação é melhor do que era há uns anos, e felizmente veem-se cada vez mais mulheres em lugares de poder. Mas ainda há muitas empresas onde os homens são os administradores e as mulheres as secretárias, ou com homens e mulheres a fazer o mesmo e eles a ganhar mais do que elas. Não defendo que haja igualdade de género, mas defendo acerrimamente que haja igualdade de direitos de género. Homens e mulheres são diferentes. Biologicamente, neurologicamente. Outra coisa são os direitos, sociais, cívicos, que têm de ser iguais. E admito que as mulheres têm um caminho com mais pedregulhos para chegar a algum lado, disso não tenho dúvida nenhuma. Para um homem, é uma autoestrada.

(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)
Os homens também têm de entrar nesta luta?
A defesa dos direitos das mulheres também dá aos homens mais direitos que eles não tinham. Primeiro, a serem sensíveis, que estava reservado aos poetas, pintores, e aos homossexuais. Depois, o direito a entrarem na vida doméstica, da casa, de tomar conta dos filhos, e aí a legislação também ajuda, com o facto de os pais hoje poderem estar muito mais tempo com os filhos quando nascem. É uma das grandes conquistas sociais. Apesar de ainda haver alguma desconfiança e homens que desdenham, eles é que perdem com isso, momentos belos e mágicos. E há muitas a fazer ainda.
Como mais mulheres em lugares de poder…
Até há bem pouco tempo, havia muito poucas mulheres como chefes de Estado ou de Governo, para lá da Rainha do Reino Unido. O caso típico era Thatcher, que era considerada excelente por ser a Dama de Ferro, ou seja, por no fundo ser uma mulher com “características de macho”. A própria Angela Merkel surpreendia as pessoas se se emocionasse. No fundo, eram vistas como homens mascarados de mulheres. Já a Ursula von der Leyen é completamente diferente e isso não a impede de ser taxativa e ter pulso firme.
A pandemia deu-lhe tempo para escrever. Que mais lhe trouxe?
A pandemia deu-me mais tempo, sobretudo, para ler, passear com a minha mulher e com o Chopin, o nosso cão, e desfrutar da nossa cada vez melhor cidade de Lisboa. Sempre arranjei tempo para escrever. Às vezes, penso nos escritores que tiravam meses e meses, por vezes em quintas ou em espaços de solidão, com empregados a tratarem de tudo, outras pessoas a tomarem conta dos filhos e a não terem de trabalhar para sustentar o quotidiano. Não é o que se passa comigo, nem me vejo nesse cenário idílico. Às vezes, tento “meter o Rossio na Betesga”, mas rentabilizar o tempo é o melhor. Aproveitar as pequenas pausas e espaços de liberdade – e esses, quer eu, quer a minha mulher, tentamos inventá-los.
No livro, aborda o papel que os homens começaram a conquistar na parentalidade. Foi pai pela primeira vez aos 23 anos e pela última aos 46. Foi um pai diferente também em consequência das mudanças sociais?
Não creio que tenha sido no que respeita ao que sempre exigi de mim próprio, deles, e o que procurei transmitir aos meus filhos. As diferenças têm muito mais a ver com o que, desde que o meu filho mais velho nasceu, em 1979, até agora, se passou no Mundo, nas tecnologias. Se formos a ver bem, já nesse tempo havia pessoas, como Brazelton, Winnicott, Aidan Macfarlane e muitos outros que defendiam o que exatamente hoje defendo em termos de educação. A “pólvora” não foi inventada hoje.
Mesmo com cinco filhos, sempre conseguiu reclamar tempo para si, já que os pais, como diz, não devem ser escravos dos filhos?
Sim. Pugnei sempre por isso e encontrei espaços meus, mesmo com trabalho e com filhos pequenos desde há mais de quatro décadas. Os filhos têm de compreender isso, não apenas por respeitarem os pais, mas também para poderem reclamar esses direitos para eles próprios, ao longo da sua vida e do seu processo de autonomia.
É um leitor compulsivo. E já publicou cerca de 60 obras. A primeira que lançou foi em 1991, um romance. O que é que ainda lhe falta escrever?
Comecei a publicar livros há precisamente 30 anos e já publiquei “livros para pais e educadores”, para crianças e também romances, biografias, poesia e dramaturgia. Dá-me um prazer infinito escrever. Enquanto tiver as minhas faculdades mentais, é o que desejo fazer, e tenho vários livros a decorrer, uns em escrita, outros na minha cabeça, sobretudo ficção e poesia. Encontro em tudo motivo para escrever. O que me falta? Tanta coisa. Sei que, aos 65 anos, o tempo que me resta é pouco. Não vou ter tempo para tudo o que gostaria de fazer. Tenho pena. Como sou agnóstico, não me posso refugiar num qualquer “depois”. Espero que o Cosmos me reserve alguma coisa de boa, de preferência eterna, mas não a vida eterna que uma qualquer Igreja me promete.
Mas no tempo que ainda lhe resta…
Para lá do romance que vou publicar em setembro, tenciono escrever várias coisas sobre música, pintura e Natureza, tudo ficção, e também muita poesia. Tenho três livros de poesia prontos, mas a resposta das editoras não pode, obviamente, corresponder a esta “overdose”. Tal como os músicos, ficarão para obras póstumas. Creio que a tranquilidade perante a morte é coisa que se adquire, e que permite viver cada dia como uma nova oportunidade. Já vivi muito, embora continue ávido de vida e de viver. Veremos as cenas dos próximos capítulos.