Rui Cardoso Martins

Isso é o quê?

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Preguiçoso ou solipsista? Escolho a primeira hipótese para descrever o algemado Mário no tribunal, até porque dizer que o homem sofre, ou pratica, o solipsismo* e não a preguiça, só o levaria a perguntar outra vez: mas isso é o quê?…

Mário vive no presente e o seu presente não adivinha grande futuro. Quando este chegar, é presente. Com isto já estamos, como ele, aprisionados numa realidade que não avança. Os guardas prisionais desalgemaram-no e Mário, friccionando os pulsos libertos das argolas, ficou com cara de “que faço eu aqui”.

– Como sabe estamos aqui com vista a revogar, ou não, a suspensão da pena de prisão a que foi condenado.

Mário foi condenado a 13 meses por crime de ofensa à integridade física qualificada. Trocando por miúdos, deu uma sova num motorista de autocarro dos subúrbios de Lisboa. A pena foi suspensa pelos mesmos 13 meses, com regime de prova.

– E durante este período, o arguido praticou aqui um outro crime. E além disso também não cumpriu o regime de prova.

– Pois, eu estava a cumprir esse regime, só que entretanto fui preso e não pude pagar…

– Mas pagar o quê?…

– Os 50 euros que eu estava a pagar todos os meses.

– Mas isso não era o que estava no plano do regime prova. E o arguido não se preocupou muito. Olhe, diz aqui até…

– Desculpe lá, doutora, não percebi essa parte.

– Vou só ler-lhe a parte final: “No que concerne à atitude demonstrada no acompanhamento, verificou-se a sua resistência à procura activa de ocupação laboral, ou até de qualquer tipo de actividade de colaboração ocupacional”. E até diz que é consistente com a sua conduta actual no estabelecimento prisional.

E Mário via o longe e a distância, talvez uma nuvem vinda detrás de uma colina se aproximasse da sua cabeça.

– O que significa que o arguido não quis saber de nada disto e continuou a sua vida como bem quis, não é?…

– Eu até nem estou a perceber do que é que estou aqui a responder! Doutora juiz, eu não me inteirei. Fui condenado por agressão a condutor das DST e estava a pagar 50 euros.

Começou a conversa de surdos, ou melhor, a conversa de preguiça em escutar. Mário disse que tinha encontrado trabalhos a “limpar uns quintais dos vizinhos”. Da sua rua. Mas quais vizinhos? Já não sabia responder, eram biscates ao lado de casa, mas nem sabia em que número, nem o nome de quem o contratava. Alguém lhe perguntava se queria limpar um quintal e ele dizia que sim. Acrescentou que ia todos os dias apresentar-se ao centro de emprego, mas depois já era “dia sim, dia não”. Finalmente, quando a juíza ligou por vídeo ao técnico que seguia a suposta reinserção de Mário, este repetiu que nunca, mas nunca, ele mostrou qualquer interesse em procurar um trabalho. Na prisão, idem. A juíza olhou-o melhor:

– Portanto, ir lá picar o ponto, tudo bem. Agora procurar trabalho, que é bom, é que não quer! Tinha de procurar de maneira activa, não é ir passear ao centro de emprego.

Eu olhava as costas finas de Mário e, como às vezes me sinto escravo das galés – “Trabalho mais que remador de Ben-Hur”, como disse Nelson Rodrigues sobre o seu regime obrigatório de escritos e crónicas e o diabo a sete -, fiquei com inveja de Mário, do seu efectivo e diário direito à preguiça, um homem que consegue não trabalhar na prisão ou fora dela.

*A Wikipédia em língua portuguesa (Portugal e, principalmente, Brasil), ganhou fama de facilitismo, muito por causa de más traduções automáticas de bons originais em inglês (e pelo seu uso por cábulas e plagiadores…). É com gosto que uso a abertura confiável da Wikipédia (parabéns pelos 20 anos) sobre esta escola antiga e egoísta: [Solipsismo (do latim “solu-, «só» +ipse, «mesmo» +-ismo”) é a concepção filosófica de que, além de nós, só existem as nossas experiências. O solipsismo é a consequência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles. O “solipsismo do momento presente” estende este ceticismo aos nossos próprios estados passados, de tal modo que tudo o que resta é o eu presente].

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)