Julgamento Intercontinental
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
No final, o arguido Jorge protestou lá de onde falava, e estava tão longe do tribunal como de aceitar a acusação por desvio de dinheiro:
– Los testigos de acusación mintieron de cabo a rabo!
– Escusa de se estar a rir, que isto não tem piada nenhuma, gritou-lhe a juíza.
O som e a imagem não estavam maus. De Buenos Aires a Lisboa são 9593 quilómetros, mas com WhatsApp à mão o século XXI não se intimida. E a Justiça, aproveitando as particularidades da pandemia – possibilidades trazidas por grandes limitações -, abriu-se ao mundo novo dos julgamentos intercontinentais.
O arguido, que eu via minúsculo num ecrã de telemóvel sobre a secretária do tradutor oficial de espanhol-português – mas os dois eram parecidos, carecas e largos -, negava ter desviado 49 mil euros a uma associação de médicos portuguesa que trabalha com países pobres. Segundo a acusação, Jorge, que foi director financeiro, abusou da confiança e foi afastado, mas ainda fez altas transferências com os códigos informáticos antigos. Passaram-se meses neste julgamento à distância. O tradutor falava agora com um amigo do arguido, também na Argentina. Falava este da “empatia extrema com as crianças muito pobres” de Jorge enquanto voluntário em Buenos Aires. “Homem muito estimado.” O tradutor repetia-lhe em espanhol as perguntas que saíam em português das bocas ao vivo no tribunal, voavam para os seus ouvidos, lhe entravam no cérebro, onde eram processadas.
Na telechamada, o tradutor emitia agora os sons e a própria imagem para o outro lado do Mundo, saltando o Atlântico com segundos de atraso e depois, verdades ou mentiras, as respostas davam o salto inverso, de Buenos Aires até Lisboa. A resposta em espanhol da Argentina reentrava nos ouvidos do tradutor, descia-lhe pelo pescoço até ao braço, à mão, à ponta da caneta, era estenografada num caderninho com incrível rapidez, o tradutor não falhava uma palavra, uma expressão, uma frase longa, parecia magia esta extraordinária troca português-castelhano-português. Um profissional a mudar o “você” português, ou o plural respeitoso do “senhor”, para o “tu” também respeitoso de Espanha (e agora traduzo eu, com “tu”…):
– Uma vez que és amigo do arguido há tanto tempo, sabes alguma coisa sobre a sua situação económica? Sabes se tem bens, se tem património?
O amigo argentino do “imputado” Jorge explicou que, como fora sequestrado e torturado pelos militares da ditadura dos coronéis e generais que assassinou opositores entre 1976 e 1983, ao voltar ao seu país, Jorge teve direito a uma “pequeña pensión de 250 dólares”. E com um troço de tango triste na voz, acrescentou:
– Com isso sobrevive… sobrevivemos todos. É o que temos…
Mas só com isso? Bem, admitiu o amigo do acusado, também consta que faz algum trabalho de freelance, dá explicações de estatística a estudantes universitários e “com isso tem mais uma ajuda para sobreviver”. A advogada de defesa tentou a abordagem da honra ferida. Como é que explica que uma pessoa tão respeitada na Argentina seja acusada de fraude, de desvio de dinheiro e de…
– Na Argentina, sotora!, cortou a juíza.
– Os factos são em Portugal, sotora. A não ser que queira fazer perguntas sobre Portugal essa pergunta não interessa!
E assim se reformulou a pergunta até que o amigo de Jorge, “el imputado”, admitiu:
– Esos datos no los conozco.
Interrogou-se a ex-mulher de Jorge, falando desde as Astúrias (Espanha), que garantiu que era dela e só dela a empresa contratada pelo então marido para angariar fundos para os médicos. Que ele (então marido) a contratara (12 mil euros por mês) sem ser fundador nem se meter na gestão. Mas (os directos WhatsApp são traiçoeiros) de vez em quando saía-lhe a palavra “fundámos” e “nós fizemos” em vez de “fundei”, e tinha papéis à vista, e a juíza perguntou se estava a ler respostas prontas, acabara de responder a uma pergunta que ainda não tinha sido feita!
Atalhando: o Ministério Público pediu a condenação do homem em Buenos Aires; a defesa pediu a absolvição porque o dinheiro terá sido, decerto, desviado por outra pessoa.
– Então como é que a esposa lá foi parar à associação dos médicos?, perguntou a juíza.
– Fui yo, fui yo!, admitiu Jorge.
Assuntos de família que não fazem mal nem de perto, nem de longe de quase dez mil quilómetros.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)