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Mais um verão sem festas e arraiais

Em 2019, a festa do Senhor de Matosinhos recebeu cerca de dois milhões de visitantes (Foto: Amin Chaarr/Global Imagens)

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Mais um ano sem romarias, procissões nas ruas, santos populares, marchas na avenida, balões no ar, fogo de artifício no céu, carrosséis a girar, farturas em rulotes. Há uma economia quase parada, em suspenso, em agonia. Mas nem tudo estará perdido. As tradições não se vergam e a saudade poderá vencer o medo.

O Governo proibiu festas e arraiais até ao final de agosto. Mais um verão sem romarias, procissões, santos populares, festas dedicadas aos emigrantes. Há uma economia em sofrimento, uma indústria parada. Há desânimo e desalento. Lisboa não teve Santo António. O São João do Porto não terá fogo de artifício, nem concertos, apenas três zonas de diversão na rotunda da Boavista, nas Fontainhas e em Lordelo do Ouro. O embate económico é elevado, o impacto simbólico aperta o coração. Como será o regresso das festas? A balança pende para a euforia. Lisboa não festejou a noite de Santo António. É o segundo ano sem desfile das marchas populares, sem casamentos de Santo António, sem bailaricos. Pedro Franco, presidente da Associação de Coletividades do Concelho de Lisboa e presidente do júri das marchas populares, fala em “mais um ano desgraçado”, mas entende a decisão de não arriscar comprometer meses por dias de festa. “Naturalmente que há um grande impacto para as nossas coletividades que organizam as festas, as marchas, e para os comerciantes dos bairros históricos.” São 400 coletividades que, garante, “sempre respeitaram as ordens da DGS [Direção-Geral da Saúde] e as regras emanadas do Governo”. “A pandemia não é para brincadeiras,… isto mata.”

É uma economia de mãos atadas e com um nó apertado na garganta. Os ensaiadores que vivem das marchas, as costureiras que se ocupam das roupas dos desfiles, compositores das letras e das músicas, o pessoal que instala arcos e palcos, os que tratam do calçado. “É uma economia que pára”, constata Pedro Franco. No ano passado, a câmara deu 7 500 euros a cada marcha, este ano subiu para 15 mil, metade do apoio habitual de 30 mil. Pedro Franco olha também para o país e para o impacto que a pandemia está a causar na economia social, nas cerca de 31 mil coletividades, nos mais de 400 mil dirigentes e quatro milhões de associados. “Noventa e nove por cento trabalham graciosamente”, enfatiza.

Pedro Franco tem atendido chamadas de gente em lágrimas e vozes embargadas, comove-se também, mas pressente que o tempo perdido será recuperado do dia para a noite. “As pessoas estão ansiosas, no dia em que for dado o sinal de partida, recupera-se tudo rapidamente, nada se perde, este amor à causa está no nosso coração.” Gente do movimento associativo está sempre pronta e dá tudo. Há quem lhe diz que será tudo melhor, que trabalhará dia e noite sem parar, que a cidade ficará linda e as marchas ainda mais bonitas.

Lisboa, pelo segundo ano consecutivo, não teve marchas de Santo António na avenida
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

Em 2019, a festa do Senhor de Matosinhos juntou cerca de dois milhões de visitantes ao longo de quase um mês. Em 2020, com a pandemia, a procissão não saiu, a imagem do santo circulou pelas ruas num carro dos bombeiros. Este ano, houve missa, a igreja foi decorada e ornamentada, a procissão não saiu e a imagem do santo também não. Não há carrosséis nem farturas, montou-se uma exposição de fotografias e cartazes da festa em frente ao edifício dos Paços do Concelho, que ali ficará todo o verão. “No dia em que foi colocado um tapete de flores, na exposição, houve uma senhora que percorreu o tapete e se ajoelhou em frente à imagem do santo a rezar”, recorda Luísa Salgueiro, presidente da Câmara de Matosinhos.

“A nossa preocupação foi a de manter a essência da festa viva na vida das pessoas, sobretudo na questão religiosa.” A autarca sente a tristeza da população, mais um ano sem festa, assegura que a maioria entende as circunstâncias e que não tem havido reações negativas. Não tem números do abalo económico para a restauração, comércio local, atividades culturais, sabe que todos foram prejudicados, mas compreende a posição do Governo que coincide com a perspetiva do Município que já tinha decidido não avançar com uma das romarias mais emblemáticas do norte do país nos moldes habituais. “São as contingências do período que vivemos.” E afasta qualquer perigo da festa perder importância e imponência. “Haverá um regresso entusiástico às festas, as pessoas estão com muitas saudades”, prevê Luísa Salgueiro.

A indústria que faz rolar festas e romarias faz contas à vida
(Foto: Pedro Kirilos/Global Imagens)

Em Lamego, a festa em honra de Nossa Senhora dos Remédios é o ponto alto e festivo do ano, arrasta multidões e muitos emigrantes de volta à terra. O programa habitual tem momentos musicais, marcha luminosa, batalhas de flores, cortejo etnográfico, a procissão em que os andores, que carregam imagens sagradas, são puxados por juntas de bois. “No ano passado, transformámos as festividades numa homenagem com alguns momentos culturais. Este ano, estamos a trabalhar em vários planos que vamos ajustar em função do contexto da altura”, avança Ana Catarina Rocha, presidente da Comissão de Festas dos Remédios e vereadora da Cultura da Câmara de Lamego. Em 2020, houve missa e novenas, mas a procissão não saiu. Este ano, não se sabe, uma vez que as festas acontecem de 27 de agosto a 9 de setembro.

Seja como for, a romaria acontecerá, falta acertar em que moldes. “Temos uma perspetiva otimista, consideramos que ainda se vão impor alguns cuidados, algumas restrições e algumas medidas sanitárias. A parte mais emocional, mais religiosa, as celebrações irão manter-se, naturalmente no contexto que na altura for permitido.” A comissão de festas tem consciência do enorme impacto na economia da região a vários níveis. Mas a fé é inabalável.

A Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego, está a ser planeada
(Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)

“Achamos que nada se perde do ponto de vista do que é o interesse das pessoas pelo território e pelo património e do ponto de vista religioso.” Nada se perde, tudo se recupera. “A fé é a mesma”, sustenta.

Quebras de faturação, vidas paradas nas rulotes

A indústria que faz rolar festas e romarias faz contas à vida. São mais de sete mil empresários e microempresas espalhados pelo país, carrosséis, carrinhos de choque, restaurantes itinerantes, bandas, palcos móveis, fogo de artifício, rulotes de farturas, pipocas, algodão-doce. Tudo o que alimenta a diversão. Luís Paulo Fernandes, presidente da Associação dos Profissionais Itinerantes Certificados (APIC), adianta cálculos e não cala a tristeza e a indignação. Este ano, a quebra na faturação anda pelos 75%, no ano passado chegou aos 85%. Em 2020, nem 5% do setor teve trabalho, neste não deve chegar aos 30% – o que, a confirmar-se, é uma excelente perspetiva.

A proibição de festas e arraiais custa a engolir. “Repugnamos e não nos revemos nestas políticas. Havendo promotores responsáveis, cumprindo os planos de contingência da DGS, é exequível fazerem-se eventos”, defende. “Dentro dos estádios, dentro dos parques, há controlo, há cumprimento de regras. Aplicando-se isto às festas populares, qual era o problema de delegar às empresas locais ou às câmaras a constituição destes parques?”. Era preferível ter espaços alternativos de diversão devidamente organizados, até porque “ao não se fazerem festas e arraiais, haverá uma sobrecarga nas praias e nos shoppings”, repara. E o argumento da prudência não cola. “É pura demagogia, é para desresponsabilizar essa vontade de querer controlar.”

Luís Paulo Fernandes conhece o país de ponta a ponta. Por um lado, vê o desânimo do setor que representa, muitos que se tornaram camionistas e padeiros e já não voltarão. Do outro, a sofreguidão da gente. “Estão todos com vontade de ir para a rua. Não impeçam que as pessoas criem parques alternativos às festas”, insiste. Nem oito, nem 80. “A vacinação está a correr bem, os parques alternativos estão a correr bem e estão bem organizados, as autoridades policiais podem agir para que a lei seja cumprida, se o Rt [índice de transmissibilidade] for superior ao estipulado ou estiver em risco, encerramos no dia seguinte. Isto é ser corajoso.”

O presidente da APIC teme que se percam costumes e tradições, que os eventos populares se adaptem aos novos tempos, aos modelos híbridos das novas tecnologias, e que assim se perca a identidade de um povo. Que o orgulho na tradição deixe de ser o que é ou era.

Para Francisco Bernardo, presidente da APED – Associação Portuguesa de Empresas de Diversões, há raízes que uma pandemia ou decisões de um Governo não conseguem arrancar por dá cá aquela palha. “Quero acreditar que a tradição e a cultura do nosso povo não vão ser eliminadas desta forma. O povo português não se desliga assim das tradições do seu país. O povo está sedento de liberdade, está oprimido, logo que haja uma brecha, volta para a rua.”

Esta é uma parte, há outra mais dura. Há um setor que anima as festas a sofrer. Há vidas paradas dentro de rulotes, famílias descrentes no futuro. É a burocracia que aumenta no atual contexto, a dualidade de critérios, a falta de alternativas. “Não se pode falar em prejuízos quando não se trabalha e a receita é zero.” Francisco Bernardo não apresenta números ou percentagens, fala de angústia, desorientação, pés sem chão, mais um verão sem romarias, sem sustento. “Ninguém sobrevive sem dinheiro, a grande percentagem tenta arranjar trabalho, criar alternativas para sobreviver.” E ninguém se pode dar ao luxo de recusar trabalho, é aproveitar o que há, cumprindo todas as limitações impostas.

Quim Barreiros e Nel Monteiro, cantores a zero

No ano passado, por esta altura, Quim Barreiros sabia o número exato de concertos que tinham saído da sua agenda e adiados para 2021. Sabia-os de cor, 124 espetáculos, a maioria não chegou a acontecer. “Está como no ano passado, tudo a zero, outro verão sem trabalho”, lamenta. Pouca coisa em perspetiva, o que tem marcado está em dúvida, a aguardar confirmação. “Todos os dias, há indicações, aqui pode-se, ali não se pode. É mais um verão sem emigrantes, podem vir alguns, mas não virão muitos.”

Quim Barreiros não esteve parado durante o confinamento, criou novas cantigas, lançou um disco para celebrar os 50 anos de música gravada, ainda compôs a canção “Vamos todos à vacina”. O cantor não tem dúvidas, há vontade de cantar, dançar, celebrar. “Está tudo à espera de ordens, depois das autoridades darem luz verde, salta tudo para a rua. Quem não tem saudades de uma cerveja, de uma festa popular, de um bailarico? Isto tem de abrir e vai tudo voltar ao normal.” Será imediato, acredita, como um clique.

Quim Barreiros vê um povo com vontade de rua, de festas, de bailaricos
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Nel Monteiro não está tão otimista, sem estrada há ano e meio, um concerto ontem, um casamento em setembro, antevê que o regresso ao verão das festas seja feito aos poucos. “Portugal é um país de festa, mas não vai ser muito fácil voltar ao que era, vai sempre haver um bocado de medo dos ajuntamentos. Se calhar, no primeiro e no segundo ano será um bocadinho assim”, diz. Uma retoma com receio, antevê.

Neste momento, o coração vive apertado, sem palcos, sem música ao vivo, sem festas. Nel Monteiro vai desabafando. “Mais um verão sem trabalhar, sem festas e arraiais. Todos nós, estamos mesmo em baixo. Qualquer pessoa das artes, antes da pandemia, fazia a vida de acordo com a agenda. Há ano e meio, nada entra e tudo sai. Não temos ordenado, o Estado não nos dá apoios.” E acrescenta, com desalento: “Somos fechados e proibidos de fazer espetáculos por causa de uma pandemia, mas somos livres de morrer à fome”.

A Pirotecnia Minhota, em Ponte de Lima, a maior empresa de fabrico de fogo de artifício do distrito de Viana do Castelo, com 120 anos de existência e filiais na Madeira e em Angola, teve uma quebra de 95%, menos cerca de 1,5 milhões de euros de faturação. “Nunca fomos proibidos de trabalhar, não temos é clientes a encomendar. Estamos a caminho de 18 meses a faturar 5% do que era usual”, revela David Costa, um dos proprietários da empresa. Dos poucos mais de 30 funcionários, restam três. Quase não há trabalho, uma das raras encomendas dos últimos meses chegou da Figueira da Foz que vai celebrar a noite de São João em seis praias, numa extensão de 20 quilómetros, com fogo de artifício.

David Costa entende que há festas e romarias em aldeias e vilas que poderiam acontecer com os devidos cuidados, cumprindo as regras estipuladas. “Os nossos governantes preferem sacrificar as nossas festinhas em prol do turismo”, comenta. Um verão sem festas e sem fogo no céu não é a mesma coisa. “Cria alguma tristeza, algum desalento. O fogo de artifício cria um certo fascínio.”

O cantor popular Nel Monteiro tem mais um verão sem concertos
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

A Pirotecnia Minhota vive dia após dia, as despesas fixas são parcelas a somar, as receitas mingaram de uma forma nunca antes sentida, é complicado aguentar muito mais tempo. David Costa teme que as tradições das pequenas festas se percam. “Um ano sem fazer, outro ano sem fazer, há coisas que se perdem, perdem-se tradições por desabituação, porque se deixam de fazer.” Este verão, em seu entender, poderia ser diferente. “Fazia sentido dar alegria ao povo no meio de tudo isto, mas os governantes não entendem da mesma forma.”

O embate entre o medo e a euforia

O verão é tempo de férias, de festas e romarias, das visitas de emigrantes. “As festas são rituais que conseguem, ainda que por algumas horas, virar o Mundo às avessas, nessa efervescência coletiva, de comunhão”, salienta o sociólogo João Teixeira Lopes. Sem essas festas populares, que acontecem por todo o país, há laços que se quebram. “Esses rituais carregam as energias sociais e carregam também o sentimento de pertença”, adiciona.

Por um lado, há o medo de multidões e de ajuntamentos sustentado em medidas restritivas do contexto pandémico. Por outro, a euforia, a saudade e a vontade fechadas numa panela de pressão. “As pessoas têm uma imensa necessidade de contacto e de catarse.” João Teixeira Lopes não sabe como o medo e a euforia se vão cruzar, o que acontecerá. “Se a pós-pandemia vai trazer euforia e uma grande necessidade de as pessoas se tocarem, se juntarem? Não sei, não consigo prever o futuro. Os dois cenários são possíveis.” Talvez nada seja da mesma maneira. “Os modelos matemáticos falham, as pessoas são pessoas, os comportamentos humanos têm uma dose de imprevisibilidade que escapa à folha de Excel.”

São dois anos que se perdem de festas e romarias, mas o povo empenha-se nestes momentos coletivos, seja a fazer e a organizar, seja a desfrutar. Nada está perdido, segundo Albertino Gonçalves, sociólogo do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Mesmo que algumas festas, ao longo dos anos, tenham perdido a sua feição original e “o menu completo de emoções”, a vontade persiste e toda a carga simbólica não desaparece de um ano para o outro. Seja como for, cada festa que não se realiza é uma falha que tem impacto social, simbólico, coletivo. “As festas são o autêntico pulmão da população. A população respira e renova-se a partir das festas”, sustenta. Tal como as feiras que, por vezes, se misturam com as festas, experiências muito próprias em que se mostram os frutos do trabalho, em que as pessoas se sentem “heroínas das suas obras”. “Um momento em que as pessoas veem o seu valor reconhecido.”

O ADN das comunidades que não se apaga

Festas significam comunidades que se cruzam, que se cimentam, que criam laços. “Os romeiros que andam de freguesia em freguesia a dançar e a cantar são um espetáculo em si que se sente até às entranhas.” Albertino Gonçalves lembra a força destas manifestações coletivas. “É algo que está no ADN social, que está nas entranhas e não desaparece.” Por isso, este ano há lágrimas outra vez. “As pessoas vão sentir a perda e não vão parar de carpir as festas.” Mas o que não se faz este ano, não desaparece, não sai da memória. “Um São João que não se faz é um São João que obceca, há uma enorme tendência para colmatar a falha e fazer outra vez.” Para recuperar não apenas o que se perdeu na festa, mas tudo o resto, todo o tempo perdido. “As festas vão ser canais de sensações e emoções que vão muito além do que é uma festa.”

O São João, em Braga, não será igual a 2019
(Foto: Paulo Jorge Magalhães/Global Imagens)

Não há borracha que consiga apagar o passado, usos e costumes, tradições de anos e de séculos. “Estes acontecimentos coletivos não acontecem por acaso, não aparecem de um momento para o outro, dão muito trabalho, implicam organização, pessoas e investimento. As festas que são fortes vão continuar e ser fortes, as menos fortes podem fraquejar”, conclui Albertino Gonçalves.

A fruição cultural mudou com a pandemia. Há um novo contexto que não pode ser ignorado, mais tecnológico, provavelmente mais abrangente, mais distante também. “Haverá uma tendência para insistir nos formatos híbridos”, diz João Teixeira Lopes. Até porque, sublinha, foi feito um investimento nas novas tecnologias que será necessário rentabilizar. Há um antes e um depois da pandemia e há, frisa o sociólogo, “o conformismo doméstico” que se acentuou nas atuais circunstâncias. A tendência para a domesticidade, a vontade de eliminar atritos por comodismo, a reorganização de horários, a fruição cultural no sofá de casa, a preguiça social. “A ideia de uma sociedade sem contacto é uma ideia perigosa.” Sem contacto perdem-se ligações sociais.

Albertino Gonçalves concede a tendência para o digital, para o online que já se apodera de muitas festas. O sociólogo admite essa vertente. “Há uma transfiguração das festas do digital, dos concursos, das televisões, por exemplo.”.

Hoje, 13 de junho, Dia de Santo António, Pedro Franco estará numa sessão solene do Santana Futebol Clube, de Campolide, que assinala cem anos de vida. Tem certeza de que se vai comover, confessa. Amanhã, 14 de junho, o país entra numa nova fase de desconfinamento, o comércio e a restauração alargam horários, respiram melhor. Nel Monteiro, apesar de tudo, vai mantendo a esperança. “Este verão está feito. Para o ano, estaremos cá para ver.”