Igreja Matos: o conciliador duro de roer

Igreja Matos é presidente da União Internacional de Juízes

Cordato, pacificador, mas capaz de traçar linhas vermelhas sempre que em causa está o estado de direito. Aclamado presidente da maior associação mundial de juízes, dedicou a distinção às juízas afegãs.

Direito não foi vocação nem a toga uma emergência, mas gosta muito do que faz. Agnóstico e humanista, crê nas leis e na democracia, no Estado que respeita a separação dos poderes e a cumpre. Vive, por isso, preocupado. Tem o amigo Murat Arslan, magistrado turco distinguido em 2017 com o prémio Vaclav Havel, num calabouço de Ancara. Arslan é um dos mais de 2.600 juízes que em algum momento estiveram privados da liberdade a mando de Erdogan. Um dos mais de 4.500 homens e mulheres expulsos da corte turca por ousarem defender o estado de direito. E nesse combate, “sem trégua”, o homem descrito como “um conciliador nato” não hesita em traçar linhas vermelhas rígidas. “Depois da queda do muro de Berlim, não pensei que assistiria à reversão do estado de direito na Europa”. “Intolerável”, que se aplica à Hungria e à Polónia, dois casos dramáticos que segue de perto. “Não me cansarei de alertar e de combater.”

Luta levada a cabo, primeiro, como presidente da associação europeia da União Internacional de Juízes (UIJ), prestando apoio jurídico e financeiro a famílias dos magistrados turcos em perigo e, a partir de agora, como líder da UIJ, a maior organização mundial judicial, fundada em 1953, na Áustria (começou com seis países, vai em 94). “Uma espécie de Nações Unidas da magistratura”, explica, a que preside por aclamação, dedicando a escolha às juízas do Afeganistão. “Vivem um horror.”

“Define-o”, dizem amigos, “a atenção que dedica ao outro”. Tem por lema de vida uma história, que conta em diversos palcos: “Quando um aluno perguntou à antropóloga Margaret Mead qual era, para ela, o primeiro vestígio de civilização humana, a antropóloga americana respondeu: ‘Um fémur com 15 mil anos encontrado numa escavação arqueológica. O fémur estava partido, mas tinha cicatrizado. É um dos maiores ossos do corpo humano, demora seis semanas a curar. Alguém tinha cuidado daquela pessoa. Protegeu-a em lugar de a abandonar à sua sorte’. Na natureza, qualquer animal que parta uma perna está condenado. O que nos distingue enquanto civilização é a empatia, a capacidade de nos preocuparmos com os outros. E por isso recorro tantas vezes a este exemplo”, diz.

Vieira Cunha, também juiz, é amigo há 30 anos: “Igreja de Matos é uma pessoa serena, tranquila, dada e afetiva. Não gosta de preconceito, de pesporrência, de má criação”.

O colega Estelita Mendonça, outro dos amigos de longa data, ressalta a capacidade de trabalho. “Nunca esteve em comissões de serviço ou teve sinecuras. É alguém que trabalha muito, que dá sempre a cara.” Vê no perfilado “o paradigma” de juiz: “É um homem livre e independente”.

Ser juiz, diz o próprio, obriga a duas características paradoxais. “Saber estar permanentemente atento a quem e ao que está em debate, e ser capaz de se colocar à distância, numa atitude exclusivamente racional.”

Nasceu em São Paulo, Brasil, por acaso (o pai negociava em produtos de metalomecânica). Tinha dez meses quando a família, de origem minhota, regressou a Braga. Adolescente, preferia as questões filosóficas, embrenhar-se na obra de Tolstoi e Dostoievski. Foi por isso com “todo o cuidado e humildade” que se atreveu a escrever três contos, em cenário de tribunal, publicados em livro.

Prazeres adiados pela pandemia são as viagens e os finais de tarde a assistir a um filme, em sala de cinema. Antecâmara de um jantar que para ser ideal “tem de contar com amigos, bacalhau e um bom vinho tinto”. Confessa-se hedonista.

Estelita Nunes recentra a conversa no caráter do juiz cordato, “preocupado com o mundo”. “Do Afeganistão à Turquia, procura sempre fazer alguma coisa. E consegue, desde logo porque é muito trabalhador.”

O juiz da Relação do Porto gostaria de ser recordado pelos dele “como alguém bondoso, com interesse pelo outro”.

Igreja Matos cita “Os Justos”, poema de Jorge Luis Borges. Acredita que o mundo está a ser salvo por pessoas que é nosso hábito ignorarmos. Salvo “por quem prefere que os outros tenham razão”. “Ou por quem acarinha um animal adormecido.” Como bem sabe o seu amigo maior, um labrador chamado Dexter.

José Manuel Igreja Martins Matos
Cargo:
presidente da União Internacional de Juízes
Nascimento: 16/05/1965 (56 anos)
Nacionalidade: Portuguesa (São Paulo, Brasil)