La Palma: a ilha onde a terra acaba de nascer

Como celebrar o Natal no maior momento de perda das nossas vidas? Um vulcão rasgou La Palma e fez colapsar casas, memórias, sonhos. Um castelo de cartas.

O vento sopra intenso, quase ácido, e obriga-o a semicerrar os olhos, cravados no horizonte. Não há dúvida. “Era ali, exatamente ali”, a casa que Antonio Rodríguez, 55 anos, construiu com as próprias mãos, entre as montanhas Cogote e Rajada, em La Palma, no arquipélago das Canárias, Espanha. Engole em seco. Hoje, no mesmo sítio, uma mão cheia de nada. Só uma mancha negra a perder de vista.

A ilha mais íngreme do Mundo quis crescer e o vulcão que irrompeu das entranhas da serra de Cumbre Vieja estendeu os seus destruidores tentáculos com a força de quem chega para conquistar terreno. A fúria da Natureza engoliu localidades inteiras (Todoque, no município de Los Llanos de Aridane, por exemplo, eclipsou-se) e obrigou mais de sete mil pessoas a fugirem de casa, muitas delas à pressa, debaixo de uma chuva ardente.

Antonio ainda tem os braços queimados. Mas a dor maior é na alma. “Há dias em que acho que não vou conseguir suportá-la”, confessa. A erupção vulcânica que começou a 19 de setembro, há precisamente três meses, tirou-lhe tudo. E o detalhe com que o reformado da área da construção civil, já operado três vezes à coluna, recorda cada passo dado desde o minuto um do inferno é desconcertante.

(Foto: DR)

No dia em que o chão da “Isla Bonita” se rasgou – a última vez tinha sido há cinco décadas, em 1971 -, os fortes tremores de terra não deixaram ninguém dormir. Por volta das seis da manhã, Antonio, a mulher e a filha (que vive em Tenerife mas não quis deixar os pais sozinhos) acompanhavam, incrédulos, as informações oficiais sobre a atividade sísmica. “Algo não estava bem. Havia a indicação de pequenos terramotos, mas nós estávamos a senti-los de forma intensa.” A manhã foi passada assim, ora dentro, ora fora de casa, no terreno do casal. Apesar do ruído “que parecia vir de dentro da terra”, a propriedade estava numa “zona segura”. Pelo menos tinha sido essa a garantia dada pelas autoridades no dia anterior.

Por volta das três da tarde, uma forte explosão, fotografada por Antonio, confirmou o maior medo da família. Lá estava a boca principal do vulcão Cumbre Vieja, já aberta, impiedosa, mesmo por trás da Montanha Rajada, a 900 metros das paredes que o espanhol ergueu. “Começaram a cair pedras no terreno e fomos a correr para os carros. Não sabíamos para onde ir e passámos o resto da tarde no miradouro de Tajuya, sem tirar os olhos da casa e do vulcão”, conta, já com a voz trémula. A montanha era o escudo protetor da vivenda e, alívio, a enorme massa incandescente começou a conquistar caminho pelo lado norte.

A primeira explosão do vulcão, fotografada por Antonio, ocorreu pouco depois das 15 horas de 19 de setembro
(Foto: DR)

Uma amiga a quem já tinham dado guarida, no verão, na sequência de um incêndio que a obrigou a sair de casa, acolheu-os. E lá ficaram, agarrados à televisão e à esperança. No dia seguinte, os deslocados num raio de dois quilómetros do vulcão tiveram de ir entregar os dados pessoais às autoridades. Era preciso acionar ajudas e assegurar que todos haviam deixado as casas para trás. Enquanto Antonio conversava com uma psicóloga, o telefonema que não queria receber. “Uma vizinha disse-me que a minha casa já tinha sido engolida pela lava”, recorda. Não quis acreditar e chorou durante três horas, até ficar sem lágrimas.

 

“Saímos já ou morremos aqui”

Pouco depois, novo trambolhão de emoções. Um funcionário da Câmara de Los Llanos de Aridane foi autorizado a deslocar-se à zona afetada e regressou com a boa nova. A casa estava intacta. “Tranquilizámo-nos”, reconhece. Mas nada lhes desfazia o nó cego na garganta. Precisavam de voltar a vê-la. Quando souberam que um dos vizinhos conseguiu passar pelo controlo policial, com um camião, para ir a casa tentar retirar bens, fizeram-se à estrada.

Antonio Rodríguez
(Foto: Mariana Albuquerque)

À medida que se aproximavam, a cinza tornava-se cada vez mais grossa. Tudo era negro. “A 700 metros de casa estavam dois carros da Polícia, cruzados na estrada, com as portas abertas e as sirenes ligadas, mas ninguém lá dentro. Decidimos avançar, debaixo de uma chuva de granizo”, descreve. E conseguiram. Com a eletricidade cortada pela erupção, entraram na casinha amarela, às escuras, e subiram as escadas à procura de casacos. Mas um rugido assustador, vindo do chão, fê-los ter a certeza: “Ou saímos já ou morremos aqui”. Correram a toda a velocidade para o carro, a tentar escapar às pedras quentes que lhes deixaram marcas na pele. “Fiquei em pânico”, admite Antonio, todo ele lágrimas, a apontar para as queimaduras.

No dia seguinte, já com a filha, em Tenerife, estavam a ver televisão e “acabou-se a angústia”. “Eram 20.38 horas e assistimos à imagem da nossa casa completamente engolida pela lava. Senti alívio porque percebi que, a partir desse momento, já não precisava de me preocupar com ela. Só com o nosso futuro dali para a frente”, sublinha, com o olhar perdido nas colunas de fumo que pintam o céu. Soube, entretanto, que a vivenda desapareceu engolida por um bloco de lava com 40 metros de altura. “Ninguém da família nos pode ajudar porque estamos todos na mesma situação. Vários familiares da minha mulher perderam tudo.”

A casa que Antonio Rodríguez construiu foi engolida por um manto de lava com 40 metros de altura
(Foto: DR)

Por estes dias, voltou a La Palma, para poder ter acesso às doações. “O Governo aprovou uma ajuda de 30 mil euros para perda total de casas, mas ainda não recebemos nada. As ajudas físicas, de roupa, chegaram rapidíssimo. O resto não. Tudo o que temos agora é graças a isso”, realça, garantindo que jamais esquecerá o momento em que foi pela primeira vez a um dos pavilhões mobilizados pelos serviços municipais. Os voluntários perguntaram-lhe do que é que precisava e António não soube responder. Não tinha nada. “Deram-me uma toalha. Estava tão rota, tão rota, mas não pude dizer que não”, rebobina, entre soluços de tristeza. “Temos um cartão com 150 euros de apoio social para compras. Já nos tinham dado outro com cem euros no mês passado. Mas não recebemos um cêntimo das ajudas económicas resultantes das doações privadas”, acrescenta. É por isso que não quer falar do Natal, que será passado em casa da filha. “Não se pode pensar em festas quando não sabemos onde vamos viver no próximo ano. A incerteza está a matar-me”, assegura. Traumatizada com os últimos dias em La Palma, a mulher de Antonio não quer lá voltar. “Mas nós nascemos e crescemos aqui. E eu sinto que estou a abandonar a minha casa”, explica, de novo perdido em lágrimas.

“Se é para a lava destruir tudo, que seja rápido”

A mulher de Luís Miguel Ramos, pelo contrário, não quer sequer ouvir falar em deixar a “Isla Bonita”. O português, natural da Madeira, mudou-se para La Palma há 26 anos, altura em que aprendeu a respeitar a sabedoria popular. Depois de ter estado em Inglaterra como ajudante de cozinha, seguiu para Tenerife e começou a trabalhar no setor das bananas: cortava-as, limpava as folhas, carregava as caixas. Um dia, o chefe chamou-o e pediu-lhe que o acompanhasse a La Palma para cumprir uma promessa. “Porque não?”, pensou. Foi então que uma conhecida o avisou. “Olha que quem vai a La Palma, lá fica!” Luís, agora com 50 anos, sorriu e garantiu que ia apenas conhecer a ilha. Estava enganado. Na pequena igreja onde a promessa foi cumprida, perdeu-se de amores e nunca mais partiu.

A erupção destruiu a casa de Luís Ramos e de uma das filhas, assim como o armazém de bananas onde trabalhava
(Foto: Mariana Albuquerque)

Agora, só pensa em voltar à Madeira e começar de novo. Mas ainda não conseguiu convencer a companheira e mãe dos três filhos. A primeira explosão do Cumbre Vieja, que Antonio conseguiu fotografar a partir de casa, também foi testemunhada pela família do português. “Estávamos a almoçar quando ouvimos um estrondo enorme e vimos muito fumo negro. Mas pensávamos que estava tudo bem, que a lava chegava ao mar e o vulcão acabava”, refere, na localidade de Triana, em Los Llanos, com as cinzas ainda a levitar pelas ruas, como fantasmas. Às 23 horas tiveram de sair de casa por causa dos gases tóxicos, os mesmos que, recentemente, levaram ao confinamento de 33 mil residentes na ilha. “E foi mais de uma semana em sofrimento, sem saber até quando íamos ter um teto. É por isso que eu digo, se é para a lava destruir tudo, que seja logo, rápido”, desabafa. Valeu-lhes a bondade de um senhor, de 94 anos, de quem a mulher de Luís toma conta, que os acolheu.

No dia em que o vulcão “rebentou”, só chorava de nervos. “Peguei numa muda de roupa e pouco mais. Para onde ia levar os armários e os eletrodomésticos?”. Os animais – ovelhas, galinhas e porcos – ficaram no terreno e, diariamente, com a autorização da Polícia, Luís ia alimentá-los. “Um dia cheguei lá e os animais tinham desaparecido. A Polícia levou-os para um recinto.” Mau sinal. A lava já tinha estado próxima uma vez e, à segunda, avançou demolidora. Destruiu a casa de Luís, de uma das filhas, do sogro e ainda o armazém de bananas onde trabalhava. “Tanta ilusão, tanto dinheiro gastei ali para nada”, suspira, angustiado.

Luís Ramos
(Foto: DR)

Apoios nem vê-los. “A casa tinha seguro, mas ainda não recebemos nada”, afirma, confessando não ter coragem de ir aos pavilhões de apoio buscar comida. “Disseram-nos que ia haver casas pré-fabricadas de madeira, mas ninguém sabe quando nem quem vai para lá. Não quero nenhum palácio, só um quarto para dormir, uma cozinha e uma casa de banho.” O Natal “vai ser triste”. “O senhor vai para casa da filha, em Tenerife, e nós vamos ficar aqui. Não há vontade de celebrar.”

“Já vi três vulcões, mas este é o pior”

O mesmo desencanto espelhado no rosto de Eladio Rodriguez. Aos 85 anos, já assistiu a três erupções vulcânicas, “mas esta é a pior”. “Está a levar as casas, os terrenos, os animais…”, lamenta, pousando no chão duas sacas brancas com comida para o almoço. São quase horas da refeição e a esposa, com quem casou há 64 anos, está à espera no hotel Valle de Aridane, onde estão alojadas pelo menos 70 pessoas que tiveram de deixar as suas casas. As despesas são asseguradas pelo Governo das Canárias.

Eladio e a mulher estão no hotel Valle de Aridane, estadia paga pelo Governo das Canárias
(Foto: Mariana Albuquerque)

Há três meses que o casal vive no limbo. A lava está a 600 metros da vivenda e dos dois restaurantes de que são proprietários: a “Arepera El Rinconcito” e a “Casa Kiko”, na localidade de La Laguna, em Los Llanos. “Tivemos de sair, logo no início das erupções, e puseram-nos aqui.” Todos os dias, durante dez minutos, a Polícia permite-lhes ir a casa buscar pertences e alimentar os dois cães. Fala neles e até os olhos se riem. Mas o cansaço é enorme. Noventa dias de incerteza quanto ao futuro dos negócios e da própria vida. Uma eternidade. A probabilidade de a lava lá chegar é de 60% e alguns dos familiares, nomeadamente um filho e um neto, já sofreram na pele a fúria do Cumbre Vieja – perderam tudo.

“O Natal? Vamos passá-lo aqui, fechados no hotel”, responde, prontamente. O assunto morre ali, pega nas sacas e sobe as escadas, devagar. Três quartos de hora depois, volta a sair, já na companhia da mulher. Ela caminha com dificuldade, mas está segura, de braço enrolado no do marido. E a forma carinhosa com que Eladio lhe sorri faz esquecer, por momentos, os dias de inferno. Apesar de ter nascido em Tenerife, foi na “Isla Bonita” que se apaixonaram. “Ela arrastou-me até ao altar”, brincou, momentos antes. O aviso dado a Luís Miguel Ramos confirma-se. Uma vez mais. Quem vai a La Palma, lá fica.