Isolados, Confinados e Extremos. Nós, no limite

(Foto: Oewf/Florian Voggeneder)

Quando o ambiente muda, o nosso comportamento muda com ele. E trabalhar em cenários que estão para lá das fronteiras da normalidade - como a Antártida ou o espaço - causa enormes pressões adicionais. O estudo de equipas em ambientes Isolados, Confinados e Extremos (ICE) ajuda a perceber como escolher e preparar pessoas à altura desses desafios.

A cratera Ramon, no deserto de Neguev, em Israel, é uma mistura de superfícies rochosas e de areia muito semelhante aos desfiladeiros de Valles Marineris, no planeta Marte. Foi lá que, entre 4 e 31 de outubro, aconteceu a missão AMADEE-20, uma simulação muito próxima do real de uma missão humana a Marte, organizada pelo Fórum Espacial Austríaco (OewF). A equipa de seis astronautas análogos – os que simulam na Terra as missões espaciais – teve aos comandos o português João Lousada. O engenheiro aeroespacial de 32 anos é diretor de voo do módulo Columbus, da Estação Espacial Internacional, e, além disso, é astronauta análogo em missões como esta, que pretendem ser ferramentas de aprendizagem e teste para futuras missões ao planeta vermelho.

“O ambiente espacial não perdoa: qualquer falha, quer nos sistemas, quer na tripulação, pode ter consequências fatais. O objetivo destas missões é detetar problemas, não só nos processos e equipamentos, mas também nas pessoas e equipas, com o contributo da psicologia”, resume o João Lousada. “Isso é essencial para planear métodos para manter a motivação do grupo durante a missão e para saber que tipo de pessoas escolher para ir a Marte. Se os fatores psicológicos não são pensados, isso pode ter consequências críticas.” Essa seleção, de resto, aplica-se também a estas missões em terra. Para conquistar a posição de astronauta análogo, João Lousada teve de realizar centenas de testes individuais relacionados com a preparação física, conhecimentos técnicos e científicos e perfil psicológico.

Ao longo das quatro semanas de missão, a AMADEE-20 fez dezenas de experiências nas áreas da engenharia, medicina, astrobiologia e robótica. Mas não deixaram de lado os fatores humanos e a psicologia: foram recolhidos dados para posterior análise sobre questões como a densidade social ideal dentro do habitat em Marte, a utilização da Terapia de Aceitação e Compromisso para melhorar a flexibilidade psicológica da tripulação, a avaliação da performance humana sob ambientes stressantes e os processos de trabalho da equipa sob pressão.

Pedro Marques-Quinteiro, professor auxiliar no departamento de Psicologia Social e das Organizações do ISPA – Instituto Universitário e investigador no William James Center for Research, também do ISPA, estuda precisamente a adaptação e performance humana em ambientes isolados, confinados e extremos (ICE) – sejam eles uma campanha no inverno antártico, uma missão a bordo da estação espacial internacional ou dentro de um submarino militar. E explica que os desafios dos ambientes ICE dependem de três fatores essenciais: “A existência de gravidade, os ciclos de luz solar e quão confinado se está”, ou seja, se é possível sair de um espaço físico muito limitado. Em relação a este último aspeto, lembra que na Antártida, dependendo das condições atmosféricas, isso geralmente é possível, mas a bordo de um submarino não há essa possibilidade e no espaço ela só existe quando se fazem atividades extraveiculares.

Todos esses aspetos têm impacto a nível fisiológico e psicológico. “A ausência de ritmos naturais de luz solar – por exemplo, ser sempre dia ou sempre noite – desregula o sono e os níveis de cortisol. Em consequência disso, aumenta a irritabilidade e o stress”, destaca o investigador.

Quanto mais tempo decorre, maiores os riscos. “Em missões de apenas algumas semanas o número de conflitos habitualmente é baixo ou focado maioritariamente no trabalho em si.” Mas, passados três a seis meses, aumenta bastante. “Escala tanto em frequência como em gravidade, sendo focados maioritariamente nas relações entre os membros das equipas”, salienta Pedro Marques-Quinteiro. E um conflito por resolver num espaço confinado, durante meses ou anos, com um ambiente extremo lá fora é um problema sério.

520 dias em Marte

Em novembro de 2011, emergiram de uma estrutura de algumas centenas de metros cúbicos, situada em Moscovo, seis homens que não viam a luz do Sol havia 520 dias. A experiência, levada a cabo pela Agência Espacial Europeia, em colaboração com o Instituto de Problemas Biomédicos, tinha como principal objetivo avaliar problemas associados a um confinamento prolongado. Esses seis “astronautas” ficaram em confinamento contemplando 250 dias de viagem de ida para Marte, 30 de permanência no planeta e 240 para a viagem de regresso à Terra, na primeira simulação deste género alguma vez feita. O sono-vigília dos participantes foi monitorizado e, uma vez por semana, faziam vários testes e questionários para avaliar o estado psicológico.

Tendo por base os dados recolhidos com essa experiência de 17 meses, foi publicado na revista científica “Plos One”, em 2014, um artigo chamado “Mudanças psicológicas e comportamentais durante o confinamento de 520 dias numa simulação de missão interplanetária a Marte”. Vale a pena destacar alguns dos achados: um dos participantes reportou sintomas de depressão em 93% das semanas de missão; os dois tripulantes que tiveram valores mais elevados de stress foram responsáveis por 85% dos conflitos, sendo que um deles desenvolveu uma insónia persistente, com cansaço diurno e défices no estado de alerta. Dois membros da tripulação, por outro lado, não mostraram qualquer distúrbio comportamental ou sofrimento psicológico. Os resultados são autoexplicativos: é muito importante identificar marcadores psicológicos, comportamentais e biológicos que permitam selecionar uma tripulação de uma missão espacial prolongada que possa sentir-se bem e manter-se eficaz.

Ainda há muito por saber, mas a investigação mostra que existem características-chave nesta seleção. A estabilidade emocional é uma delas. “As pessoas com pouca expressão emocional ou muita variabilidade emocional tendem a ter respostas desajustadas na gestão dos conflitos”, observa Pedro Marques-Quinteiro. Outro atributo essencial, segundo o investigador, “é a capacidade cognitiva geral – uma medida de inteligência geral – que é o melhor preditor da capacidade de adaptação a imprevistos, estando associada à criatividade, pensamento abstrato e capacidade de implementação de soluções”. Por fim, algo talvez mais inesperado: o sentido de humor. “É uma estratégia de coping [ou estratégia de enfrentamento] muito eficaz. Ter na equipa alguém que sabe fazer os outros rir contribui muito para o moral e para a motivação.”

Estes três são os fatores base, absolutamente determinantes – apesar de pouco treináveis. “Além disso são importantes as chamadas soft skills [competências interpessoais], como a capacidade de trabalhar em equipa, a gestão de conflitos e a aprendizagem de estratégias de coping ajustadas, essas sim, altamente treináveis com a ajuda de psicólogos.”

Isolados e confinados, mas autónomos

O biólogo marinho José Xavier, professor e investigador do Centro de Ciências do Mar e Ambiente, da Universidade de Coimbra, já fez mais de dez expedições à Antártida. Ao todo, já passou três anos no continente mais frio, mais seco e ventoso do Planeta, por vezes, durante nove meses seguidos, em pleno inverno antártico. Apesar do conforto dentro da base, isso significa “temperaturas exteriores que podem chegar aos 30 graus centígrados negativos e quatro horas de luz por dia”, sublinha.

José Xavier, biólogo marinho, numa das expedições científicas à Antártida
(Foto: José Seco)

O biólogo, que escreveu o livro “Experiência Antárctica – Relatos de um cientista polar português”, considera que o maior desafio destas expedições é o isolamento. Cita um exemplo: uma simples dor de dentes. Em 2009, um dos seus colegas precisou de ir ao dentista, mas isso é tudo menos fácil em pleno inverno antártico. “Ele teve sorte: estava um navio de patrulha nas proximidades que o pôde ir buscar uma semana depois e foi levado até às Ilhas Falkland, a cinco dias de distância.” Fez a consulta e esperou por um novo navio de patrulha para regressar. “Resumindo: uma situação que em Portugal se poderia tratar num dia, demorou três ou quatro semanas a resolver.”

O cientista polar entende que para lidar com o isolamento é preciso altruísmo. “Existem pequenas características que podem ajudar, como ter boa disposição e bom senso, ser organizado, dedicado, positivo e motivado. Mas o altruísmo é essencial, porque todos precisamos uns dos outros. O meio que nos rodeia é extremo e a segurança de cada um depende dos outros colegas.”

Essa união parece ser mais fácil de manter entre a equipa no terreno. No estudo Marte 500, por exemplo, o conflito com o controlo de missão foi cinco vezes mais frequente do que o dos tripulantes entre si. “À medida que o tempo passa, aumenta a desconexão entre quem está em campo e no centro de controlo e as equipas no terreno querem mais autonomia”, realça Pedro Marques-Quinteiro, que já esteve ele próprio na Antártida por duas vezes. “Isto está relacionado com pensamentos que surgem na equipa de campo, como: ‘Nós, que estamos aqui, é que sabemos. Eles, que estão lá, não sabem nada’.”

Esse é um tema muito familiar a João Lousada, que no dia a dia está no centro de controlo, como diretor de voo do módulo Colombus, da Estação Espacial Internacional, em contacto com os astronautas, fazendo o planeamento e definindo procedimentos e, nas missões análogas, está do outro lado, com as mãos na massa. E numa missão a Marte a questão da autonomia da tripulação vai ser absolutamente central.

“Não é possível resolver problemas de forma interativa: uma mensagem da Terra a Marte demora entre 8 e 20 minutos, para cada lado. Isso significa esperar até 40 minutos por uma resposta”, lembra o astronauta análogo. Em Israel, foi precisamente um dos aspetos que testaram. Durante a fase de simulação, além de só poderem sair do habitat com o fato Aouda vestido – um simulador de fato espacial que pesa cerca de 50 quilos e demora três horas a colocar -, tiveram sempre um atraso de dez minutos nas comunicações (em ambos os sentidos) com o centro de controlo da missão, em Innsbruck, na Áustria. “Com este atraso, temos de ter muito mais autonomia, para resolver os nossos próprios problemas, para planear o dia de acordo com o que vai surgindo, tendo iniciativa e capacidade de decisão – e isso é muito diferente do que tem acontecido nas outras missões espaciais.”

A maneira de comunicar de uma futura missão a Marte está também a ser testada nestas simulações. Não só do ponto de vista operacional, como também das comunicações dos tripulantes com a família, especifica João Lousada. “Porque é certo que uma missão a Marte terá de selecionar pessoas que estejam aptas para lidar com o isolamento, mas também tem de lhes dar oportunidades de não se sentirem tão isoladas.”