É um metal crucial para a transição energética, o alimento das baterias do futuro - até lhe chamam o novo petróleo. Fala-se em desenvolvimento nacional, na oportunidade para a descarbonização da economia, numa peça essencial para a indústria automóvel. Uma equação com vários ângulos, uma balança difícil de equilibrar. Com contestações e avisos à mistura - não há mineração verde é um deles.
As virtudes estão estudadas e as evidências não negam as potencialidades e a versatilidade do metal alcalino, o mais leve da tabela periódica. Na indústria farmacêutica, o carbonato de lítio é usado no tratamento do transtorno bipolar, é também fundente na atividade cerâmica e vidreira, está ainda nas baterias dos dispositivos eletrónicos e carros elétricos. Os discursos da descarbonização da economia, da sustentabilidade, da diminuição da dependência dos combustíveis fósseis, das baterias do futuro, já não se fazem sem a palavra lítio. Não é um discurso linear, há diversos fatores nesta conversa. Afinal, é o metal do qual se fala.
Portugal dispõe de condições geológicas favoráveis à ocorrência de minerais de lítio e a prospeção avançou em oito áreas das regiões Norte e Centro, que não ostentam o estatuto de proteção ambiental. Entregaram-se estudos de impacto ambiental, refizeram-se ideias, enviaram-se contestações no processo de consulta pública, seguem-se as avaliações de entidades competentes na matéria, aguardam-se decisões que só chegarão em 2022. Se Portugal tem lítio no subsolo, porque não aproveitá-lo?
Até 2040, a produção e venda de veículos elétricos aumentará entre 30 e 35%. As baterias de lítio dominam o mercado mundial de baterias recarregáveis, alcançando esta posição em menos de 30 anos. A procura de lítio vai aumentar nas próximas décadas. É ponto assente, não há volta a dar. A Agência Internacional de Energia estima um crescimento dessa procura 42 vezes superior em 2040 comparativamente a 2020. E Portugal não quer ficar à margem da cadeia de valor do lítio, a Galp quer instalar uma refinaria de lítio, possivelmente em Sines, e nos fundos estruturais do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o metal não passa despercebido.
António Cunha, presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), lembra que o Norte e a Galiza juntos, enquanto espaço eurorregional, concentram uma das maiores densidades da indústria automóvel da Europa – a Bosch, em Braga, a Continental Mabor, em Famalicão, a Simoldes, em Oliveira de Azeméis, a Mercedes acaba de anunciar que instalará o seu segundo centro tecnológico em Braga, entre outros exemplos. “O que faz com que haja um volume de negócios extremamente importante”, sublinha. Em números, cerca de 28 mil milhões de faturação anual no Norte e na Galiza.
“Mais do que ser um setor muito importante para todo este eixo, estamos a falar de uma indústria que pode estar ligada ao automóvel do futuro”, sustenta António Cunha. “Uma das vantagens competitivas económicas da região passa pela monitorização elétrica. Nesse contexto, as baterias são uma parte integrante do setor automóvel e das indústrias do futuro.” Aqui entra o lítio, o metal que continua no centro das atenções e no solo português. “É uma oportunidade que faz sentido e que deve ser aproveitada”, refere o presidente da CCDR-N. Mas este é um lado da equação. Há outro igualmente importante – e já lá iremos.
“Portugal é um player internacional no que diz respeito à cadeia do lítio”, observa António Mateus, professor catedrático no Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, especialista na área da mineralogia, geoquímica e metalogenia. Neste momento, sobretudo como fundente da pasta cerâmica. “Se há um recurso importante para o desenvolvimento do país, temos de pensar três vezes”, acrescenta.
Para António Mateus, o assunto merece um debate profundo, aturado, nas suas múltiplas dimensões, com argumentações construtivas e críticas que afastem visões catastrofistas do que será feito – e, em nenhum momento, separa aceitação política e aceitação social, uma coisa não está dissociada da outra. Desde logo, em sua opinião, não se pode misturar duas coisas: recursos e reservas. Reservas dizem respeito à presença de um recurso que é explorado num determinado momento, neste caso, a partir do qual o lítio é economicamente produzido. “O que não era reserva no passado pode ser hoje, o que é reserva hoje pode deixar de ser amanhã.” Na delimitação de reservas, desde os anos 80 do século passado, recorda, passaram a estar incluídas preocupações de natureza ambiental e social e não há empresa que avance para a extração se não tiver certezas da viabilidade económica. “Nem todos os recursos podem ser convertidos em reservas com um estalar de dedos.” Seja como for, é preciso ponderação. “Portugal pode retirar dividendos extraordinariamente interessantes.” E avisa para que não haja dúvidas: não há mineração verde, há, sim, operações sustentáveis.
Miguel Macias Sequeira, investigador em energia e clima na FCT-Nova, Nova School of Science and Technology da Universidade Nova de Lisboa, um dos embaixadores do Pacto Europeu para o Clima em Portugal, também alerta para esse aspeto, bem como para outras variantes. O lítio tem uma importância estratégica na transição energética para mitigar os piores efeitos das alterações climáticas, haverá consequências sociais e ambientais que não podem ser ignoradas, tentar exportar esses prejuízos para outros países não é sustentável e não é justo, e não há mineração verde. “A exploração mineira é sempre uma atividade de elevado risco ambiental. Mesmo quando feita em prol da transição energética”, salienta.
Mobilidade, transparência, escrutínio
O desenvolvimento económico não é uma simples conta de somar. “O lítio português pode não ser suficientemente competitivo num mercado global, onde existem vários produtores consolidados com acesso a reservas de dimensão muito superior e custos de produção mais baixos”, comenta Miguel Macias Sequeira. “A sua competitividade dependerá de uma possível valorização suplementar atribuída a matérias-primas extraídas e processadas na Europa, fomentada por desígnios estratégicos, ambientais ou sociais, mas que, neste momento, não parece assegurada”, adiciona.
Preços competitivos noutros países podem ser um obstáculo e a mobilidade sustentável não se garante apenas pela substituição direta do automóvel convencional pelo elétrico. “De facto, mesmo sendo uma tecnologia efetivamente melhor que mitiga alguns problemas, como a poluição do ar urbano e a emissão de gases de efeito estufa, cria outros conflitos que não podem ser ignorados, como os associados à exploração mineira. Certos problemas podem simplesmente permanecer iguais”, avisa.
Para o professor António Mateus, o país precisa de “uma reindustrialização moderna”, não pode viver apenas do turismo, o lítio existe e tem múltiplas utilizações, é um investimento necessário, as tecnologias do passado não são as de hoje, os impactos ambientais não são tão gravosos como, compara, desflorestar um terreno para uma cultura de batatas ou abrir um furo para extrair água. “Já ninguém utiliza a dinamite à moda antiga, hoje em dia há um conjunto imenso de ferramentas e tecnologias, é deixar os operacionais trabalhar. E garantir que os mecanismos de fiscalização e de escrutínio local das atividades empresariais são feitos”, diz. “Não há que temer se, efetivamente, todas as partes respeitarem o contrato que se estabelece.” E acrescenta: “As pessoas têm de compreender que, das duas uma, se há um desejo de avançar com uma exploração, o escrutínio democrático deve ser justo e bem informado.”
A contestação dos movimentos antiminas é conhecida e não é de agora. Há receio dos impactos ambientais e visuais, das poeiras no ar, de contaminação de rios, da destruição de baldios. De uma vida pior com a extração de lítio. Boticas, no norte, distrito de Vila Real, não se verga à conversa de desígnio nacional do Governo e aos floreados da transição energética. Fernando Queiroga, presidente da Câmara, mantém-se contra a exploração de lítio, promete bater o pé, insiste que o processo “já nasceu mal”, garante que não há pareceres que deem luz verde à prospeção feita naquele território. “Cada vez que leio mais, mais assustado fico. É um processo mal-amanhado, tanto assim é que no próprio estudo de impacto ambiental são muito claros: há efeitos ambientais muito negativos e uma série de efeitos colaterais negativos.” A Câmara apresentou uma das 170 contestações à extração de lítio em Covas do Barroso. Número inédito a nível nacional, enfatiza.
O discurso centrado no desenvolvimento do país não convence o autarca. “São soundbites bonitos de ouvir. As reservas que existem em Boticas, que dizem que são as maiores da Europa, são irrisórias. Há lóbis financeiros. Na tal cadeia de valor, o que fica para Boticas é a desgraça e a destruição.” Nem fábricas de baterias, nem fábricas de carros elétricos, nem estruturas ligadas à reciclagem. Nada. Se o discurso fosse atrair gente e fixar pessoas, a conversa poderia ser outra. Mas não. “Temos a carne barrosã, o mel de Barroso, somos Património Agrícola Mundial do Barroso, e a mina é a mina do Barroso. Como vamos vender o território com um nome associado a uma mina? É um absurdo.”
A associação ambientalista Zero segue o assunto com atenção. A tecnologia com base no lítio é um importante aliado na transição energética, não há dúvidas, sobretudo num tempo em que o combate às alterações climáticas faz parte da agenda social e política global. No entanto, há questões que têm de ser salvaguardadas e, para a associação, a extração de recursos minerais a qualquer custo não é justificável, sem que sejam acautelados impactos sociais, económicos, ambientais. Nuno Forner, da Zero, fala de tudo isso. “Independentemente de estarmos perante um recurso que integra o domínio público do Estado, a exploração não poderá avançar se não for possível garantir que a mesma se fará de forma responsável e sustentável”, defende. Não há outra forma. “É fundamental que exista transparência e disponibilização de toda a informação que proporcione uma discussão com todos os interessados sobre os aspetos negativos decorrentes de uma exploração mineira, sejam eles ao nível dos impactos negativos sobre as componentes ambientais das regiões em questão, os impactos sociais e económicos, assim como as eventuais compensações decorrentes de investimentos para a região”, argumenta.
Ecossistemas, populações, contrapartidas
Miguel Macias Sequeira refere que o modelo de negócio da exploração mineira, numa fase inicial da cadeia de valor, de duração geralmente curta, pode não ser interessante na perspetiva do desenvolvimento regional. “As contrapartidas económicas das concessões podem nem sempre ser um bom negócio para o país, porque são efetivamente reduzidas, sendo repatriado a maior parte do capital estrangeiro investido, mas, acima de tudo, não são um bom negócio para as populações locais. Para estas, a principal contrapartida económica é trabalho temporário e precário, que frequentemente não justifica todas as outras atividades sacrificadas – agricultura, pastoreio, apicultura, silvicultura e turismo, entre outras.”
Pede-se atenção, muita atenção, num assunto delicado e que mexe com comunidades locais. “Naturalmente devem ser seguidas as melhores práticas, mesmo que tal aumente os custos operacionais do projeto, mas isso pode não ser suficiente: há limites que não podem ser ultrapassados e projetos que devem ser rejeitados. As populações locais e o património natural têm de ser intransigentemente protegidos. Qualquer opção que provoque a sua destruição irreversível é inaceitável, independentemente de quaisquer desígnios estratégicos ou económicos”, sublinha o investigador.
António Cunha, presidente da CCDR-N, acrescenta o outro lado da equação. A preservação de várias componentes. “A exploração de lítio deve ser feita de acordo com as melhores práticas de sustentabilidade ambiental que garantam uma monitorização dos impactos nos ecossistemas e na qualidade de vida das populações.” Há tecnologia, há interesse, há cadeia de valor, há legislação, há regras a cumprir, há que dialogar com as comunidades. “É natural que as pessoas estejam preocupadas, há um passado da exploração mineira que não é muito abonatório.” Há trabalho a fazer, portanto. “É preciso ir mais longe, para além do cumprimento escrupuloso das questões legais, os operadores desta atividade devem criar quadros de confiança com as populações.” Até porque esta cadeia de valor tem várias fases, desde a mineração, lavagem, obtenção do hidróxido de lítio, fabrico de baterias, até à reciclagem. Há geração de valor e, nesse sentido, António Cunha considera que grande parte dos rendimentos deve ficar nos territórios onde a extração será feita e as contrapartidas não podem servir para justificar más práticas. As populações devem ser envolvidas no processo para perceberem o que se passa, o que pode ou vai acontecer. E as próprias soluções de monitorização elétrica automóvel evoluirão nos próximos anos nas baterias do futuro.
O que é rentável, neste momento? O lítio parece ser a resposta e o mercado é soberano, o mercado manda, aumenta a pressão nos produtores. Orlando Alves, presidente da Câmara de Montalegre, não mudou de opinião, percebe o desenvolvimento que o lítio representa para o país, entende as preocupações da população, aguarda pelas conclusões do estudo de impacto ambiental, é preciso acautelar contrapartidas para a comunidade. “É óbvio que há alguns interesses que têm de ser considerados, temos de defender os interesses das pessoas que aqui vivem. Os pequenos produtores pecuários podem ser privados de áreas de baldio, ninguém pode ver a sua atividade cortada de raiz”, assinala. “Com muita ou pouca produção, muitos ou poucos proventos, os interesses das pessoas têm de ser muito bem defendidos, não só na avaliação dos terrenos, mas também na avaliação dos custos decorrentes do término de uma atividade”, afirma.
O autarca acompanha as movimentações e não nega evidências. “É um dado adquirido. Portugal já está envolvido no processo do lítio.” Orlando Alves confia no que está a ser feito. “É impossível que o processo avance se for a monstruosidade que alguns pseudointelectuais daqui querem fazer que é – aí morre à nascença. Estamos no século XXI, estamos na União Europeia, as questões ambientais são sagradas para a Comissão Europeia”, destaca. Em Montalegre, sente que o tema tem sido usado como uma arma de arremesso político. “O assunto é político e nada mais. Não deixa de ser surpreendente que no recente ato eleitoral, a hostilização à Câmara não tenha tido reflexos onde a prospeção está a ser feita.”
Em Boticas, Fernando Queiroga não está sossegado. “A questão da água é fundamental, não há água suficiente para a lavaria. Vão buscá-la ao rio?”, questiona o autarca, recordando pareceres negativos para a construção de uma barragem na zona, agora diz-se expectante para ver as considerações de algumas entidades. “O impacto visual é assustador. É uma serra cortada ao meio e aprofundada 800 metros”, refere. “É uma devassa ambiental. Todas as pedreiras que existem em Vila Pouca de Aguiar não ocupam metade do buraco feito em Boticas.” E há uma pergunta que não se lhe sai da cabeça: como se chegou até aqui?
O autarca adianta que, até ao momento, não foi pedido um caderno de encargos à Câmara das reais necessidades do concelho, ouve-se falar em 200 postos de trabalho, 500 mil euros para Covas do Barroso, quando, faz notar, os rendimentos agrícolas ali rondam os 700 mil euros/ano. “Estão no terreno, não falam com as pessoas, tentam adquirir alguns terrenos, pagando preços completamente absurdos.” “Não há verbas que paguem o prejuízo humano e ambiental que vai ser feito no concelho de Boticas. Sou contra e lutaremos para que esta mina não vá para frente.”
Nuno Forner, da Zero, aborda um aspeto que não lhe parece evidente. “Segundo a informação que vem sendo constantemente veiculada na comunicação social, Portugal será um dos players europeus devido às suas alegadas reservas de lítio, embora o Relatório de Avaliação Ambiental Preliminar do Programa de Prospeção e Pesquisa, nas oito áreas potenciais em lítio, aponte para a escassez de dados que permitam saber efetivamente qual o valor deste recurso”, repara. Seja como for, o ambientalista insiste no respeito integral dos direitos humanos das populações e que as áreas classificadas não sejam afetadas. Caso contrário, realça, corre-se o risco de colocar em causa o investimento feito até à data, “assim como hipotecar o desenvolvimento de todo um território no futuro.” É o imperativo de preservar os espaços naturais, a biodiversidade, os ecossistemas, e o bem-estar das populações.