Júlia Palha: “Tenho algumas inseguranças físicas, não muitas”

É pragmática, raramente exaspera e nunca se deixa cair. É voluntariosa e desafiadora. Faz o que mete na cabeça. Nunca se fica. Tal como Fátima, a pastora a que dá corpo e voz na telenovela “A Serra”, com ela não brincam. Não lhe pisam os pés. Mas só recentemente percebeu que pode dizer não. Que não quer, que não faz, que não despe. Tem inseguranças físicas, “não muitas”. E medo de viver para sempre sob o estigma da mulher bonita que só está onde está por causa disso.

Chegou antes da hora marcada à redação do JN e do DN em Lisboa, em dia de folga, a única semanal, intervalo curto para quem trabalha das 8 às 19, a um ritmo de 40 cenas diárias, rotina ao longo dos oito, nove meses de gravação de uma telenovela. No final, “lava a cabeça” e segue para outro projeto. Aos 22 anos, Júlia Cáceres Monteiro Van Zeller Palha admite que nunca pensou ser tão bem-sucedida numa profissão que lhe aconteceu. Em criança, queria abrir um negócio. Mas também gostava de palavras. “Acontece-me muito ter uma vontade súbita de escrever” – um dom que herdou do lado materno. Foi pelo avô que começámos.

Cáceres Monteiro foi um dos grandes repórteres portugueses. Tinha oito anos quando ele morreu. Que memória tem do avô?
Lembro-me muito bem da expressão dele, muito marcante, de traços muito fortes. Lembro-me também de ele me mostrar num mapa-mundo os vários países onde tinha estado em trabalho. Tantos países e tantas viagens. Mas as grandes memórias são de ler excertos de alguns dos livros que escreveu e de ouvir a minha mãe falar dele.

Nunca quis ser jornalista?
Sempre gostei de escrever, fui até muito incentivada pelos professores, porém, nunca quis ser jornalista. Escrevo desde muito nova, mas nunca com o propósito de dar os textos a ler.

Um diário?
Um diário. Sobretudo para perceber melhor o que sentia. Havia coisas que só sabia que sentia e que só faziam sentido na minha cabeça quando as passava para o papel. Hoje em dia, escrevo nas notas do telemóvel. Acontece-me muito ter uma vontade súbita de escrever.

Como chega então à moda e à representação?
Aconteceu. São raras as pessoas que decidem que querem fazer uma coisa e acabam a fazê-lo. A moda começou como passatempo, uma forma de fazer dinheiro, em que me divertia. Com a representação foi igual. O casting para o filme John From não era para protagonista. Quando o realizador João Nicolau me convidou para ficar com o papel, fiquei contente, mas mal me disse que ia gravar durante o verão recusei o papel. Tinha 15 anos e ia lá perder as férias depois de um ano inteiro a estudar. Acabei por pensar duas vezes porque queria muito comprar um microcarro e sabia que os meus pais não mo iam dar.

Comprou o microcarro?
Comprei. Mas o mais importante é que, a certa altura das gravações, percebi que ia estar na pele de uma personagem me dava muito gozo.

Porque é que não foi estudar representação?
Não o fiz e é das coisas que quero fazer quando a situação do Mundo estiver mais favorável.

Foi sempre boa aluna.
Ter o dom da escrita ajudou. Mesmo quando não sabia responder a uma pergunta, a resposta tinha sempre princípio, meio e fim. É uma sorte e um dom que herdei do meu lado Cáceres Monteiro: saber pôr as palavras no papel.

O que a fez escolher Economia?
Sempre quis criar um negócio de raiz. Mas acabei por estar na faculdade apenas um mês. Era incompatível com a telenovela que estava a gravar na altura. Ainda tentei as aulas noturnas, mas as propostas iam chegando. Não conseguia estar parada mais de um mês.

Estava à espera desse sucesso?
Não. Só há muito pouco tempo, um ano se tanto, comecei a acreditar em mim, a achar que sou um bom nome nesta profissão.

Com quem foi aprendendo a representar?
A televisão é uma grande escola de atores. Todos os dias, a toda a hora, temos colegas incríveis a dar-nos conselhos. Colegas da realização, do som, aprendemos uns com os outros.

Quais são as suas referências?
Em Portugal, gostei sempre muito do trabalho da Inês Castel-Branco e da Victoria Guerra. A primeira vez que vi a Victoria fiquei apaixonada. Também gosto muito da Rita Blanco, uma das melhores, e da Maria João Abreu.

O que gosta nelas?
Da naturalidade. É algo que prezo muito e que tenho em mim. Por isso, sempre me disseram que sou muito cinematográfica. Talvez por não ter tido formação em teatro. Em teatro, treina-se muito a dicção e a expressão corporal, coisas que achava que devia aprender, mas julgo que a minha naturalidade vem do facto de não ter esse treino.

Em si, o que tenta corrigir?
Falar muito depressa. É das maiores lutas que tenho hoje. A geração mais jovem fala muito e a correr. Temos pressa de chegar ao fim, de dizer as coisas. E isso reflete-se na dicção.

Recorda-se dos primeiros conselhos que ouviu?
Logo na primeira novela, o da Cláudia Vieira. Disse-me que não há nada que eu pudesse fazer neste trabalho sem um sorriso na cara. Que nada é mais valorizado neste trabalho do que ser simpática e agradável.

O mau génio está perdido?
Não necessariamente. Quanto se é estupidamente bom em alguma coisa, o sucesso chegará, com bom ou mau feitio. Mas é preciso ser mesmo muito bom.

Todos de sorriso na cara, todos felizes. O ambiente é sempre assim?
Comigo é assim e, na verdade, nós somos o que nos dão. Nunca me deparei com um projeto com mau ambiente ou má educação. Até porque não compactuo com essas situações e ia ter de me meter.

É de se meter?
Sim, não consigo. Que ninguém se atreva a faltar ao respeito a outra pessoa à minha frente. Pode ser a pessoa mais conceituada que calada não fico. Mexe mesmo com o meu sistema nervoso. Pessoas que espezinham alguém que é mais frágil são as que mais me irritam.

Voltando ainda ao meio. Há muitos egos.
Não vamos ignorar que há egos maiores do que outros e que por vezes se fazem sentir um pouco. Como em qualquer lugar e trabalho. Mas quando passamos cá para fora que gostamos de uma colega é porque gostamos mesmo. E também há pessoas que, não gostando umas das outras, não fazem questão de fingir que gostam.

Com que idade começou a perceber que a beleza física é um valor?
Na escola, nunca senti isso, até porque nunca me achei uma menina bonita. Não era considerada das mais giras, nem populares. Havia até um grupo, as pop stars, de que não fazia parte. Nem podia ir aos concertos delas.

“Pessoas que espezinham alguém que é mais frágil são as que mais me irritam”, reconhece Júlia Palha

Sofreu com isso?
Sempre fui muito desligada. O conceito de beleza e de popularidade nunca me afetou até chegar a um meio onde somos bombardeados sistematicamente com esse tipo de informações. Quando comecei a trabalhar com a minha imagem, sobretudo na moda, pensei “OK, tenho uma cara bonita e por isso faço uns trabalhos que me dão dinheiro fácil e bom”. E aí percebi que ser bonito ou ter uma beleza aceite pela sociedade abre portas. Mas não vai além disso. Só fica quem tiver talento e for esforçado. Posso dizê-lo porque, apesar de muito nova, tenho muitos projetos no meu currículo e sou uma atriz com quem toda a gente gosta de trabalhar.

Na moda ou na televisão – as mulheres têm de ser mais bonitas que os homens?
É uma pergunta difícil. Não sei bem o que responder.
Disse numa entrevista: “As pessoas fazem-te acreditar que tu não és suficiente, que tens uma cara bonita, que não tens talento e que só consegues isto porque és o que és”.

Alguém lhe disse isto?
Com esta frieza, não. E ainda bem porque, como não sou de me ficar, se alguém mo tivesse dito nestes termos, ficava com o resto do dia estragado. [Ri] Mas já senti estas palavras no olhar de algumas pessoas. Basta ver, também, os comentários na Internet. A beleza é um pau de dois bicos. Por um lado, a sorte de ter uma cara bonita que abre portas; por outro, ter de levar com estes comentários. É injusto? Não me afeta. Sei que estou aqui apenas porque sou competente e profissional.

Também disse: “As pessoas gostam de colocar esses rótulos para se conformarem melhor com a monotonia das suas vidas e às vezes não querem lutar por mais”.
Acho que nem sempre, mas muitas das pessoas que comentam com essa frieza e maldade devem estar ou ser muito infelizes. É mais fácil acreditar que alguém conseguiu algo porque é bonito, porque teve uma cunha, porque tem dinheiro, porque tem um amigo bem colocado, do que por merecimento e talento.

“Tem de haver cada vez mais vozes, e eu quero ser uma delas, a contrariar esta indústria da moda”, defendeu. Contraria mesmo?
Não faço uma batalha diária, até porque acho que as pessoas têm direito a sentirem-se bonitas. Mas também gosto de alertar para uma utopia que impede muitas vezes que nos sintamos confortáveis com o que somos. Já dei por mim a olhar para pormenores do meu corpo e pensar “porque sou assim?”.

Tem muitas inseguranças?
Tenho algumas inseguranças físicas, não muitas. Tenho medo de viver para sempre neste estigma da mulher bonita que só está onde está por causa disso. Medo por saber que nesta profissão a idade conta. Medo de que a minha vida acabe antes de ter conseguido tudo o que eu queria.

Há uns anos, perdeu o controlo do carro. Esse susto enorme mudou alguma coisa em si?
Foi um confronto com o “isto pode acabar”. Eu até achava que fazia tudo o que me apetecia, mas se calhar não era tudo, tudo. Portanto, pensei em fazer ainda mais. Mas é difícil fazer tudo o que nos apetece. Por exemplo, é difícil abandonar o conforto. Aqui tenho trabalho, sou reconhecida e bem paga. Por que razão hei de largar tudo, trocar tudo por castings em Los Angeles, um dos meus maiores sonhos? Porquê sair daqui durante dois anos, correndo o risco de aparecer uma miúda mais nova e mais gira e melhor atriz?

Como reagiria? Como lida com a adversidade?
Tenho uma postura muito tranquila. Sou muito pragmática. Nunca exaspero e nunca me deixo ir abaixo. Nunca lidei mal coma rejeição.

Neste momento, é protagonista de uma telenovela. Em a Serra interpreta Fátima, uma pastora. O que tem ela de si?
A determinação. Quando mete uma coisa na cabeça tem de a fazer. E o feitio de não se ficar. Com ela não brincam. Nem lhe pisam os pés.

Quantas horas grava por dia?
Chego ao estúdio às oito porque as gravações começam às nove. Saio às 7.30 da noite.

Dez horas por dia. Uma brutalidade.
[Ri] É um meio onde se trabalha um pouco mais do que o normal. Uma telenovela leva oito/nove meses a gravar e, sendo protagonista ainda há mais trabalho. Mas temos as pausas, maiores do que para a maioria das pessoas. Sempre pude viajar e lavar bem a cabeça.

Como é contracenar com a protagonista?
A minha família e eu própria nunca fomos de muitos abraços e beijinhos. Talvez por isso odeio que me toquem, que venham compor-me o cabelo ou retocar a maquilhagem quando estou a tentar concentrar-me. Estamos a falar de 12 horas de gravações, 40 cenas por dia, o que nos obriga a passar de gargalhadas a lágrimas em poucos minutos, ou seja, a um enorme esforço de concentração. Tarefa muito difícil se tivermos alguém a compor-nos a gola da camisola.

Como se sente à sexta-feira, ao fim do dia?
Nem é preciso chegar a sexta. Diariamente, um elemento da produção leva-me a casa. São 20 minutos de puro silencio sem constrangimentos. Estamos ambos a usufruir desse silêncio.

E quando chega a casa?
Comprei casa agora, pela primeira vez, estou a viver sozinha. O entusiasmo é tanto que mesmo cansada cozinho e até faço bolos. Mas é uma fase.

Há quem considere que atores são os de teatro e cinema. Que a televisão é interpretação fast-food. Mesmo quando grandes atores já aderiram a séries.
É um estereótipo. Eu faço muito cinema e acho que a formação em teatro leva para o cinema vícios piores do que os que se ganham em televisão, tornando a interpretação muito artificial.

Nos castings, qual foi a crítica que mais a marcou?
Já levei muitos não, mas nunca um não drástico. Em Portugal, as pessoas são simpáticas. Recentemente, quando fui candidatar-me a uma escola em Inglaterra, fiz um dos castings mais difíceis. Os professores/diretores de casting eram muito antipáticos.

O meio artístico português não teve casos #metoo. Não existem?
Nunca passei por uma situação de assédio nem por algo que se parecesse, porém, há coisas muito subtis, que não se falam nem sem assumem, mas que enquanto mulheres, percebemos que estão lá. Uma delas é quererem despir-nos. E fazem-no de forma tão subtil e é tão bem jogado que ficamos sem ter quem acusar. Será que é essencial para a história? Será que é fundamental para a cena? Cabe-nos dizer “não quero, não dispo, não faço”, e todos temos cláusulas nos contratos que obrigam ao respeito pelos critérios religiosos e morais de cada ator.

Já teve de o fazer?
Já tive de o fazer. Numa das novelas, acabei por perceber que, em todas as cenas no meu quarto, o guião dizia “a preparar-se para sair, veste a t-shirt”. Porquê a t-shirt? Porque não os sapatos? Queriam que eu começasse sempre em soutien? Pois, mas isso não vai acontecer. Mas só o disse ia já no meu sexto ou sétimo projeto em televisão. Não é justo, miúdas acabadas de entrar, como eu era, sentirem medo de dizer não.

Qual foi a reação?
Quando é um não decidido, como foi o meu, não têm grande margem de manobra. Porque não é não e isso respeitam. O problema é quando não sabes dizer que não. E é natural não saberes. Se estiveres a começar, achas que esse não pode vedar trabalhos futuros.

E veda?
Acho que não se as coisas forem conversadas, mas há sempre esse medo. Aliás, muito recentemente, dei por mim a perguntar à minha agente “posso dizer que não?”. Ouvi a resposta evidente. Que só posso fazer o que me deixar confortável. É a minha imagem que anda a rodar e não quero fazer uma coisa de que me arrependa para a vida. Não há preço para isso.

Nas telenovelas, o protagonista ganha o mesmo que a protagonista?
Creio que sim. Em Portugal, se calhar, tu ganhas aquilo que vendes. O que a tua imagem vende. Muitas atrizes que respeito, com nome e mil e um trabalhos feitos, recebem metade do que eu recebo. É injusto, mas é o que é.

Como lida com o piropo?
Respondendo. Sempre fui de responder. E quando são desarmados, calam-se. Nunca me fizeram sofrer. Nem nunca me senti em perigo.

Acha bem que seja penalizado?
Sim, embora ache muito difícil colocar isso em lei. Prefiro a educação. Não eduques a tua filha, educa o teu filho. Vou mais por esse caminho.

Quando e por que razão tomou consciência da importância do feminismo?
Não sou uma feminista radical, odeio tudo o que são extremismos. Mas fico muito irritada com o machismo. Comecei a perceber que estas conversas são necessárias em discussões com amigos meus, da minha idade, que têm bitolas diferentes para avaliar comportamentos de mulheres e de homens em assuntos tão simples como namoros. E também há mulheres machistas. Sou a primeira a dizer que as mulheres são as piores. Julgadoras, com muita maldade, de outras mulheres. Basta ver as redes sociais.

Fale-me das críticas e do ódio que encontra por lá.
Sou das pessoas que menos recebem mensagens desagradáveis, mas vejo, leio e presencio coisas muito feias. É uma terra sem lei e isso é assustador.

“[despir-nos] Será que é essencial para a história? Cabe-nos dizer «não quero, não dispo, não faço»”, assegura a atriz de 22 anos
Se quisesse, tinha liberdade para fechar as redes?
Teria essa liberdade. Se tinha medo de acabar com elas agora? Se calhar tinha. Podia não afetar o mercado do cinema, mas se calhar não trabalharia tanto no meio da televisão. Temos de ter consciência do Mundo em que vivemos. Há redes e sei que são importantes para o meu trabalho. Além disso, também faço dinheiro com elas. E gosto de fazer esse dinheiro. Não sou hipócrita.

É um negócio?
É um negócio. Não venho com hipocrisias.

E até onde não está disposta a ir?
Não estou disposta a expor a minha relação. A minha carreira e o meu profissionalismo são das coisas que mais prezo. É algo que me preocupa porque sei que só vou estar feliz e completa se atingir os meus objetivos profissionais. Falem de mim, mas pelo meu trabalho. Sou uma pessoa muito mais discreta do que as pessoas pensam. Nas redes sociais há personagens.

Fale-me dos objetivos profissionais. Los Angeles?
Neste momento, o mais lógico é tentar o mercado espanhol. E não deixa de ser um risco porque aqui em Espanha são também sete cães a um osso. É uma coisa que, por mais que me assuste, tenho de a fazer. Porque não gosto de rotinas, de monotonias. Gosto do medo, da incerteza. De ter de correr atrás.

O que faz ao pragmatismo?
Pois. É que também sou muito ponderada. Por isso, pretendo, primeiro, consolidar a minha carreira em Portugal, fazer uma protagonista, ganhar bom nome, porque assim o regresso será mais fácil.

O papel de protagonista está conseguido. Que gostava de fazer antes de se aventurar?
Uma grande vilã. Ou uma personagem louca. Alguém sem escrúpulos.

Se tivesse de escolher um realizador?
No Mundo? Tarantino. Sou uma apaixonada. Seria uma rampa de relançamento como há poucas.

Começámos com o avô jornalista. Podemos fechar com o avô ganadeiro? Fale-me das corridas.
Vi há pouco tempo uma entrevista dele em que falava sobre toiros. “Isto é a minha casa, a minha vida e os toiros são a minha família.” E chorava. Não posso dizer que sou a favor das touradas porque não vou ver. Mas também não posso dizer que sou contra porque nasci numa família que sempre viveu disso. Percebo a ideologia que está por detrás – que é um espetáculo bárbaro, arcaico, uma tradição antiga e que pode ser acabada. Percebo. Agora, não podem atacar pessoas como o meu pai que vivem para aquilo e falam daquilo com muita paixão.