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José Avillez: “Ser o melhor não é relevante. Ser um dos melhores chega-me”

Fotos: Paulo Alexandrino/Global Imagens

José Avillez tem 42 anos e é um dos chefs mais reconhecidos do país

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A pandemia foi um pesadelo do qual só agora está a sair. Porém, não esquece os benefícios do confinamento. Os dias passados em família foram alguns dos melhores da sua vida. Pôde finalmente cozinhar para os filhos. Favas, muitas favas. Aos 42 anos, senhor de estrelas Michelin e muito talento, José Avillez continua a querer aprender. E a sonhar com sabores.

Imaginem uma pescada de tamanho considerável, arrepiada à moda tradicional, cozinhada a baixa temperatura. Nem um grau a mais, nem um grau a menos. O aroma de um caldo que solta a gelatina que há nas espinhas e na cabeça do peixe, textura tão cremosa que se diria que leva um laticínio. Não. É “apenas” o sabor puro e líquido do pescado. O perfume da infusão de folhas de figueira, que completa o longo processo, leva-nos ao extremo sul de Portugal. Acompanhada de coentrada, é servida com a sua própria língua – a kokotcha. Estamos no Belcanto, em Lisboa. A azáfama na cozinha leva já uma hora. “O prato nem sequer é bonito “, diz, enquanto se prepara para a entrevista. José Avillez descreve a sua arte com minúcia e carinho inaugurais. Convoca-nos: não são ainda nove da manhã e já se jantava.

Qual é a primeira tarefa da manhã?
Levanto-me por volta das 7.15 horas, acordo os meus filhos, 10 e 11 anos, e estou com eles antes de saírem para a escola. Há dias em que vou ao ginásio ou, então, correr.

O que come ao pequeno-almoço?
Hoje tomei apenas um sumo verde de brócolos, espinafres, cenoura e maçã.

Qual é o melhor pão para fazer torradas?
O de trigo barbela ou mesmo de trigo normal, desde que com fermentação natural, são os mais indicados. A fermentação natural é importante.

Durante o sono, sonha com comida?
Tenho sonhos com pratos, com ideias novas. Sonhos em que alguma coisa correu mal na cozinha ou em que a ideia que tive não vai funcionar.

A pandemia foi um pesadelo?
Foi uma realidade muito dura. De um dia para o outro, tivemos de fechar tudo e deitar contas à vida, sem saber como iríamos sobreviver. Aproveitaram-se algumas lições, vimos que podemos melhorar em algumas áreas, mas foi muito, muito duro. Porque fechámos restaurantes e desfalcámos equipas.

O que lhe custou mais?
O pior do pesadelo foi não sabermos o que ia acontecer, a incapacidade de prever o fim. A criatividade e a união das equipas ressentiram-se. Não conseguimos manter todos os postos de trabalho. Não sou muito agarrado ao dinheiro, digo sempre haja saúde. Mas perdemos muito, muito, dinheiro.

Quanto?
Muito. Na ordem de largas centenas de milhares de euros, na ordem de milhões de euros.

Perde-se o sono.
Tira o sono e preocupa muito. Há dívidas à banca, famílias envolvidas, casas por pagar. Gerir uma empresa que mantém muitos dos custos mas não fatura não é fácil. Sobretudo se estamos a falar de grupos empresariais da área da restauração, em que o apoio das rendas abrangia uma percentagem muito pequena. Mas devo dizer que os apoios foram absolutamente essenciais. Sem eles não teríamos tido a mínima hipótese.

Como combate a adversidade?
Sou capaz de manter alguma calma, mas, claro, emocionalmente fico mais instável. Quando temos garantido que as coisas correm bem, que conseguimos pagar as contas, ganhamos alguma calma. Quando não a temos, a ansiedade aumenta.

Até à depressão?
Não me meti na cama, trabalhei todos os dias, fiz questão de vir diariamente ao escritório. Tirando as duas semanas, depois de apanhar covid, não confinei. Mas estar mais tempo em casa, sobretudo jantar em casa, ter tempo para cozinhar, com regularidade, para a minha família, coisa que nunca tinha feito, foi muito bom. Nessa fase, tive alguns dos melhores dias da minha vida. Poder passar esse tempo com os meus filhos, em casa, sossegado quanto possível, foi algo de muito bom.

O que mais cozinhou?
Estivemos isolados, muito à mercê de uma pequena horta. Posso dizer que a certa altura os meus filhos já não podiam ver favas.

Dizem-me que a retoma está a correr muito bem.
No Belcanto estamos a servir entre 40 e 50 almoços e para dezembro já há poucos. No Bairro e nos Cantinhos o cenário é parecido. Posso dizer que estamos iguais a novembro de 2019. Mas nota-se que o mercado está mais incerto. Quer na perspetiva da mão de obra, quer nas entregas.

Enquanto empresário muito atarefado, quantas vezes por semana cozinha? Há críticos que o acusam de já nada ser feito por si.
Há 30 pessoas na cozinha do Belcanto e cada prato passa por 10 ou 15 mãos. O que é normal numa cozinha com muitas preparações e em pratos com 10 ou 20 elementos. Se me perguntar quantos pratos passam exclusivamente por mim, digo que nenhum. Se a pergunta for quantos pratos passaram um bocado por mim, digo que são muitos.

Onde está em cada um deles a assinatura do chef?
O chef é tão bom quanto a sua equipa. Por isso, hoje em dia, mais do que tudo, há uma equipa muito boa, e é essa equipa que vai levando as cozinhas. A meu cargo e quase a 100% está a criatividade de todos os restaurantes. A reprodução diária de todos os pratos é feita pela equipa. Apesar de passar três a quatro dias por semana na cozinha do Belcanto, não estou diariamente dentro da cozinha a picar cebola. Há coisas mais importantes para eu fazer.

Como sabe quando um prato está pronto a ser servido?
Quando estou contente com ele. Não tenho regra.

Há hoje muitos chefs e poucos cozinheiros?
Cozinheiro é a profissão, chef é a posição. O cargo ocupado. Um chef tem de ser cozinheiro, um cozinheiro pode não ser chef.

A função mais nobre da cozinha não será proporcionar aos outros a simplicidade? O caminho da simplicidade é o da perfeição?
Não o é sempre, mas é muito difícil fazer simples bem feito. Há uma excelência na simplicidade, ainda que os estilos possam ser muito diferentes e mudem de chef para chef.

No seu caso, o que procura?
A essência. E a essência pode não ser atingível apenas através da simplicidade. Podemos perseguir a essência a utilizar 20 ou 30 ingredientes. A simplicidade pode vir do facto de um produto valer por si só. Mas nem sempre se trata da simplicidade pela simplicidade.

“Espuma”, “emulsão”, “cozedura a baixa temperatura”, “em cama” disto e daquilo. Não está na hora de regressar aos nomes “normais”?
Uma vinagreta é uma emulsão, uma maionese é uma emulsão, por vezes agarramo-nos a conceitos, mas é como tudo: os conceitos vão mudando. Hoje fala-se muito da fermentação na cozinha quando, na verdade, vivemos há muito tempo com produtos fermentados. Muitos desses termos estavam já inseridos na gastronomia com outros nomes. Tem havido uma limpeza desses termos e está a fazer-se um caminho para o essencial. Mais do que para a simplicidade.

Maria de Lourdes Modesto, de quem é uma espécie de neto, costuma dizer que difícil, difícil, é reconstituir os sabores da comida da mãe, da tia ou da avó. Concorda?
Tudo o que a Maria de Lourdes diz faz sentido e desde sempre. É muito difícil chegar a esses sabores, principalmente porque a nossa memória não é estanque. A memória de um prato da nossa mãe ou avó sofreu muitas modificações, tantas que se calhar o prato não era como o lembramos. Por exemplo, eu posso vir a fazer um arroz de pato melhor do que o da minha avó. Mas nunca será a mesma coisa porque eu gostava muito dela e dos momentos que passava em família, ao almoço de domingo. São memórias de uma altura muito feliz da minha vida. Portanto, é muito difícil fazer-se uma cozinha tradicional de mães e avós que leve as pessoas a achar que é melhor do que a que comiam quando eram mais novos. Se se conseguir que essas pessoas viagem para a infância ou para a adolescência já é muito bom.

Maria de Lourdes Modesto é a mãe da gastronomia portuguesa, diz-se. Aceita ser a referência masculina?
Não sei. Talvez seja ainda muito novo. Quer dizer, já não sou assim tão novo. Jovem chef já não pega (ri). Bom, Maria de Lourdes Modesto fez um trabalho genial de recolha da informação de várias mães e avós da cozinha portuguesa e por isso representa essas mães e essas avós. Eu não faço esse trabalho de casa. Se quiser, represento o que é a cozinha portuguesa contemporânea. Sem falsas modéstias, diria que sou uma referência incontornável nesta área. Mas existem outras.

Quando pensa em cozinha portuguesa, que aromas e sabores tem na memória? Há um sabor português?
Nasci ao pé do mar e de um pinhal. E esta ligação do cheiro dos pinheiros e da resina com o do mar, das algas e do iodo, são para mim muito portugueses. São sabores que passei muitas vezes para pratos. Muitos mariscos com raspa de pinha verde. Ou cozinhados com o fumo da caruma. Quando falamos de identidade penso também em coentros, que é muito Portugal do sul. Também em alho e em azeite, se bem que esses são sabores também de Espanha ou de Itália.

O que servia a uma pessoa que estivesse a jantar em Portugal pela primeira vez, em representação da comida portuguesa?
Bacalhau à Brás, provavelmente. É curioso: não temos na nossa costa o nosso produto mais conhecido, o que é revelador, também, do nosso espírito comerciante, navegador, descobridor. É um prato muito confortável e releva uma cozinha familiar. Tem um sabor constante, com uns picos nas azeitonas e na salsa acabada de picar, que dão um tempero extra a um prato que poderia tornar-se um bocadinho monótono.

É um prato em que não parece haver muito que inventar. No entanto, só se devem quebrar as regras se as conhecermos muito bem?
É como na música. Para criar há que saber as bases. Mas, confesso: aí não sou tão exigente quanto Maria de Lourdes Modesto. A comida é uma das coisas mais importantes do mundo, mais não seja porque temos de comer para viver. Faz parte da cultura e da história de um povo. Mas a criatividade diz-nos que tudo é possível. Pode gostar-se mais ou menos, mas há restaurantes que nos apresentam ideias e soluções que quebram muitas barreiras. Há quem não tenha conhecimento cabal do básico e seja bom cozinheiro. Desde que se contextualize e se tenha honestidade, a tradição fica preservada.

A sua cozinha é resultado de que influências?
Da minha vida e das pessoas com quem me cruzei. A minha mãe não cozinhava. O meu pai sim, mas morreu quando eu tinha sete anos. A senhora que trabalhou em minha casa, que era quase minha avó, a Laura, cozinhava muito bem e eu estava muitas vezes com ela na cozinha, a abrir as tampas dos tachos. Em casa da minha avó comia-se muito bem, também. Cresci numa quinta com animais, com horta e perto do mar. E onde cuidar era importante. Cozinhar para alguém é cuidar de alguém.

O que aprende com os grandes chefs?
Para aprender com outras pessoas, com o que são ou com o que fazem, temos de estar muito atentos. Aprendi muito e continuo a aprender todos os dias. Aprendo com um estagiário de 16, 17 ou 18 anos, que pouco sabendo de cozinha me explica um prato que a avó fazia, ou com estagiários internacionais que vamos tendo – polacos, israelitas, franceses, pessoas com um bocadinho de todos os lados. Depois, vamos criando a nossa cozinha, fazendo o que gostamos de fazer, pensando sempre no cliente que se senta à nossa mesa. Não cozinho para mim nem para competir com os meus pares. Cozinho para os meus clientes.

Que aromas e sabores distinguem a sua cozinha da de outros?
Vivo muito para o sabor. Um dos chefs que mais admiro é Andoni Luis Aduriz (chef espanhol e proprietário do Mugaritz, um restaurante basco). Para ele, a textura é muito mais importante. Eu sou do sabor. Fecho os olhos quando provo um prato pela primeira vez. Procuro o sabor a fundo.

Como gostaria de um dia ser lembrado?
Não nego que muitas das coisas que faço faço-as para pôr o meu nome na história. Mas depois de ser pai, depois de ver os meus filhos crescer, mais do que nunca faço um paralelo com as minhas equipas, onde há muitos jovens, e percebo que cada vez mais faço as coisas para os outros. Não quer dizer que indiretamente não sejam para mim, mas preocupo-me em fazer alguma coisa para que as vidas das pessoas que me apoiam há tanto tempo possam ser melhores. Posso até ser lembrado daqui a 100 anos, e se calhar até gostava, mas na lembrança de médio prazo gostava que pensassem em mim como alguém que fez a diferença na vida das pessoas.

Como é o seu processo de inspiração?
Olho para o prato vazio, que é uma tela em branco, e tento imaginar o que poderei servir nele. Ou para uma maçã e penso no que posso fazer com ela. Ou provo alguma coisa que me enche as medidas e penso em inserir esse sabor num prato. Ou provo um prato tradicional ou uma criação de um chef e tento recriar a partir daí. A ideia é inspirar-me e não copiar.

Na cozinha, ainda não está tudo inventado?
Não está tudo inventado, mas se calhar há uma invenção por década.

O chef italiano Massimo Bottura diz: “Temos que falar com os ingredientes, temos que ouvir o que nos dizem”. Qual é o ingrediente que mais conversa consigo?
O mar, como fonte de ingredientes, conversa muito comigo. Quando como custa-me muito comer coisas secas. E por isso dou muita importância ao ponto das cozeduras, procuro evitar a perda de todos os sucos. Falo com ingredientes nesse sentido. Da sua frescura ou da sua maturação. Gosto de perceber o ciclo de vida de um produto. Por vezes, desenho-a num papel.

Qual é o seu prato de que mais gosta e que mais sucesso faz?
É um prato que nasceu há anos, ainda não se falava muito de temperaturas, com um robalo cozinhado a 54 graus a que os clientes chamavam mergulho no mar. Aguentou dez anos nas cartas do restaurante.

Quem escolhe os nomes dos pratos?
Eu, com a equipa. A certa altura comecei a achar que se as músicas podem ter nomes que não são a sua descrição, porque não os pratos? Mais tarde, passei a perceber que podia ser um bocadinho ridículo e pretensioso. Calma lá. Nós somos só transformadores e potenciadores do que a terra e o mar nos dá. Os nomes passaram então a referir mais a essência do que a conceptualidade.

Já lhe aconteceu uma experiência ficar intragável?
Ficar horrível é difícil acontecer. Só mediante um produto que conheça muito mal. Dou um exemplo: durante algum tempo, andou na minha cabeça um iogurte de ouriço-do-mar. Experimentei, mas não fiquei nada contente com o resultado. Diria que 90% do prato fica mais ou menos fechado mentalmente e que 10% é afinado no fogão e nas provas. Porque a maior arma que um cozinheiro pode ter é a memória do paladar. Se não nos lembrássemos nem tivéssemos registado esse paladar, sempre que fôssemos experimentar um prato tínhamos de provar tudo de início. E isso seria impossível.

Tem saudades de fazer televisão?
Sinceramente, não. O último programa que fiz foi no Brasil com uma audiência regular de 30 milhões de telespectadores. Gostei muito e tive pena quando foi interrompido pela covid. Comunicar é bom por se ter feedback, mas não me faz falta. Tenho o tempo bem ocupado.

Anthony Bourdain [chef americano, falecido em em 2018] dizia que o verdadeiro deus da culinária profissional não é o brilho nem a criatividade. É consistência. Fazer a mesma coisa, de novo e de novo e de novo. Muitos dos reality shows de culinária levam os participantes ao engano?
Sim, concordo. Isto é um trabalho de repetição. A criatividade aparece uma vez para um milhão de vezes que se repete. Os programas são apenas isso – programas de televisão.

Vendem uma profissão que não existe?
Há pessoas que aparecem aqui para um estágio de um dia e que nunca mais querem repetir. Porque não conseguem lidar com o ritmo. Há programas de televisão em que se o tema fosse carpintaria ficava tudo igual. Mal se percebem as receitas.

Como é o processo de recrutamento para trabalhar consigo?
Se é para cargos de maior responsabilidade, sou eu que entrevisto. Se é para cargos de menor responsabilidade, não. O recrutamento passa sempre por uns dias de experiência.

Qual é a pergunta que considera essencial?
O que os traz aqui.

Aponte um erro técnico imperdoável.
Imperdoável é falta de honestidade profissional, intelectual e para com a equipa. É dizer que se fez sem ter feito. Se assumidos, todos os erros técnicos são perdoáveis. Se escondidos, todos se tornam imperdoáveis. Em cozinha, o maior erro técnico é a manipulação de um produto que não está em condições de ser servido. Tudo o resto, desde que assumido, é remediável e por isso não é imperdoável.

Num prato, o que é que pode deitar tudo a perder?
Estava no Tavares [restaurante Tavares Rico] em 2008. Por volta das 21.30 horas, e com muito atraso, entram dois clientes. Pedem o menu de degustação, ao qual excluem dois ou três pratos, o que obriga a mais trabalho. Quando estou a empratar o salmonete, já perto das onze e tal da noite, verifico que tinha passado dez, quinze segundos do ponto. Estou muito cansado. Penso que para 99,9% das pessoas seria indiferente. Mas não estou contente e aviso o chefe de sala que vou recomeçar. Venho a saber no dia seguinte, alertado por um jornalista português, que um desses dois clientes era um crítico espanhol. E que na crítica online afirmava que tinha comido uns salmonetes no seu ponto perfeito de cozedura. O melhor da cozinha portuguesa de há muitos anos. Esta é uma daquelas lições que nos dizem que devemos contrariar o cansaço, a preguiça, que devemos querer fazer sempre melhor, mesmo quando os clientes são chatos, como era o caso. É isto que tento transmitir a quem trabalha comigo. Caminhamos para um Mundo em que se facilita muito. Em que todos temos imensos direitos e poucas ou nenhumas obrigações. E isso não é bom.

O sal é talvez o elemento mais modificador da cozinha?
O sal é elemento absolutamente transformador que pode fazer com que se estrague completamente um prato.

Há algum truque que emende a mão?
Com tempo, num caldo por exemplo, ajuda colocar uma batata que tenha uns golpes de faca para, ficando mais porosa, absorver algum sal. Mas o melhor é fazer de novo.

Qual é a ferramenta-chave?
A faca é muito importante, mas um bom tacho ou uma bela frigideira, bons condutores de calor que caramelizem bem um peixe ou uma carne, são muito importantes. Competem em importância com a faca.

Tem alguma superstição, um ritual?
A minha mulher é bastante supersticiosa. Eu tento fugir. Porque é uma prisão. O melhor sentimento da vida é a liberdade. Com muita responsabilidade nunca estou completamente livre – se por vezes me sentir dez minutos livre por semana já é ótimo. Por isso não me vou prender a superstições. O ritual diário é mesmo o rigor, a limpeza, o controlo da qualidade dos produtos que nos chegam. O ritual do provar e dar a provar.

Prova muitas vezes?
Provar é o meu grande trabalho. O movimento mais importante que há na cozinha é a prova, ou seja, o movimento de levar a colher à boca.

Pelo cheiro consegue-se avaliar o tempero?
Sim, mas é preciso muita experiência e, às vezes, também com a mão que se tem. Algumas das pessoas que trabalham comigo, de tanto repetirem, põem uma mão cheia de sal de uma vez. Como faço menos vezes os pratos, ponho sal aos poucos.

Criar um prato é mais importante do que o dar a comer? A criação pela criação faz sentido na culinária?
Só há duas maneiras de uma criação de um prato existir sem ser servido: para registar num livro que trace um percurso de cozinha ou apresente um conceito. Ou simplesmente para mostrar nas redes sociais, mundo superficial. De qualquer maneira, um prato só vive se for comido. Se é só para ficar registado não serve.

Com o aumento dos combustíveis vai passar a ser ainda mais caro jantar no Belcanto?
Vivemos um período dramático de fornecimento com a subida dos combustíveis. De uma semana para a outra os custos da matéria-prima aumentaram 25%. No último mês, o lombo de novilho sofreu um aumento de 60%. O carabineiro um aumento de 100%. O carabineiro está a chegar a 90 euros. Nós temos de assumir uma parte, mas vamos ter de corrigir preços. Ainda estamos a tentar perceber se alguns aumentos são transitórios. Janeiro e fevereiro vão ser decisivos.

Como descreve um cliente insuportável?
Os clientes verdadeiramente chatos são os desagradáveis e mal-educados, que se acham superiores e numa posição de poder só porque vão pagar. Ontem, por exemplo, uma cliente a quem o nosso anfitrião – é assim que trato os empregados de mesa – transmitiu a preocupação do chef porque, não comendo glúten nem lactose, escolhera um prato que obrigava a que fossem retirados três ingredientes, deu esta resposta: “Se o McDonald’s consegue, com certeza que o chef de um restaurante de duas estrelas Michelin vai conseguir fazer alguma coisa de jeito”. Dormi menos por isso? Não. É-me indiferente. Nada disto é pessoal.

E terá alguns com estranhas manias.
Tenho uma cliente, de quem aliás gosto muito, que pede gelo para pôr no vinho. Uma vez, a colocar o gelo, a senhora partiu três vezes seguidas o copo. Ou seja, estragou três copos de vinho e o vinho de três copos. À quarta tentativa, fui à mesa. “Use gelo à vontade, mas permita que sejamos nós a pô-lo”. (ri)

Qual foi o maior elogio que já ouviu?
Pessoas a chorarem de felicidade pelo que estavam a comer. A serem transportadas para a mesa dos avós. A tal tarefa difícil de que fala Maria de Lourdes [Modesto].

Que sabores não se devem misturar?
Tudo tem a ver com a quantidade. Se cobrir um robalo de mar, muito fresco, com cem gramas de bacon grelhado dificilmente vou trazer alguma coisa de bom ao robalo. Mas, se lhe juntar cinco gramas de bacon muito picadinho, o sal com o toque da carne vai dar-lhe alguma graça. Melhor ainda se for um cherne, que é um peixe mais terroso. Portanto, não é tanto o que não posso combinar, mas as proporções em que o faço.

Fale-me das primeiras memórias que tem da cozinha. Tinha que idade quando começou a participar?
Com 10, 11 anos fazia bolos com a minha irmã, que vendíamos à família e aos vizinhos por 420 escudos cada. Com 10 anos acordava cedo para fazer salsichas com couve-lombarda que comia a ver os desenhos animados.

De quem herdou esse gosto?
Não sei mesmo. Talvez por gostar tanto de comer. A minha irmã, que não cozinha nada mal e é muito de sabores, nunca teve a paixão.

Que dizia a família?
Achavam muita graça até eu dizer que queria ser cozinheiro. A minha mãe considerou que o filho estava maluco. Pediu-me então que, antes de tentar esse caminho, acabasse o curso de gestão empresarial. Hoje em dia, orgulha-se.

Recorda algum episódio marcante na cozinha?
A vez em que quis fazer um jantar especial para a minha mãe. Tinha 12, 13 anos, e pensei fazer umas almôndegas mais leves. Tão leves que se desfizeram mal comecei a cozinhá-las. Fiquei muito, muito, triste. Queria tanto fazer uma refeição boa para a minha mãe, estávamos só os dois, e foi logo correr mal. Nunca mais me esqueci.

Houve um momento em que percebeu que apenas fazer boa comida não era suficiente? Que queria ser o melhor?
Pode parecer mentira, mas nunca disse que queria ser o melhor. Sempre disse que queria aprender com os melhores para um dia ser um deles. Ser um dos melhores chega-me. Esta guerra de ser o melhor, com a subjetividade e o desgaste que envolve, não é relevante na minha vida. Relevante é o meu percurso. Aprender a cozinhar, a integrar uma equipa, a liderar uma equipa, a gerir. Li muito e estudei muito. Nunca tive medo de me rodear de pessoas melhores ou tão boas como eu.

As escolas portuguesas de gastronomia estão melhores?
Há boas e menos boas. Há professores muito bons e outros menos bons. Infelizmente, há alguma ideia de facilitismo. Achar que as pessoas podem vir a ser muito boas estudando ou trabalhando pouco cria a ideia de que isto é fácil. De acordo com alguns relatos, há professores e diretores de escolas que tiram os miúdos dos estágios internacionais nos melhores restaurantes do mundo, alegando que estão a trabalhar horas a mais. Isto dá cabo das carreiras deles. Quando, há três anos, organizei o evento Guia Michelin em Lisboa, pedi a alunos para ajudarem. Iriam estar com os estrelas de Espanha e Portugal, coisa única. Quando dissemos que tinham de trabalhar dez horas nesse dia, responderam que então teria de haver duas equipas. É ótimo que haja leis e regras e controle, mas nunca teria conseguido chegar onde cheguei se não tivesse feito sacrifícios. No caso do evento, não era trabalhar. Era ir a uma festa, a um aniversário, com uma mesa cheia de guloseimas. Se se gosta disto, claro.

Se os seus filhos quisessem ser chefs, onde estudariam?
Gosto da Grégoire-Ferrandi (França), da CIA – The Culinary Institute of America (EUA) e de La Escuela de Hostelería Hofmann (Barcelona). Mas a escola da vida, os estágios do trabalho, a leitura, é muito, muito importante.

Em Portugal, a crítica gastronómica tem qualidade?
Não acompanho muito. Tenho muitas saudades do David Lopes Ramos. De uma crítica inteligente e assertiva. E do José Quitério, que é também uma grande referência. Duro, mas honesto. Hoje usam nomes falsos. É mais à americana.

Críticas que o irritaram.
Há um tempo, um jornalista escreveu que estraguei o Belcanto e o Tavares (Tavares Rico). Porém, esse Velho do Restelo nunca cá veio. Quando cheguei, o Belcanto quase não tinha clientes. E os que vinham estavam a ser enganados por parte de alguns funcionários que enchiam garrafas de vinho de marca com vinhos que não o eram. Quanto ao Tavares, quando cheguei, estava praticamente fechado. Enfim, há muita gente que escreve sem saber o que está a fazer. Querem ganhar seguidores à custa dos outros. Sabem que se disserem mal de quem tem sucesso têm mais destaque. Olhe o caso de Ronaldo, alguém que fez uma coisa única pela qual lhe devemos estar eternamente gratos: ser mais conhecido do que o país. Isto acontece uma vez em séculos.

Como define sucesso?
O sucesso é sermos felizes, mesmo sabendo que não vamos ser sempre felizes.

Considera-se um artista, técnico, criativo?
Sou realizador, numa perspetiva do cinematográfico. Pode parecer um pouco pretensioso, mas é como me sinto nesta fase. Neste momento, sou mais cozinheiro e realizador do que chef.

Como vai cozinhar o bacalhau nesta Consoada?
Gosto de cozer em azeite.

Qual é a sua cozinha de conforto favorita?
Gosto muito de sopa de feijão. Quando viajo, do que sinto mais falta é de uma sopa. Uma sopa de legumes básica é tão boa. Alimenta-me e descansa.

Quando está deprimido, o que come?
Como sobretudo muito menos.

Que comida pode aliviar uma desilusão de amor?
O nosso carabineiro com molho de caril. Um prato que pela acidez e pelo picante dá boa energia.

E o que cozinharia para um apaixonado?
Um robalo com umas escamas de creme de abacate e dashi de amêijoas e lingueirão.

O que distingue o grande cozinheiro do bom cozinheiro?
A equipa.

Os portugueses hoje comem melhor ou pior?
Comem mais saudável, mais variado. Estão mais preocupados com a qualidade dos ingredientes.

Os produtos biológicos valem o que custam?
Se são mesmo biológicos, valem. O problema, às vezes, é o tempo que têm de frigorífico, que pode tirar-lhes valor.

Há um restaurante que lhe encha as medidas?
Há vários. Para falar de um perto, há o Zé da Mouraria. Se pudesse, ia lá amanhã, sexta-feira, almoçar o bacalhau, um dos melhores que há em Portugal.

Contudo não é “Michelin”. Qual é a importância que atribui às estrelas?
Já tiveram mais importância. Há um lado de ego e de realização, mas se não tivermos o restaurante com gente e se as pessoas não saírem satisfeitas essas listas de pouco ou nada servem. Se um dia ganharmos a terceira estrela, será importante, não nego, mas valorizo muito mais o bom ambiente em que trabalhamos.

Mas também trabalham para as estrelas, ou não?
Perder uma estrela seria uma chatice, uma preocupação, mas também sabemos que o nosso trabalho não é para perder. Será mais para ganhar uma terceira. Há essa ambição, mas não passamos o ano a pensar nisso.

Os critérios que presidem à atribuição das estrelas são justos? Vítor Sobral diz que não são.
Como tudo o que é feito por pessoas pode ser mais ou menos justo. Vítor Sobral terá a sua razão. Percebo-o no que ele diz. Os inspetores são quase todos espanhóis, não conhecem a essência da cozinha portuguesa. Existe muita subjetividade. Uma Michelin na Ásia, não significa o mesmo que nos Estados Unidos ou na Europa.

Em sua casa, a cozinha é a divisão mais importante?
Estou pouco em casa. Por vezes, ao domingo, com família e amigos, sim. No dia a dia, não.

Quando está sozinho, é capaz de comer num tabuleiro, a ver televisão?
Sim. Às vezes, uma sopa de feijão ou de grão com espinafres. Um ovo estrelado.

Diga-me quatro ou cinco ingredientes essenciais para se ter sempre no frigorífico.
Ver muitas cores e muito verde é o melhor. Ter mais peixe do que carne. Aconselho sobretudo um sistema de rotação muito grande. Alguns legumes e frutas nem devem lá entrar.

Quais?
Tomate é proibido. É melhor fazer e congelar a sopa do que deixar os legumes dias e dias no frigorífico. Frutas tropicais e mais doces perdem muito sabor. E se cenouras aguentarem muito tempo é mau sinal – têm produtos menos saudáveis.

Como consumidor, prefere doces ou salgados?
Sou muito mais de salgados. Por vezes, nos restaurantes, peço para sobremesa uma entrada.

Qual seria a sua refeição de condenado?
Por um lado, gostaria de comer algo novo, Porém, se não gostasse, era mau. Acho que comia um grande pão com uma grande manteiga.

Algo que seria incapaz de comer. E porquê?
Acho que não era capaz de comer cão.

Pelo que vale a pena pagar?
Viagens. Raramente compro para mim. A única extravagância foram seis pares de ténis bastante caros.

O que deseja no final do dia?
O meu fim de dia é às onze e meia, meia-noite. Se conseguir estar a conversar um bocadinho com a minha mulher e ver, depois, um episódio de Succession (série da HBO), já é bom.

Falando em sucessão e uma vez que os filhos não herdaram o talento culinário – quem vai ser o seu herdeiro?
Muita gente que tem passado na minha equipa. E devo dizer que não tenho pena nenhuma que os meus filhos não queiram ser cozinheiros.