Manuel Maria Carrilho: “A política não é para fazer amigos, é para servir o país”

Afastado da vida pública há quase dez anos, o antigo ministro da Cultura dá uma rara entrevista à “Notícias Magazine” em que fala da pandemia e do populismo, das presidenciais e do PS, da Cultura e do culto do ilimitado, mas também das curvas que a vida pessoal deu nos últimos anos. O filósofo acaba de ser ilibado pela terceira vez do crime de violência doméstica.

Ao espelho, Manuel Maria Carrilho vê um homem frugal e frontal, que gosta de andar descalço e de dizer o que pensa, lamentando que “a frontalidade seja, tantas vezes, confundida com agressividade”. Antigo ministro da Cultura de António Guterres – o diário espanhol “El Mundo” chegou a considerá-lo o melhor ministro da Cultura da Europa –, abandonou a vida política há dez anos, mas não vê razões para um divórcio partidário. “Sou um militante em hibernação”, diz. Está também afastado da vida pública, decisão que tomou depois de ser acusado de violência doméstica num processo que durou vários anos e que agora chegou ao fim com uma sentença que o iliba. Nem assim confia na justiça portuguesa, mas aproveitou o tempo para “ler muito, escrever mais e amadurecer ideias”.

Aos 69 anos, o filósofo e professor catedrático tem dois livros quase a chegar ao mercado: “Sem retorno” e “Impensar (Dicionário breve da ignorância contemporânea)”. No Porto, em Serralves, conversou com a “Notícias Magazine” durante mais de oito horas. Se pudesse caber inteiro numa frase, seria esta: “Sem medo do populismo”.

Tem googlado o seu nome? As últimas notícias são todas sobre a sua absolvição no caso de violência doméstica. Sente que essa absolvição judicial tem representação social?
Sim, creio que sim, já é a terceira absolvição nesse processo. Mas a sentença não é só uma absolvição, lá diz-se que o meu comportamento apurado no julgamento está nas “antípodas” – a palavra é do tribunal – de um comportamento de violência doméstica.

Como encara este desfecho?
Com serenidade e lucidez. Tenho a noção que ninguém me compensará, nem a mim nem aos meus filhos, do calvário que passámos e das suas consequências. Mas há uma coisa muito importante, que é o tempo. Sabe, eu não acredito na justiça – mas acredito no poder esclarecedor do tempo. Isso sim, e é o que se tem visto.

Não acredita na justiça que o absolveu?
Independentemente disso, também vi o horror judiciário: vi um tribunal aceitar e promover imagens manipuladas; vi um tribunal ignorar pareceres técnico-científicos sobre essa manipulação; vi um tribunal recusar como testemunhas professores catedráticos que provavam essa manipulação; vi um tribunal ignorar o manuscrito da autora dessa manipulação de imagens. Vi um tribunal fazer isso tudo, e muito mais… É difícil acreditar numa tal justiça. Para já não falar em tudo o que se sabe hoje sobre o Tribunal da Relação de Lisboa… E tudo será, a seu tempo, publicamente documentado e demonstrado. Mas acredito no tempo. Talvez porque sempre segui uma máxima que ouvi a François Mitterrand e que adotei muito novo, máxima que diz que em situações chave da vida é preciso cultivar uma paixão muito particular: a paixão da indiferença. Fiz sempre isso, na vida pessoal como na política – e deixo que o tempo faça o resto.

Acha que a opinião pública acredita na sua inocência ou que a sua reputação está ferida de morte?
Depois de se ter provado que as acusações que me foram feitas eram falsas, a situação mudou muito. Mas há sempre um lastro que fica… É muito mau, mas o pior ainda é que assim se descredibiliza o combate contra a violência doméstica, se vê a facilidade com que se pode instrumentalizar uma causa nobre pelos interesses privados mais miseráveis. Falo dos media, mas também dos políticos… houve muita gente metida neste processo.

É uma acusação grave, aos média e aos políticos. Pode concretizar?
Concretizarei tudo, no tempo e no lugar próprios. Tudo, garanto-lhe, mas não hoje ou aqui.

A sua vida privada foi devassada, mas de alguma forma também contribuiu para isso. Retrospetivamente, arrepende-se de alguma coisa?
Claro, mas é preciso ver sempre as coisas no contexto. Quando somos apanhados traiçoeiramente numa falsa acusação destas, das duas uma: ou vamos para um canto e toda a gente pensa que somos culpados; ou nos defendemos, dizendo a verdade. Foi o que fiz. Uma vez que tornaram o assunto público, entendi que devia defender-me publicamente. Nunca, nunca mesmo, ninguém me ouvira até então uma palavra sobre vidas privadas.

A dada altura, o processo coincide com o #metoo, um movimento contra a agressão sexual. Foi prejudicado por essa coincidência?
Favorecido não fui, certamente. Hoje há múltiplos fanatismos que minam as sociedades contemporâneas, esse é um deles. Tem muito pouco a ver com a igualdade entre homens e mulheres, que sempre defendi. É um movimento de ressentimento, que é uma paixão muito patológica…

Condena a violência doméstica, física ou psicológica?
Completamente, sou uma pessoa de convicções e de diálogo. Hoje confunde-se com demasiada facilidade uma pessoa frontal com uma pessoa agressiva. Nunca me zanguei com ninguém por dizer o que penso, ou um outro pensa, por mais oposto que seja o que pensamos. Foi nesse mundo que fui criado, em que pensava o contrário, por exemplo, do que pensava o meu pai, havia frontalidade mas ninguém confundia isso com agressividade.

Por causa do processo está afastado há sete anos da vida pública. O juízo público foi a condenação que não teve em tribunal?
Já tinha deixado a “vida pública”, mas eu aguento bem as coisas, tenho a pele dura. E sou mesmo indiferente à opinião das pessoas.

Não é bom a “ser vítima”, como disse uma vez.
Não sou, não, nunca me senti vítima de nada. Há sentimentos que não tenho.

Incluindo o sentimento de procurar solidariedade alheia?
Sabe, quando estive no Governo de António Guterres, quando havia uma crise, ele aconselhava os ministros a vitimizarem-se. É uma coisa que nunca consegui fazer. Posso sentir-me um mártir ao fim destes sete anos, isso talvez, mas não me sinto vítima. Tive sempre os meus filhos ao meu lado – tinham 9 e 3 anos na altura, têm 16 e 10 anos, agora. Num processo como este, isso quer dizer alguma coisa, não é? O resto não interessa.

Em todo o caso, e a expressão é sua, foi como que “enterrado vivo”. Portanto, reconhece que foi ostracizado.
A partir do momento em que fui pública e falsamente acusado, e depois de um período de indispensável defesa, tomei uma posição de grande reserva pública. Quis poupar as pessoas e poupar-me a mim. Foi mais isso.

Mas criou um blogue e aderiu ao YouTube. Não foi para contornar um certo silenciamento?
Criei o meu site há muito tempo, em 2003. Tenho lá instalado o meu “mural” do Facebook e o blogue “Pensar o mundo”. No ano passado criei um canal no YouTube, depois interrompi, talvez retome este ano, a ver vamos…

Não tem a ver com uma necessidade de continuar a ser ouvido?
Gosto de me exprimir, tenho experiência, conhecimento, opinião. Trabalhei muito durante estes anos, nunca deixei de pensar, de ler e de escrever. Consolidei muitas ideias. Sou uma pessoa ativa, não sou depressivo nem ressentido. Pelo contrário, cultivo o esquecimento. Nunca ninguém me ouviu falar, por muitas polémicas que tenha tido, de inimigos. Esqueço, simplesmente, às vezes até os nomes. Sou muito virado para o futuro, novos projetos, iniciativas…

A verdade é que chega de Paris, onde era embaixador de Portugal junto da UNESCO, e já não volta para a faculdade, onde era professor catedrático.
Ainda voltei. Acontece que estive na vida política muito mais tempo do que pensava. Quando saí, em 1995, para ser ministro da Cultura, era o catedrático mais novo do meu departamento. Quando voltei, 15 anos depois, era o mais antigo e estava tudo diferente. Aposentei-me aos 62 anos para fazer o que queria, sobretudo para escrever. Os anos de Paris foram muito bons, não só em termos de trabalho na UNESCO – Portugal teve o maior número de presidências e vice-presidências de comités que alguma vez tinha tido -, mas também porque retomei muitos contactos com filósofos, intelectuais, instituições. Saí de Paris com contratos assinados, decidido a cortar com a vida política e a retomar o meu trabalho intelectual. Não houve nenhuma diferença no meu dia-a-dia, antes e depois da reforma – nem sei quando foi!

Mantém o vínculo ao Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa?
Sim, sou membro “fundador” desse excelente Instituto e na Universidade trabalho intermitentemente, pro bono, claro. Sempre fiz o que gosto, não distingo trabalho e prazer, decidi muito cedo ter a profissão que me permitisse ter a vida que mais gosto, que é pensar, ler e escrever, ensinar e debater.

Costumava debater com José Saramago, com Eduardo Prado Coelho, com Fernando Gil, pessoas que já morreram. Fazem-lhe muita falta?
[Silêncio] Muita falta. O Emídio Rangel também, e tantos outros. O Eduardo era uma espécie de mito para mim quando vim para Lisboa. Quando fui para a faculdade, levava na cabeça querer conhecê-lo. Um dia comprei o único exemplar da revista “Scilicet”, que habitualmente era para ele. Dias depois, ouço alguém no bar da Faculdade atrás de mim, que me sussurra: “Então foi você que comprou a “Scilicet”? Era o Eduardo. Conhecemo-nos assim, tornámo-nos muito amigos e, quando fui ministro da Cultura, ele foi durante muito tempo o meu principal, mais crítico e mais lúcido apoiante.. Era um dos meus, realmente.

Antes de Lisboa, viveu em Viseu. Depois de Lisboa, viveu em Paris e quase se mudou de vez para a Califórnia. Hoje sente que pertence onde?
A única cidade pela qual seria capaz de trocar Lisboa é, de facto, São Francisco, na Califórnia, tem a ver com a luz…. Mas agora pertenço ao bairro do Arco do Cego, onde vivo desde 1972. Sou completamente “de Lisboa”, é a cidade onde estudei e fiz muitos amigos. E gosto da Lisboa “nova”, dos passeios largos para andar quilómetros sem fim, também gosto muito do rio… Mas continuo muito ligado a Viseu, se não fossem os meus filhos pequenos, hoje viveria entre a quinta de Viseu e Paris.

Quando troca Viseu por Lisboa, aos 18 anos, deixa atrás de si um pai-político, Manuel Engrácia Carrilho, cuja memória ainda hoje é muito acarinhada na cidade, que era de direita. Essa falta de sintonia ideológica contribuiu para a sua saída?
Não. O meu pai foi um político do antigo regime, mas foi sempre muito liberal. Eu usava boina à Che Guevara e já lhe comunicara que nunca iria fazer a guerra colonial. Ele respeitava isso. Teve vida antes e depois do 25 de abril. Antes foi tudo, deputado, governador civil, provedor da Misericórdia durante 42 anos, etc. Aliás, ele entrou na política sobretudo pelo lado social da ação católica. Depois do 25 de Abril afastou-se, mas foi recebendo convites de todos os partidos para ser candidato à Câmara. Acabou por se candidatar em 1986, como independente, com o apoio do CDS, que tinha 4 ou 5 %, e ganhou. Tinha 70 anos e ainda fez imensas coisas. Era um visionário muito concretizador.

De alguma forma, foi inspirado por ele na sua ação política?
As pessoas surpreendem-se por eu, sendo filósofo, ter tido uma imersão tão grande na ação política. Penso que sim, que isso tem muito a ver com o meu pai. O fascínio que tinha pela ação política dele era enorme, mesmo estando em lados opostos. Arrepia-me um pouco dizer isto, mas ele foi um exemplo da dedicação pública, do sentido de missão, do desapego ao poder que raramente encontrei em democracia. E foi com esse sentido de missão que aceitei ser ministro, em 1995.

Nesse ano em que o seu pai foi eleito, torna-se militante do PS. Hoje está afastado do partido mas não entrega o cartão. Porquê?
Hoje os partidos são meros dispositivos eleitorais, um vazio – ou um crematório – de ideias. Eu animei muitos debates no tempo de Soares, de Sampaio, de Guterres. E ainda organizei o “Laboratório de Ideias para Portugal” para o Seguro. Desde então, sou um militante em hibernação.

Não é suficientemente atrativo para voltar nem demasiado chocante para sair, é isso?
É mais ou menos isso. E sinto-me bem assim, à distância. Fiz o que pude, quando pude, pelo país.

É uma decisão fechada?
“Nunca digas nunca”, não é? Mas é improvável que algo ou alguém conseguisse convencer-me a voltar ao ativo.

Falou de António José Seguro, que teve uma curta e controversa existência como secretário-geral do PS. A esta distância, continuaria a preferir que ele tivesse continuado à frente do partido em vez de António Costa?
Tive sempre uma boa relação pessoal com o António, fui vice-presidente dele no Parlamento, foi ele quem me lançou para a disputa de Lisboa. Mas nunca percebi o que ele queria para o país, ao contrário do Seguro, que foi sempre julgado por uma imagem que não passou. É assim a política, hoje…

António Costa é considerado um habilidoso político. Também é assim que o vê?
Hábil, sem dúvida, mas inconsistente. Em 2015 antecipei a jogada dele aí oito dias antes das eleições, quando o ouvi num comício. Percebi logo tudo. E acho que na altura fez bem em acabar com o tabu das alianças à esquerda, em política não pode haver tabus desse tipo, à esquerda ou à direita, a política faz-se com as forças políticas que os cidadãos escolhem. Depois…é outra conversa. A geringonça (eu prefiro chamar-lhe engenhoca) nunca foi nada consistente, viabilizou o acesso ao poder do PS, do PCP e do Bloco, mais nada. E o curioso é que quem mais cedeu foram o PC e o BE. As pessoas diziam que havia uma experiência diferente de esquerda em Portugal, mas não houve nada. A esquerda radical ajoelhou-se simplesmente ao Costa e à Europa, a troco de uns troco por vezes sinistros, como aconteceu na educação. Mas engoliu o défice, a dívida, etc., tudo o que sempre rejeitara.
Fico com a sensação de que não deixou muitos amigos na política nem no partido. Contestou Guterres, criticou o Ferro, pediu a expulsão de Sócrates, não se revê em Costa.
A política não é para fazer amigos, é para servir o país. Tenho lá amigos, e bons, mas a maior parte dos meus amigos são de outros mundos.

Como é hoje a sua relação com António Guterres?
Normal, ele foi o primeiro-ministro que mais atenção deu à Cultura em Portugal. Fê-lo com grande clareza, desde a barragem da Côa ao preço fixo do livro. Apoiou-me sempre, no primeiro mandato. Depois teve alguns infortúnios pesados na vida pessoal, houve o empate de 1999 e o “segundo” Guterres tornou-se num personagem político muito diferente do primeiro, com quem deixei de me identificar. Saí.

Teve um desgosto com ele?
O meu desgosto foi ele não ter tido maioria absoluta em 1999, merecia-a pelo que fez e pelos projetos que tinha. E depois por isso ter saído na lotaria ao José Sócrates, com quem tive sempre as piores relações políticas.

Partilhou gabinete com Sócrates, na altura em que ambos eram vice-presidentes da bancada socialista, no governo de Durão Barroso. Como era?
Eu, o Guilherme Oliveira Martins e havia mais alguém…só posso dizer que, com o que percebi nessa altura, nada do que depois se veio a dizer me surpreendeu.

Nessa altura, a abstenção já rondava os três milhões, hoje está perto dos cinco milhões de votantes. Como lê a progressiva massiva abstenção, sobretudo das novas gerações?
Pergunto-me se iremos a caminho de sociedades em que onde votam 10% dos eleitores. Há um professor de Harvard, Yascha Mounk, que escreveu um livro, “People versus Democracy”, onde fala sobre a desconsolidação da democracia. Ele destaca dados muito interessantes, por exemplo, enquanto nos anos 30 do século XX mais de 70% dos inquiridos consideravam vital viver em democracia, essa percentagem cai para cerca de 20% no começo do nosso século. E enquanto em 1995 apenas cerca de 20% consideravam tolerável um regime autoritário, essa percentagem quase dobra nos nossos dias.

A confiança, uma vez corroída, não pode ser restaurada?
Enquanto tivermos políticos obcecados com a comunicação, os políticos que eu chamo “da promessa”, nada mudará. É nesse caldo que cresce a demagogia, prefiro esse termo ao de “populismo”. O chamado populismo é apenas a tradução da profunda crise de representação da nossas democracias, associada a fenómenos como a corrupção, etc.. Eu sou contra a diabolização do populismo, que procura esconder isto, imunizar o sistema contra a crítica, e isto com a colaboração dos media. Veja, quem na verdade inventou o Chega? Foram os media e os críticos, foram aquelas infelicidades do presidente do parlamento [Ferro Rodrigues] e outras do género. No fundo, o que políticos como Ferro Rodrigues têm é medo, e muito, quando diabolizam o populismo. Porque eles sabem muito bem que realmente não representam nada nem ninguém, apenas os interesses instalados. Isto é dramático para a democracia, aqui e por todo o Ocidente, mas não é diabolizando um inimigo imaginário que se resolve. Resolve-se debatendo tudo: a representatividade dos eleitos, a legitimidade dos mandatos, a eficácia (ou impotência) do poder, o dever de proximidade, etc. A pergunta que os políticos tem de fazer é: “Porque é que, sendo eleito, não sou representativo? Porque é que as pessoas não confiam em mim?” e tantas outras, neste sentido.

Nestas presidenciais, o PS volta a não apresentar candidato às presidenciais e Marcelo Rebelo de Sousa prepara-se para ser reeleito. Antecipou o guião presidencial do atual presidente?
Sim, de resto em 2016 defini a eleição do presidente da República como um puro deslizar do ecrã para a rua. Marcelo não conseguiu nenhuma das coisas que queria na vida, como líder do partido, como ministro, na Câmara de Lisboa. Apostou tudo na presidência a partir daquele nicho televisivo meio sul-americano, e conseguiu.. Mas tem feito uma presidência sem desígnio, uma presidência amável, um bocado infantilizada na minha perspectiva. Para quem conhece o seu currículo académico e a sua capacidade intelectual, é um desperdício. E na pandemia, andou muito mal. Foi o primeiro a confinar-se, dramatizando as coisas. E depois ziguezagueou tanto ou mais do que o governo, fala de mais, não sabe ter reserva, é destituído de grandeza.

Marcelo esteve mal na pandemia. E o Governo?
Tem sido desastroso, quer em termos quer de medidas, quer de comunicação. A situação era e é extremamente difícil e eu detesto críticas fáceis. Mas houve um tempo para pensar noutras respostas, numa verdadeira estratégia e isso não aconteceu. Tudo foi feito confusamente, numa lógica de remendo. E foi assim que chegámos aqui.

Estão a morrer mais de cem pessoas por dia em Portugal. O que correu mal, está a correr ainda pior. É essa falta de método, de que fala, que tem estado a falhar?
Sabe-se que, perante fenómenos possíveis mas imprevisíveis, só há três posições: precaução, prevenção ou preparação. Nós conseguimos não ter nenhuma, ignoraram-se todos os avisos, houve muitos alertas desde 2008, relatórios, epidemiologistas, virólogos, a própria CIA, imagine! E de 2013 para cá houve imensos sinais que ninguém quis levar a sério, a não ser nalguns países, que por acaso são os que têm hoje menos danos, que seguiram a estratégia da preparação. E não se pode esquecer que se trata de uma situação que foi manipulada na origem pela China, que matou pessoas, escondeu documentos, destruiu amostras, clínicas, etc. Há um responsável pelo que está a acontecer no mundo: é a China. Mas não há coragem para o assumir.

Mas o ponto é Portugal, não soube reagir?
Quando não há estratégia, sobra apenas o controlo de danos, como se tem visto. As mensagens do primeiro-ministro e do presidente da República foram sempre em ziguezague, foram o completo caos do ponto de vista da liderança de um país. Há uma crítica que não se pode deixar de fazer, que é não se ter aproveitado o verão para repensar tudo e definir uma estratégia. Num primeiro surto, compreende-se; depois, é totalmente intolerável. Ter passado o verão na jubilação de que estava tudo resolvido, e não ter havido uma minuciosa análise dos países onde as coisas estavam a correr bem melhor, nem acordos com os privados, tudo isto foi de uma enorme irresponsabilidade do governo e do presidente. Note que, com esta política, este governo pode ficar responsável por mais mortes, não provocadas pelo Covid-19, do que aquelas que fez a guerra colonial em combate. Como aceitar isto?

Na guerra colonial morreram cerca de oito mil militares, metade em combate. Desde março, já morreram em Portugal mais de oito mil pessoas de covid-19.
Falo só do excesso, em relação à média, de mortes não-Covid, que é superior ao número das mortes Covid. E porque é que não olhámos para as boas referências? Porque é que não olhámos para Taiwan, que tem 10 mortos numa população de 24 milhões? Porque é que não olhamos para o Vietname que, com 95 milhões de pessoas, tem apenas 35 mortos? Ou para a Tailândia, com uma população de 69 milhões de pessoas e apenas 139 mortos?

Ficámos paralisados pelo medo?
Esta pandemia sanitária deve ser compreendida no quadro do que eu tenho chamado o paradigma do ilimitado. Temos vivido nas últimas décadas como se tudo fosse ilimitado: energia, dívida, consumo, direitos, saúde, etc. E a pandemia trouxe a noção dos limites de tudo isso, pondo em causa o nosso modo de vida, o nosso conforto. Foi um choque tremendo. E quem é que surfou a onda? A comunicação. Nós não temos uma pandemia sanitária, temos uma pandemia sanitário-comunicacional, que criou um medo descontrolado em todo o mundo, uma verdadeira psicose global. Porque as pessoas viviam como se fossem imortais. O que é que o vírus trouxe? A noção de que existe o imprevisível, a dor, o desconhecido, a doença, a morte, em suma, limites, imensos e incontornáveis limites reais. Globalizou-se assim uma psicose em que todos os noticiários do mundo estão a contar os mortos ao minuto e ignoram os mortos que há noutros setores, e que são muito maiores. Veja: no ano passado morreram 9 milhões de pessoas de cancro, 9 milhões de pessoas de fome, metade crianças, são cerca de 25 mil por dia. Morreram 3 milhões de doenças bronco-pneumoniais, 2,5 milhões de doenças respiratórias, um milhão de sida, um milhão de tuberculose, um milhão na China e outro na Índia com a poluição, 600 mil de gripe sazonal. São mais de 30 milhões e não há uma só notícia sobre tudo isto. O que é que aconteceu no mundo, em termos civilizacionais, que leva a ignorar tudo isto e a uma concentração patológica no coronavírus?

Tem resposta para isso?
Trabalho nisso, é o tema do meu próximo livro, mas os governos é que deviam ter. Nisto é que era bom que a Europa se fizesse ouvir, para lá de apregoar miragens de milhões atrás de milhões. O facto é que, com esta pandemia estamos a viver a primeira psicose global. O mundo todo está dominado pelo medo – e o medo cria nos governos uma tentação de autoritarismo e uma sensação de impunidade, que são ambas muito perigosas.

Enquanto a vacina não chega para criar imunidade de grupo, qual deve ser a prioridade do Governo?
Os erros, não nos iludamos, são irremediáveis. Mas a prioridade devia ser salvar as escolas, o ensino, os jovens. O que está a acontecer na educação é gravíssimo. Olhe que nem durante os bombardeamentos das guerras mundiais as escolas fechavam. Temos um ministério da educação lamentável, sem dúvida o pior desde o 25 de Abril. Não se ter a noção dos efeitos que a paragem das aulas teve e terá na formação escolar, social e afetiva dos jovens, é inacreditável.

A pandemia confrontou-nos com a nossa finitude, é normal que as pessoas tentem evitar a dor e adiar a morte, faz parte da natureza humana.
É normal, mas convém distinguir a ilusão da realidade. É preciso pensar. É como o crescimento, que nunca mais iria parar… É por isso que vejo o ilimitado em todos estes problemas. Nós perdemos a noção da finitude, dos limites, mas é a finitude que dá sentido ao que somos e ao que fazemos.

Já referiu aqui várias vezes o paradigma do ilimitado. Usa-o para ler Portugal, a Europa e o Mundo no momento presente. A que limites se refere?
O crescimento, o consumo, a energia, a dívida, os direitos, a própria vida, vivemos como se tudo fosse ilimitado num mundo que é, em todos os aspetos, finito. É o problema central do mundo contemporâneo. É um novo mundo, criado a partir dos anos 70, 80 do século passado, que teve a sua raiz no pós-guerra, com a criação, pela primeira vez, de um mundo de abundância. É a isto que chamo o “paradigma do ilimitado”, e que tem quatro eixos fundamentais: o individualismo, a globalização, as novas tecnologias e o financismo. Eixos que estão estruturalmente ligados entre si e se reforçam uns aos outros, criando o que é hoje a mentalidade ocidental dominante.

O que acontece quando enfrentamos um limite?
Não o aceitamos, não o compreendemos o seu papel e procuramos ir sempre além… É esse também, como já referi, a raiz do problema com a covid-19. Vivemos na linha daquela frase de Fernando Pessoa do “cadáver adiado que procria”; e muitas vezes com ideias que já nada têm a ver com a realidade…

Que ideias dessas já prescreveram?
Desde logo, ao nível político, as ideologias. Dissolveram-se, acabaram. Diz-se que a social-democracia está em crise. Então, e o liberalismo, a democracia cristã, o comunismo, não estão? Por outro lado, o tempo só existe como presente, o passado e o futuro desapareceram. E sem dimensões de médio/longo prazo não pode haver convicções nem estruturar projetos. O presentismo bloqueia tudo. Hoje há, é certo, alguns candidatos a esse papel de ideologias, como o ecologismo ou o feminismo, mas não passam de elaborações pontuais, sem força agregadora ou capacidade de mobilização coletiva. Temos também a erosão do discurso político, que na verdade é praticamente igual em todos os partidos, e à decomposição progressiva das democracias. E ao mesmo tempo que individualmente somos cada vez mais livres, nunca vivemos de maneira tão intensa a impotência coletiva. E a democracia foi sempre isso: queríamos mais liberdade, sim, mas para podermos fazer coletivamente mais coisas.

Deixámos de ter um propósito comum para uma liberdade que tornámos umbiguista?
Hoje a liberdade é vivida num registo completamente individualista, veja como todos procuram transformar meros caprichos em direitos! E tudo isto tem muito a ver com a responsabilidade dos políticos. Políticos narcisistas e sem desígnios mas que estão sempre a fazer promessas, no que podem sempre contar com uma certa cumplicidade das populações, que gostam de expectativas e ilusões agradáveis. Isto tem consequências, a principal foi o abismo que se criou entre a nossa liberdade individual e a impotência do coletivo, que descredibiliza os políticos e põe em causa a legitimidade das maiorias. E está na origem dos fenómenos que servem para esconjurar aquilo que não se quer ver nem entender, como é o caso do populismo. Esquece-se que hoje qualquer maioria é sempre uma soma de minorias. E que por isso que tem de se falar ao conjunto mais variado possível de eleitores, que estão segmentados nos seus interesses e características. Antes, bastava ser pela igualdade, pelas nacionalizações, pela reforma agrária ou pelo Serviço Nacional de Saúde. Hoje isso não basta! Por outro lado, o império da informação deixou de estar associado ao conhecimento, para se aliar ao entretenimento. E passou a ser uma informação que vive em conluio com a política, naquilo a que chamo “coprodução político-mediática”. Hoje a informação entretém, não faz as pessoas pensar. Pelo contrário, conduz àquilo a que designo como impensar, algo que bloqueia o pensamento.

Sem ideologias, como é que se faz a relação dos governantes com os povos?
Não sabemos, daí o atordoamento geral – os cidadãos não compreendem as sociedades em que vivem e isso vindo a minar as democracias. Enquanto que até aqui os governos eram escolhidos com bases ideológicas (quando o PS ganhou as eleições em 1995, era a cultura, a educação, o salário mínimo nacional), hoje as eleições servem essencialmente para designar governantes. Os caminhos podem ser diferentes, mas as metas são sempre mesmas: a dívida, o défice…

… o que faz mudar o perfil do governante.
Claro! Os governantes tornaram-se meros gestores desta ortodoxia europeia. Um antigo diplomata francês dizia que o europeísmo se tornou no ópio dos europeus, e tem razão. A linguagem extremamente economicista adotada pela Europa lembra quase a das ortodoxias marxistas, tudo é visto em termos estritamente económicos.

Mas essa linguagem não funciona só para a dívida e para o défice, também funciona para o crédito. Sempre que há dinheiro deixa falar-se do fim iminente da União Europeia. Como agora, com a bazuca, assume-se que a UE está coesa porque vai distribuir novos fundos.

Uma coisa é o modo como nós, portugueses, estamos ligados à UE, outra coisa é a história da UE, que tem uma origem completamente elitista. Nunca foi um anseio ou uma causa popular. A Europa vive há muitos anos um triplo impasse: nos resultados, nos projetos e no espaço público que não foi capaz de construir. A Constituição Europeia falhou porque não conseguimos definir quase nada em comum. Hoje o espaço público é o da dívida, não há mais nada. A Europa tornou-se incontornável porque é o grande álibi dos governos – o álibi dos desaires, mas também o trunfo dos sucessos. Por outro lado, conseguiu convencer um conjunto significativo da intelligentsia europeia – os evangelistas europeus, como tenho dito – a pregarem a Europa como a solução, o modelo para o mundo. Esquecendo-se que a Europa deixou de ser uma potência quando se encostou aos Estados Unidos no pós-guerra. Veja, a Europa não tem praticamente defesa, como é que pode ser uma potência? E se Portugal aparece sempre em todas as sondagens como o país menos cético em relação à Europa, isso deve-se à nossa adesão ter sido muito marcada pela criação dos fundos estruturais. Desde 1986 até 2018, segundo os dados do Banco de Portugal, recebemos por dia 11 milhões 700 mil euros. Por dia!!! Criou-se no país uma mentalidade de que temos uma espécie de mesada da Europa. É por isso que não há eurocéticos em Portugal. E António Costa, usando uma metáfora infeliz, a bazuca, persiste nessa ideia. Serão 750 mil milhões de euros, dos quais 390 são subvenções e 360 são empréstimos. Se fizer as contas, verificará que Portugal, beneficiará nesta década de 67 mil milhões de euros, o que dá qualquer coisa como 180 milhões de euros por dia. Para quê? Para que projetos? Não se sabe…

Em parte, é a resposta da Europa à covid-19. O que é que critica exatamente?
Isso é uma parte, e mesmo essa é muito insatisfatória, porque as condições do seu sucesso estão na sua rapidez e eficácia, como diz o Charles Wyplosz – e o que temos visto é o contrário. Não há estratégia, não há pedagogia, fala-se do dinheiro como uma coisa que vai cair do céu, e isso põe o país de joelhos perante a Europa. E insisto, para fazer o quê? Ouvimos falar na transição digital, na resposta ecológica, mas isso é tão vago e tão controverso ao mesmo tempo…. Este governo não tem um desígnio claro do que quer fazer. Continuamos a viver como um país simultaneamente atordoado, sem estratégia e a reboque da Europa, esquecendo que a Europa deixou de ser uma potência quando se encostou aos EUA e praticamente deixou de ter defesa.

Apostando num novo paradigma civilizacional.
Apostou sobretudo no Estado Social. Os americanos não têm segurança social, não têm salários mínimos, não têm coberturas médicas, etc. A Europa apostou nisso, mas tem de assumir que isso tem um custo. Quando se quer ter tudo ao mesmo tempo, acaba-se por ter um grande problema, que pode acabar na paralisia. Podemos dizer que a Europa ocidental é a zona mais socialista do mundo, no sentido em que criou um estado providência que permite aos cidadãos uma qualidade de vida realmente muito boa. Quem fez o indivíduo contemporâneo? Foi o Estado! Foi o Estado que libertou o indivíduo de pensar que tinha de popular dinheiro para a reforma? Que tinha de poupar dinheiro para educar os filhos? Para cuidar da saúde? Foi o Estado! O Estado criou o indivíduo, como foi o Estado que criou o mercado. Não há aqui oposições nenhumas entre estas várias dimensões, há nuances, é tudo O individualismo contemporâneo foi criado sobretudo pelo Estado, por um Estado cada vez mais providencialista e tutelar.

Sem que cada um de nós tenha de fazer por isso.
Nada, é isso. Chegou-se ao ponto em que qualquer capricho individual é um sério candidato a tornar-se num verdadeiro direito. Vivemos uma situação em que se confundem os princípios reguladores da comunidade com os objetivos concretos da sociedade. São coisas muito diferentes. Nas democracias ocidentais nós temos um conjunto de ideias-chave – por exemplo, a igualdade, a transparência, mas são muitas -, que são ideias meramente reguladoras, são, digamos, ficções virtuosas. Não são propriamente objetivos para cumprir, mas para orientar, enquadrar a nossa vida, individual e coletiva. Quando exigimos passá-las para a realidade, estamos simplesmente a “cortar o galho em que estamos sentados”…

Alguns especialistas defendem que o modelo não deveria ser o do crescimento mas o da proporcionalidade entre o mais rico e o mais pobre.
Faz sentido, o problema é que a matriz de todas as políticas das últimas décadas, desde meados do século passado, é apenas o crescimento, por mais desmentidos e dificuldades que enfrente.

Para si, qual seria?
A qualificação. É por isso que tenho muita dificuldade em ler Portugal à luz das narrativas literárias do Eduardo Lourenço. Portugal não vive nada de nostalgia nem daqueles coisas do José Gil sobre o medo de existir. Portugal padece, isso sim, da demissão das elites e da desqualificação dos seus cidadãos, das suas instituições, e do seu território. É este o problema nacional. As elites demitiram-se sempre.

A qualificação foi a matriz da sua política quando esteve no ministério da Cultura. Como é que olha hoje para o setor das políticas culturais públicas?
Lamento muito o que se está a passar agora na Cultura. Houve uma degradação total das políticas culturais. Desde o Durão Barroso, mas o período de Sócrates foi verdadeiramente uma razia. Esperava-se uma viragem, não aconteceu nada. O orçamento, que quase chegou a 1% no meu tempo, com o Plano Operacional de Cultura, está hoje em pouco mais de zero. António Costa deixou de falar da percentagem do orçamento da Cultura no OE, para falar na comparação com o PIB, que é um critério que ninguém utiliza, nem nacional nem internacionalmente. Mais uma habilidade..Mas o problema é que não há políticas, não há projetos, não há ideias. A cultura deixou de ser a flor na lapela de Santana Lopes para passar a ser a cultura ”do drink em fim da tarde”….


O orçamento da Cultura está hoje em 0,25%. A meta do tal 1% parece a pedra de Sísifo. É possível ou desejável olhar para isto de outra forma?
Quando fui ministro, exigi que a Cultura fosse pensada de acordo com a qualificação das pessoas, das instituições e do território. Defendi que se deviam fazer cineteatros por todo o país, porque verifiquei que em 13 das 18 capitais de distrito não havia onde fazer nada. Quando falei da circulação das companhias pelo país como uma das contrapartida do apoio às companhias de teatro, lembro-me de me dizerem que não havia por onde. E eu disse: então faça-se. Suspendi todos os apoios que regularmente se davam para auditórios, salas diversas, etc., para criar um plano nacional que equipasse minimamente o país. O território não se qualifica só com tribunais e hospitais, qualifica-se também com teatros, museus, arquivos, bibliotecas. A contribuição da cultura era e é fundamental para essa qualificação, sempre pensada em termos de pessoas, de território e de instituições. Foi o que se fez.

Isso foi no fim da década de 1990. Mas a atual ministra anunciou a regulamentação da rede de cineteatros para unir o território como desígnio para 2021.
Isso é uma coisa que eu deixei feita quando saí, há já 20 anos. Aliás, não só isso. Agora vão destinar a lotaria do património à arqueologia, o orçamento é de 200 mil euros. Há meia dúzia de anos era cinco vezes superior. A situação da cultura percebe-se muito bem quando se compara o seguinte: no ano passado, o orçamento da cultura era dez milhões de euros inferior ao meu orçamento, quando saí, em 2000, há 20 anos portanto. E entretanto, há mais: existe Serralves, a Casa da Música, o Museu dos Coches, os cineteatros, como é que é possível? Há um problema orçamental estrutural na cultura e depois, claro, também há um problema de ideias. Na verdade, não há nada que eu não tenha feito por falta de dinheiro, mas o meu orçamento aumentava em função de projetos. Quando lancei o projeto dos cineteatros, não tinha um tostão. E, no entanto, consegui o maior apoio mecenático à cultura que até hoje houve em Portugal, que foi o da Philip Morris.

Os tais sete milhões.
Sim, as ideias atraem financiamentos. O São Carlos passou de um apoio de 60 mil contos para um milhão, na altura. Como se consegue? Tem que se ter uma conversa contínua com os mecenas, eles apostam tanto mais quanto mais sentem que o Estado está presente, não é o contrário, como tantas vezes erradamente se diz. O caso de Serralves é dado muitas vezes como exemplo. Mas a verdade é que o Estado pôs quatro quintos e os privados um quinto do financiamento total. E foi assim que se fez.

Uma vez que fala de Serralves, está a par das polémicas das fundações de Serralves e da Casa da Música, ambas relacionadas com a precariedade dos funcionários?
Sigo o setor com a atenção que consigo ter, trata-se de problemas lamentáveis. O Porto foi uma grande aposta, fizemos muita coisa porque o Porto tem público, tem poder económico, tem tradição e tem massa crítica. O Porto não tinha um museu de arte contemporânea, não tinha uma orquestra (eu sempre disse se somos Europa, temos de seguir os critérios da Europa, que são ter uma orquestra sinfónica por um milhão de habitantes. Portugal devia ter oito, tinham uma… em Lisboa). Tudo o que se fez no Porto justificou-se, teve resposta, teve público: o Museu da Fotografia na Cadeia da Relação, a Orquestra, Serralves, o São João, a Casa das Artes, a cidade esteve à altura de tudo o que se fez.

Tem dito que se perdeu a ousadia na oferta cultural. Ainda mantém?
Sim, mantenho. Há uma dinâmica entre a oferta e a procura que é preciso estimular. Não quero adiantar projetos para futuros ministros da Cultura, mas as políticas públicas de cultura que desenvolvi e que se desenvolveram até ao começo do século têm de ser profundamente repensadas. Quer por efeitos das novas tecnologias, da desmaterialização, quer pelas dinâmicas das próprias sociedades. Mais ainda agora, com a pandemia e as suas consequências…

Diria que hoje a tutela está circunscrita a uma distribuição (insuficiente, ainda por cima) de apoios sem políticas?
O que eu digo é que não vejo nenhuma ideia nova, nenhum projeto sólido seja sobre o que for, em nenhum domínio – é o vazio total.

O estatuto da intermitência do artista pode resolver o problema da precariedade?
A intermitência ainda está a ser definida. Mesmo no país onde foi criada, em França, tem sido muito discutida, porque tem muitas virtudes mas também põe muitos problemas. É preciso ousadia e força política, vamos a ver…

Teve o maior mandato como ministro da Cultura depois de 25 de Abril. 20 anos depois de ter saído ainda se fala de si, do que fez. Por que razão aquele período não foi repetível por nenhum dos seus sucessores? Ou, se preferir, qual foi o segredo daquele tempo?
O segredo foi simples: um bom projecto, uma excelente equipa, conhecer bem o sector, trabalhar muito sob o lema “aqui ninguém se cansa”, ouvir permanentemente o país e os agentes do sector, aprender com as experiências de outros países, colocar de um modo exigente a cultura no coração da política governamental em termos das estratégias de qualificação do pais. Em síntese: muita ambição, muita determinação e muita concretização.