Luís de Matos: “Achar que não nos enganam é meio caminho andado para ser enganado”

Passava sete meses por ano em tournée mundial, 26 semanas com centenas de espetáculos que a pandemia adiou sine die, matando à nascença a celebração de 25 anos de equipa. Até que certo dia, um título numa revista se revelou epifania. “Afogar ou nadar”. As ideias começaram. Primeiro, os espetáculos drive-in. Depois, #Conectados. Por último, de maio e até dezembro, Backstage. Luís de Matos nunca pronuncia a palavra problema.

O estúdio 33, em Ansião, vila da Beira Litoral, é “uma caixa aberta à porta fechada”. Caixa aberta à imaginação e a todo o impossível materializado por Luís de Matos e a sua equipa. Porta fechada porque foge à regra: é absolutamente privado desde a origem e vive sem patrocínios. Luís de Matos orgulha-se daqueles dez mil metros quadrado, grande parte deles edificados. Um espaço multiusos generoso, dominado pela sala que permite ao mágico a autonomia. Ali grava programas de televisão, faz congressos em streaming, edita a label de DVD para a comunidade internacional. O estúdio 33 é teatro – dois palcos e camarins -, centro de estudos, biblioteca com mais de 5000 livros. E oficina em que pontifica o motor de um Boeing 707, chão coberto por cabos elétricos de tamanhos e espessuras vários e gruas. Reserva para malas de porão, que guardam segredos viajados pelo mundo e complexo de escritórios.

Obra do mágico, que prefere equipa a um manager, contrariando a corrente habitual. Que tem a última palavra ainda que nem sempre decidida a favor da sua opinião. Desenhado por ele de raiz em 2002, dali vivem nove famílias. Ali investiu quase quatro milhões de euros.

O edifício é ladeado por estrelícias, paixão que serviu de mote ao projeto de fim de curso. E por árvores, que são oferta de amigos. Depois de cinco horas de entrevista e sessão fotográfica, de novo no jardim, já longe dos 36 graus centígrados da tarde, descreveu os dias perfeitos: adora andar pelo jardim de havaianas, a cuidar das árvores. E gelados.

Na base da ilusão, da magia, está sempre uma mentira. Trata-se de fazer parecer que uma coisa é outra. O que leva a que se aplauda uma mentira?
A atração pelo inexplicável. Por isso, se acredita no astrólogo, no cartomante, no vidente. Mas esse é um outro mundo, o mundo em que as pessoas pagam para serem enganadas, ficando muito satisfeitas com um engano que lhes dá força e confiança. Na magia, é diferente. Vai assistir-se a algo que inexplicável, mas assumido como uma ilusão. Tendo o ser humano uma atração pelo desconhecido, capacidade de assombro, desejo por coisas que não existem, e necessidade de perceber o que o rodeia, ver uma coisa que não se percebe, ainda por cima esteticamente agradável, pode provocar um sentimento, uma partilha de uma visão do Mundo. Nesse momento, a magia deixa de ser um simples chorrilho e inexplicabilidades – fiz isto e não sabes como o fiz – para se tornar um veículo de emoção, de pensamento, de opinião e de reflexão.

A magia é uma linguagem universal e ancestral. Onde nos toca?
Há uma universalidade acrescida da magia relativamente a outras formas de arte. Vejamos a música, a literatura ou a dança – ara que sejam tocadas, as pessoas têm de adquirir alguns conhecimentos prévios. No caso da magia, esse conhecimento prévio é inato. É-nos concedido no ato a nascença. Todos nós sabemos onde está a fronteira entre o que é possível e o que é impossível. Uma criança sabe que um anel não voa, nem fica suspenso do nada. Não importa a idade, o credo, a língua, se se é do campo ou da cidade. Se eu colocar um objeto a voar, estou a comunicar assombro, mistério e inexplicabilidade. É a materialização do impossível debaixo do nossos olhar. É por isso que a magia é a mais antiga das expressões do entretenimento. Há ali um aspeto de super-herói, de algo que sabemos ser impossível.

É isso que a distingue de outras formas de comunicação, ser-nos intrínseca?
Intrínseca e transversal. Não carece de um conhecimento para que possamos usufruir do que nos é oferecido.

A partir de que momento se pode falar de arte?
Para mim, quando deixa de ser apenas um puzzle cuja solução desconheço. Nada mais redutor do que ter uma caixa vazia e de repente fazer aparecer lá dentro um elefante. É uma componente inevitável da magia, mas não chega para ser arte. Se for só isso, a magia não me interessa.

Podemos tirar vantagem da magia no dia a dia?
Pode, pois. Os mágicos são os grandes “prototipadores” do futuro. Prototipam o futuro e, por isso, a magia e ciência andam tão ligadas. O mágico e o cientista sonham exatamente a mesma coisa – concretizar hoje o que ontem era impossível. Essa é a base. Porque é que os mágicos prototipam o futuro? Porque o ser humano sonha com ele. O teletransporte, por exemplo: o cientista vai trabalhar muito para concretizar esse sonho. O mágico, pegando naquela mesma inspiração, vai convertê-la em realidade no palco. É por isso que antes de o homem ir à lua já, George Méliès [mágico e cineasta francês, pioneiro nos efeitos especiais, 1861-1938] fez a Viagem à Lua. O cientista faz acontecer de verdade. O mágico cria a ilusão.

Que lição se pode tirar daí?
Há uma lição permanente da magia, na medida em que grande parte da comunidade mágica é cética, de pensamento científico e experimentada na solução de problemas. Esse é o nosso dia a dia. Procurar a solução de problemas, indo à procura de que técnicas que o permitam. Por outro lado, é um estímulo à vivência do maravilhoso e do inexplicável num contexto honesto, que é o de dizer tudo que tudo o que faço só é extraordinário porque é mentira. A minha previsão, em 1995, dos números do totoloto foi um acontecimento nacional. Ora, desde que previ esses números, milhares de pessoas acertaram. Mas isso não foi notícia. O que a converteu em notícia foi ter dito: vou criar a ilusão de que vou acertar, e vou acertar. E está demonstrado que assim foi.

Mas não acertou. Embora muita gente não tivesse tido a noção que se tratou de uma ilusão.
Ainda as pessoas batiam palmas é já eu dizia. “Quero aproveitar este momento para dizer que aquilo que faço é criar ilusões, e gostava que a pessoas questionassem mais aquilo que as rodeia”.

Voltamos ao início, as pessoas gostam de ser enganadas.
O segredo por detrás da religião está um pouco aí, na necessidade que temos de atribuirmos a responsabilidade dos pelos nossos atos a outras entidades. Quando algo de mal acontece, foi o azar. Quando alguém morre, foi porque Deus quis. Encontramos desculpas que vão para além daquilo que podemos fazer. E como cientificamente é impossível demonstrar que uma negativa é falsa, fica espaço para povoar e incubar na fragilidade da comunidade um conjunto de crenças, hábitos e dependências que faz esta coisa notável: em alturas de crise, o número de clientes de videntes e pessoas que falam com o além aumenta enormemente. Clientela do tipo A. Estou a falar de governantes, CEO’s de grandes empresas, pessoas com cargos de enorme responsabilidade. Isto está estudado.

Conhece casos em Portugal?
Tenho certeza de que existem.

É facilmente enganável?
Como todos, acho que não sou enganado. Mas tenho uma certeza: achar que não nos enganam é meio caminho andado para ser enganado.

Qual é o seu público-alvo?
O meu público é de todas as idades, estratos culturais e sociais.
Há duas entidades que respeito, admiro e às quais devo eterna gratidão. Uma é a minha equipa. Aquilo que sou deve-se ao seu trabalho, coragem, talento, paixão. É uma pedra angular do meu trabalho. A outra é o público. Dependo do respeito continuado que o público tem pelo meu trabalho. Há espectadores que vieram pela primeira vez miúdos, com os pais, e que agora vêm com os filhos. Só posso ter muita gratidão. E também muita responsabilidade.
E os miúdos querem ser mágicos? Recebe pedidos de ajuda?
Procuro ajudar o mais possível. Os festivais intermunicipais “Sítios Mágicos” e “MagiCarSicó” têm serviço educativo incluído porque numa fase da nossa formação, sobretudo em miúdos mais introvertidos e tímidos, a magia pode ter um papel extraordinário, funcionando como veículo de extroversão e de comunicação. A maior parte dos magos profissionais eram tímidos. Eu era muito tímido. E encontramos na magia um meio que nos permite comunicar.

A questão da utilidade, de novo.
A magia é uma arte multidisciplinar, de forte ancora científica. A relação com a matemática, com a física, com a química, com a dinâmica, com a ótica é muito direta. Aliás, estou a trabalhar com a Universidade de Coimbra num projeto que vai traduzir-se numa grande exposição itinerante internacional, precisamente que junta magia e ciência. A ciência ajuda a explicar o que fazem os mágicos e a magia ajuda a explicar, de forma entusiasmante e acessível, a ciência.

Para quem faz sonhar tanto e conhece a magia, o que o faz sonhar?
Maravilha-me a capacidade humana de superação. Emociona-me ver um atleta a cruzar a meta em primeiro lugar, maravilha-me uma nova descoberta científica. Por exemplo, a criação de uma vacina num prazo recorde de um ano. E fico muito feliz por ter cá estado na altura em que aconteceu. Fascina-me aprender como funciona algo que antes desconhecia.

Que magia ou truque, apesar de já o ter visto, o deixa com um de criança?
Em 2012, era presidente do júri dos campeonatos mundiais de magia, um jovem coreano com 19 anos [Yu Hojin] fez-me chorar com um número de manipulação de cartas.

O que o comoveu?
Ficar surpreendido por aquele inexplicável, nunca antes explorado. Ainda por cima tão bonito. Eu podia ter tido aquela ideia. Mas não tive.

O que distingue um mágico bom de um mágico excecional?
Sorte, trabalho, talento. É na interação desses três elementos compensáveis entre si que as pessoas se definem.

Em que proporção se conjugam em si?
Tenho um bocadinho das três, desconheço em que dimensão. A única de que tenho certeza é a do trabalho. Não quero usar falsa modéstia nem armar em snob, mas do talento que possa ter que falem outros.

Qual foi a maior sorte profissional?
Ter-me cruzado com as pessoas com quem me cruzei, muito especialmente as que estão na minha equipa. Que são as minhas âncoras.

A carreira de mágico começou aos 11 anos. Mas, na verdade o grande impulso dá-se em 1995, com a adivinhação dos números do totoloto. Foi o seu totoloto. De quem foi a ideia?
Essa, por acaso, foi minha. É a partir daí que as pessoas passam a saber o nome. Deixei de ser o rapaz que faz magias na televisão para passar a ser o Luís de Matos.

Tantos anos depois, o que sente quando sobe ao palco?
Fico altamente preocupado se não estou nervoso. Faço por estar nervoso. Para mim, estar nervoso significa esticar a minha atenção ao detalhe.

Vigília?
Isso mesmo.

Em que momento considera que uma magia está pronta para mostrar ao público?
Não fosse haver uma data para um espetáculo e nunca estaria pronta. Nunca teria apresentado nada ao público. Na verdade, funciono muito melhor sob a pressão de uma data. Quando tenho tempo, as ideias ficam no meu bloco de notas anos e anos.

Quem e onde se inspira?
Em tudo, menos na magia. Cedo percebi que, se usasse a magia como fonte de inspiração, entraria numa espiral negativa de consanguinidade progressiva. Percebi que a melhor forma é ir ao teatro, ver documentários ou mesmo montras de casas de móveis.

À procura de alçapões.
À procura de ideias. De que maneira uma mesa poderia ser aproveitada para uma intenção. Procuro olhar para fora da magia e expor-me. Estudo magia, o que outros fizeram, inventaram, escreveram. Na minha biblioteca, há livros desde o século XVI a 2021. Mas a inspiração deve ser externa à atividade.

O que mais teme que lhe aconteça em palco?
Deixar mal a minha equipa e o meu público. Um falhanço tal que o espetáculo se torne patético. Mas tenho uma certeza: o público perdoa sempre um erro, nunca perdoa o aborrecimento. O público sabe exatamente o que perdoar em cima do palco.

A magia presta-se muito a esse ridículo de que fala, gerando em quem vê a vergonha alheia. Concorda?
Concordo. Essa vergonha sente-se mais no aborrecimento e na falta de qualidade de que num fio que partiu. Essa vergonha alheia é, de facto, altamente dolorosa.

Como é a relação entre mágicos?
Há de tudo. Eu tenho uma perspetiva pouco popular no meio mágico. Defendo que devia ser menos hermético e os métodos mais conhecidos para que o nosso trabalho fosse mais valorizado. Se assim fosse, o modus operandi deixaria de ter valor, apreciando-se mais a mestria do executante. Manter em segredo os métodos pode levar a que o espectador possa achar legitimante que tudo se resume a carregar num botão.

A internet está cheia de segredos de magia revelados. Acha, então, que isso não banaliza a magia?
Só me incomoda essa divulgação porque é feita com má atenção, de forma parola, patética, vingativa. “Olhem que é um fio, olhem que é um espelho.” Mas, a longo prazo, vai ser mais positiva que negativa. A democratização vai trazer mais talentos. Continuando a viver nos segredos, o crescimento será muito lento.

A evolução tecnológica é mágica. Vulgariza a inovação e retira-nos capacidade de assombro. Como é que o mágico combate isto?
É verdade. A nossa geração perdeu um pouco da capacidade de assombro. Hoje, raramente dizemos “Oh, não me acredito nisso”. Há cem anos, as caixas e os adereços dos mágicos lembravam fadas e purpurina, glitter e estrelinhas. Hoje, há uma tendência para um aspeto mais normal. Não quer dizer que sejam normais, mas é importante que tenham um aspeto normal. E a narrativa tem de ser clara e credível. Estupidamente credível apesar de mentira.

Hoje, com tanta evolução tecnológica, ainda há truques em que o magico corre risco de vida?
Há, sim. Há casos históricos em que se correu risco de vida porque o performer foi apenas parvo. Mas nem todos os acidentes se podem evitar.

Tem cicatrizes?
Em 1996, fiz fuga de uma camisa de forças, pendurado numa corda a arder, no zoológico, sobre 13 leões. Havia uma câmara que filmava de cima, e que tinha uma placa de metal que protegia do fumo. Os ensaios foram tão longos que a placa derreteu e caiu nas minhas costas. Deixou cicatriz e podia ter sido pior.

Os jovens passam o dia agarrados às tecnologias. Isso é bom ou mau?
No serviço educativo dos festivais de magia intermunicipais em que estamos a colaborar, notei que entre os dez e os 13 anos há uma geração com agilidade de mãos e dedos muito inferior à que eu tinha com a idade deles. Porque nos telemóveis ou ipads usam apenas os polegares. Ora, não é possível abrir um simples baralho de cartas tendo quatro dedos de cada mão colados. O controlo sobre cada dedo é muito reduzido porque os estímulos diários são poucos.

Ainda hoje treina?
Claro. Com bolas, com cartas, com objetos pequenos. É fundamental para um mágico.

Houdini apresentou-se diante de um papa. Fale-me de um espectador especial.
Tenho várias pequenas histórias. Uma delas, em Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos). Um auditório enorme, para milhares de pessoas e eis que o promotor me avisa de que os bilhetes esgotaram para várias sessões. Estamos a falar de um preço médio de bilhete na ordem dos 350 dólares. Na estreia, tinha na sala uma dúzia de ilhas, ou seja, uma pessoa rodeada por um mar de cadeiras vazias à volta. Eram aqueles senhores muito ricos que gostam de largueza. [risos] Mas, sabe, não importa se são reis ou rainhas. O espetáculo mágico coloca todos no mesmo patamar.

A quem gostava de apresentar a sua magia?
Já nem digo isso. Bastava-me poder conversar com a meia hora com Barack Obama ou com o Papa Francisco.

Que político português faria desaparecer temporariamente?
Às pessoas que merecem desaparecer mais vale ignorá-las. É a minha atitude na vida. Tenho algum desencanto relativamente ao rumo que a classe política em geral vem tomando nas últimas décadas, um certo carreirismo que se sobrepõe àquilo que devia ser uma nobre vocação. Tive a felicidade de ter privado com um homem como António Arnaut – cuja vocação era lutar pelo bem comum -, custa-me olhar hoje para alguma política.

Ao contrário de um bailado ou de um concerto, fica-se com a impressão de que fazer um espetáculo de magia cansa pouco. É assim?
Tenho uma regra na vida: ainda que esteja quase a cair para o lado, nunca digo que estou cansado. Recuso-me porque acho que a verbalização de um estado ajuda muito a que se apodere de nós. Mas, sim, cansa muito desde logo porque faço cada espetáculo como se fosse o último. E um dia será.

Um dia, quando?
Daqui a muito tempo ou para semana. Nunca se sabe e esse é o lado bonito da coisa. A noção de que isso pode acontecer faz-nos usufruir mais das coisas, pensar mais nas pessoas e ter outros cuidados. A conduzir, por exemplo. E eu sou péssimo a conduzir, ando muito depressa. Mas esforço-me por ter essa noção. A pandemia ensinou-nos isso – a importância de termos presente a fragilidade da nossa existência.

A pandemia tornou-o melhor pessoa?
Acredito que sou melhor pessoa agora do que antes. A fragilidade da vida é inspiradora.

Fale-me dos custos emocionais e financeiros.
Brutais. Nós preparávamo-nos para entrar em 2020 a celebrar internamente 25 anos de equipa. Um quarto de século de uma indústria criativa sem precedente, nove postos de trabalho, apesar de nunca sabermos como vamos pagar ordenados daqui a seis meses. Vinte e cinco anos em que conseguimos levar a magia ao Teatro Nacional, inaugurar um estádio, fazer uma série para a BBC, estar 20 anos no canal público. Nada disto, antes de nós, existia. Nunca antes, a magia enchera uma arena com milhares de pessoas. Portanto, havia muito que celebrar. Tanto mais que prevíamos estar 26 semanas na estrada, em tournée pelas grandes cidades europeias. Começamos 2020 cheios de entusiasmo. O mundo era o limite. E, de repente, veio a pandemia. Passamos pela negação, pela revolta, chegámos à frustração e estávamos ali a morrer na apatia quando li um título numa revista que se revelou uma epifania: “afundar ou nadar”. E aí percebi tudo. Percebi que só tinha de escolher. Escolher afundar é só parvo. Por isso, decidimos nadar. Sabendo que não podíamos perguntar durante quanto tempo, se a água é quente ou fria, se há tubarões, ou qual é a direção. Trata-se de nadar até ao limite das forças ou até aparecer terra. Então, começamos a nadar. Ou seja, a reinventar-nos. Vamos celebrar estes 25 ano a provar que sabemos nadar. E começamos a ter ideias que jamais teríamos tido se não tivesse havido pandemia, começando pelo drive-in.
Ficamos ricos, não. Como business model, não faz sentido, mas salvou a nossa sanidade mental. Criamos o primeiro espetáculo híbrido de magia. Luís de Matos #Conectados, conceito completamente novo. Sempre esgotados.

Romantiza a pandemia?
De maneira alguma. A pandemia é uma tragédia. A partir do momento em que morre uma pessoa, é uma tragédia. Agora, a assumindo que é uma tragédia, vamos aprender a recompormo-nos dessa tragédia. Fizemos desse problema uma oportunidade. Há muitos anos que nesta casa ninguém usa a palavra problema. Usa a palavra oportunidade.

O Estado esteve bem no apoio à cultura?
Independentemente de alguns erros, que apontei e aponto, o Estado esteve particularmente bem ao longo de todos este processo. Olho para os protagonistas e não encontro um que me dê garantias de que faria melhor do que António Costa.

E agora vai estrear Luís de Matos Backstage.
É a nossa terceira criação impulsionada pelos tempos que estamos a viver. Não quisemos que fosse um espetáculo online por contingência. Quisemos que fosse online por ambição. Por isso, não pode acontecer noutras circunstâncias que não nestas. É um convite a uma viagem pelos bastidores do Estúdio 33, um lugar que muitas pessoas querem conhecer (escritório, oficina, parque de estacionamento, biblioteca, palco) numa proximidade impossível noutras circunstâncias. Vamos ter pessoas de várias cidades e de vários países, juntas, a interagirem. É até possível conhecerem-se porque falam entre elas. Acontecerá todas as sextas feitas e acreditamos que irá até ao fim do ano.

Depois de acabar o curso de Engenharia Técnica e Produção Agrícola, lembra-se do momento em que decidiu escolher a magia e deixar de lado a carreira docente?
Na verdade, gostava das duas coisas. Como sou muito racional – quando sou irracional sou-o de forma contida – decidi que escolheria o caminho que me permitisse reverter caso viesse a verificar que tinha tomado a decisão errada. Ora, se é complicado começar uma carreira artística ao fim de 30 anos de academia, o contrário é ter sempre em backup uma carreira, é essa segurança que me permite dizer não a coisas que não quero fazer.

Lembra-se a primeira vez que viu magia?
Fazia parte de um grupo de teatro com outras crianças, tinha uns oito anos, cantava-se, dançava-se e além de tudo isso havia um menino, o Serafim, que sabia uns truques. Foi a primeira vez que vi magia.

Na altura, o que fascinava na magia?
A magia nos dá uma situação de vantagem. Sei um segredo que tu não sabes. Como sei o segredo, parte da admiração de ti por mim está garantida.

Como tem usado a timidez em favor próprio?
A timidez não traz nada de bom. A timidez só nos faz estar sempre a pensar que devíamos ter dito aquilo que não dissemos. Até aos 23, 24 anos, na minha vida e na minha carreira, era muito cuidadoso nas minhas conversas e entrevistas. E, depois um acidente de automóvel, mudei.

O tal hábito da velocidade de que falava há pouco.
Além disso, tinha a carta há três dias. Esse acidente foi um “wake up” [despertar]. Isto pode acabar a qualquer momento. E, a partir daí, achei que o cuidado e a cautela no que tinha para dizer trazia bem nenhum à sociedade. Deixei cair a ideia de que um artista não deve envolver-se em questões sociais ou cívicas, seja a despenalização da interrupção voluntária da gravidez ou a legalização da eutanásia, causas que defendo.

Durante anos foi o único nome – e ainda é – na magia portuguesa. Tem sido um promotor da magia ou o seu eucalipto?
A primeira vez que apareci perante a comunidade mágica portuguesa foi em 1986, na Figueira da Foz. Havia um concurso, concorri e ganhei o premio revelação. Tinha 16 anos. Na altura, a média etária dos mágicos portugueses era acima dos 60. Admito que ao longo estes 25 anos de equipa, mais do que abrindo portas, fomos partindo paredes. Ou seja, até nós nunca um mágico fora condecorado por serviços prestados à Cultura, nunca as portas do Teatro Nacional de abriram à magia, nunca a magia estivera 20 anos em canal público. E por aí fora, numa série de coisas que antes de nos nunca tinham acontecido. Nos últimos dez, 15 anos, têm aparecido novos talentos, jovens premiados em concursos no estrangeiro, e há uma vontade de bem fazer. Existe essa massa criíica, no que fora um hobby alimentado interpares. Magia feita entre e para mágicos. Ora, sempre tive a noção de que o desenvolvimento e divulgação da magia só se consegue quando são feitos junto dos interlocutores para os quais foi criada.

A quem vai legar os seus conhecimentos?
Vou legando. Em livros, DVD, conferências.

Não tem um segredo só seu?
Não. É com enorme prazer que partilho segredos e ideias com outros colegas. Para ser sincero, a magia deu-me tudo aquilo que tenho na vida, faz sentido que a tente deixar um pouco melhor do que a encontrei.

No final a carreira, o que gostava que dissessem de si?
Que fui uma pessoa honesta, apaixonada, solidária, e trabalhador.
Presta sempre tributo à equipa. O que acha que pensam os seus colaboradores do que é trabalhar consigo?
A coisa mais horrível em trabalhar comigo é, primeiro, eu ser muito direcionado. Segundo, não pedir nada que não saiba fazer. Posso não fazer bem, faria mal, se fizesse, até, mas faria acontecer. E se isso me impele a respeitar o trabalho dos outros também me leva a pedir mais. Porque sei que no fundo aquilo é possível. A minha equipa sabe que não há nada que não esteja disposto a fazer. Não peço a ninguém que passe a esfregona neste chão se não estiver disposto a fazê-lo. Quanta vezes passei a esfregona neste chão e não o faço por gala. Parece-me normal. Para mim os trabalhos são todos iguais.