Irmãos no sangue e na vela a caminho de Tóquio

Cinco anos a amargarem, lado a lado, até março os recompensar: um passaporte para os Jogos Olímpicos, a última vaga europeia. Os portuenses Pedro e Diogo Costa fizeram-se vice-campeões do Mundo aos 24 e 23 anos, no mês passado. Sonham com a medalha no Japão, mas a história de luta não os deixa largar os pés da terra.

Vilamoura, março. Eram abraços e gritos os da hora dos festejos que por largos minutos despistaram a pandemia, pouco importava. Afinal, era a terceira vez que uma tripulação portuguesa se sagrava vice-campeã do Mundo. E os dois irmãos do Porto, ainda tão pequenos na idade, somavam a emoção de cinco anos a amargarem, tantas vezes sozinhos e sem apoios, para carimbarem o passaporte para os Jogos Olímpicos, com o calendário mesmo a bater o limite. Não foi só o Campeonato Mundial de vela 470 que levaram desse fim de semana no campo de regatas a sul, foi a certeza da ida aos Jogos. O bilhete, a última vaga europeia para Tóquio, era o sonho de meninos. E nem eles parecem ainda acreditar. Cabelos claros, olhos radiantes e sotaque nortenho. A juventude a correr nas veias. Irmãos no sangue e na vela, Pedro e Diogo, 24 e 23 anos, penduram ao pescoço a medalha de prata, pesada. Os irmãos Costa, como são conhecidos, bem podem sorrir. Uma semana desde o feito, andam de volta do barco que os levou à conquista, ainda meio assarapantados, na marina da Afurada (Gaia), ali com o Douro aos pés. Estão em casa os portuenses. Não é acaso ler-se “Porto” em letras azuis a contrastar com o branquinho no barco que os dois compraram em 2019 com o suor do esforço. “À volta de dez mil euros”, atira Pedro, o mais velho, que ainda se recorda nitidamente quando, tinha ele seis anos, o pai comprou um pequeno barco. Foi aí que decidiu inscrever os petizes da família, os mais novos de seis irmãos, numa escola de vela. Longe, muito longe, de imaginar que iria ver o apuramento dos filhos para os Jogos Olímpicos.

Juntos em casa e na competição

As bases da navegação aprenderam separados até se juntarem, em dupla, na adolescência e começarem a competir a sério. Corria o ano 2012. “O Diogo era muito bom velejador e eu também tinha agilidade. A conveniência e a nossa vontade fizeram com que naturalmente nos juntássemos”, justifica Pedro. Em boa hora. Na classe 420, acabaram a limpar o campeonato nacional por dois anos seguidos. Em 2015 e em 2016, quando também venceram o Mundial 420 em São Remo, Itália. “Foi o nosso primeiro grande título”, sublinha Diogo, sem pudores de orgulho.

A conquista haveria de lhes garantir um salto para a classe 470, a entrada na equipa olímpica portuguesa e o início de uma “longa e dura”, palavras do mais novo, campanha olímpica. O investimento ia aumentar, os campeonatos seriam todos internacionais, não há nacionais nesta classe. Os olhos já sonhavam com os Jogos – seriam em 2020 não fosse a covid trocar as voltas ao Mundo – mesmo que lhes parecesse irreal e que até pensassem que só lá chegariam em 2024, quando as classes passarem a ser mistas e tiverem que competir separados. Ainda havia tempo pela frente. E são resilientes, os dois, às avessas da idade. O pai ajudou no arranque, ofereceu-lhes a primeira embarcação de 4 metros e 70 ao comprido, até eles próprios conseguirem investir. Um empurrão.

Diogo e Pedro Costa partilham os genes e a paixão por vela e pelas engenharias. Esperam que a pandemia lhes permita aterrar no Japão já no próximo mês para começarem os treinos
(Foto: João Costa Ferreira)

Ao peito, trazem bordados os anéis olímpicos em camisas brancas, iguais. Mas à parte dos genes e da barba que usam idêntica, não são iguais em muita coisa. Diogo é mais calmo e caseiro. Pedro é mais acelerado e de rua. Talvez seja esse equilíbrio o segredo. Na verdade, há outra coisa que os une: as engenharias. Estudam os dois na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP). Ou melhor, estudavam. Carregaram no botão da pausa em 2018. Escolha inevitável. Queriam tornar-se profissionais na vela e isso obrigava a dedicarem-lhe a vida a 100%. Para quem se sentava a ver construções e máquinas em pequeno, era de adivinhar que o mais velho dos irmãos entrasse em Engenharia Civil. Diogo ainda lhe seguiu as pisadas, como quem engana o gosto pela programação, até mudar para Engenharia Informática ao fim de um ano. Hão de voltar, prometem.

O travão: a perda do financiamento, a lesão

Foi, aliás, em 2018 que começou um longo e amargo ano para os irmãos. Antes disso, correram Barcelona, Palma de Maiorca, Mónaco. Entre treinos e o campeonato da Europa, com o apoio da Federação. Mas uma lesão do mais velho meteu-se no caminho e obrigou-os a um travão. Três meses parados, não conseguiram renovar os resultados, obter os mínimos. Um balde de água fria. Saíram da equipa olímpica em agosto, perderam o financiamento. Teriam de ser eles, agora, a pagar a ida a campeonatos e os treinos: treinador, alojamento, alimentação. Hora de apanhar os cacos, de recuperar as perdas.

Sozinhos, puseram pés ao caminho, agarraram-se com forças ao amor que têm ao vento e ao mar, sem barulho de motor, à combinação perfeita entre a força e a resistência, a técnica e a tática.

O que os apaixona é “estar na água, ao ar livre”. “Todas as regatas são diferentes, mesmo no mesmo dia, o vento, a temperatura, o sol mudam. E isso é que é excelente”, confessa Diogo. Tinham guardado, já como quem antecipa contratempos, o dinheiro que o prémio do Campeonato do Mundo lhes rendeu, a somar ao dos três patrocinadores que estão com eles desde o princípio e ao das bolsas da equipa olímpica. “Eram várias dezenas de milhares de euros, muito.”

Pedro não consegue traduzir num número, mas o pé-de-meia e a ginástica para poupar em despesas segurou-os. Meses de luta. “Nunca pedimos favores. Contratámos treinadores que não cobravam tanto, quando íamos para fora ficávamos em casas em vez de hotéis para conseguirmos estender o tempo da estadia.” E reergueram-se, qual Fénix que não desiste. Meados de 2019, recuperam o apoio da Federação Portuguesa de Vela, que lhes reconheceu o esforço e lhes deitou a mão. A confiança voltou a quem há muito merecia, ganharam lanço.

O regresso à luta: treinar com os melhores

Não deram abébias, não desleixaram. Mal abriram as fronteiras, em julho do passado ano, aterraram em Santander e logo depois em Lanzarote para treinar com a equipa espanhola e com a sueca que também se lhes juntou. Vilamoura à vista. Tiveram apoio total, mas continuaram a investir do bolso deles, porque a meta era o topo. Pedro sabe bem o que custou, a persistência, a superação. “Não é comum as equipas juntarem-se, mas tínhamos uma amizade com a equipa espanhola e eles fizeram o favor de nos deixar treinar com eles. Eram melhores do que nós.”

Os irmãos Costa evoluíram tanto no último meio ano que acabaram a passar a perna aos “hermanos” naquele mítico Mundial, há menos de um mês, e a empurrá-los para o terceiro lugar. A humildade do mais novo não o deixa mentir. “Nem nós estávamos à espera de ficar à frente de equipa espanhola, que é a referência.”

O arranque em dia de vento instável até os fez acreditar no ouro, nunca alcançado por portugueses, mas acabariam por deixar escapar a glória para os suecos, também eles companheiros de treinos e que carregam a experiência de quem é bicampeão europeu. Mágoas? Poucas ou nenhumas. “Foi um orgulho para as três equipas que o pódio ficasse entre nós, passámos o inverno todo a treinar juntos e, de repente, somos os três melhores do Mundo”, comenta Pedro. Festejaram numa algazarra feliz como se todos tivessem vencido. Na verdade, todos venceram. Estão todos nos Jogos. O feito dos irmãos, a prata nesse Mundial, só foi conseguido por portugueses em 1997 e em 2007. Não se agarram à glória, nem tampouco se deslumbram. A cabeça está em Tóquio, a desenhar planos à velocidade da luz.

Os irmãos Costa sagraram-se vice-campeões mundiais de vela, na classe 470, em março, em Vilamoura, e garantiram a última vaga de apuramento europeu para os Jogos Olímpicos de Tóquio
(Foto: João Costa Ferreira)

Pedro e Diogo fizeram aumentar para quatro os velejadores portugueses nos Olímpicos, depois de Jorge Lima e José Costa terem garantido vaga na classe 49er já em 2018. Ao todo, Portugal vai ter 40 atletas no Japão entre 23 de julho e 8 de agosto. Olhos postos no barco, têm esperança? Claro. O sonho é a medalha, que nenhum velejador nacional ganha desde 1996, mas a mocidade não lhes rouba os pés à terra. “O objetivo é garantir a qualificação para a última regata do campeonato, a medal race, que apura os dez primeiros”, aponta Diogo. Acusam a pressão de estarem a representar mais de dez milhões, num momento único. Mas, para já, é continuar a treinar.

Estágio final até Tóquio, já em maio

No mapa têm Cascais, Vilamoura e Japão, aonde esperam aterrar em maio. Já lhe conhecem os ares, a população concentrada, os quartos apertados, o choque de realidades. Velejaram no país nipónico em 2015 e em 2019, noutros carnavais. Na rotina, têm estágios de 20 dias, em água, todos a começar às oito da manhã e a acabar às oito da noite. Intercalam com pausas em terra para respirar. Os primeiros dias são de barriga para o ar. Não duram muito, nem aí há desculpas. Bicicleta, corrida, musculação, exercícios de resistência que os deixam a suar em bica.

Raramente precisam de trocar olhares, conhecem-se como ninguém, adivinham-se antes sequer de o outro falar. Às vezes, corrigem-se, discretamente, baixinho, entre dentes.

Mas passar todas as horas com um irmão também traz a reboque zangas. “Dá para nos chatearmos, partilharmos alegrias, desilusões. É diferente viver isto com um irmão, guardar esta experiência em família, e tudo é mais fácil em termos de logística porque vivemos juntos”, admite Diogo. A mãe, consultora, envolve-se mais, esteve em Vilamoura a vibrar. E o pai, gestor, dá-lhes força, mesmo quando não está lá fisicamente.

A vela rouba-lhes aniversários, jantares com amigos, eventos familiares. Um sacrifício mais palpável desde 2018. Não são de lamúrias. O Comité Olímpico patrocina-lhes a ida aos Jogos, mas continuam a escavar em busca de mais apoio e patrocinadores. Não querem uma simples preparação, querem “uma preparação ótima”. Os barcos vão num contentor para o Japão. E os olhos continuam radiantes, à espera de Tóquio. Talvez o Mundial seja bom prenúncio.

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