Idadismo, o preconceito que afeta metade da população

As consequências do idadismo são altamente gravosas

Rejeitados no mercado de trabalho, discriminados no acesso à saúde e ao ensino, subtilmente proscritos no dia a dia. As várias formas do idadismo.

Elisabete Machado, viseense de 59 anos, deu aulas na área das artes plásticas durante 33. Primeiro em escolas públicas, depois num colégio, mais tarde numa instituição particular de solidariedade social (IPSS) que também tinha creche e ATL. Mais para o fim, quando percebeu que as vagas estavam a escassear, começou a desconfiar (e bem) que um dia deixaria de haver lugar para ela. Vai daí, com 45 anos, aventurou-se numa licenciatura em Serviço Social. “A ideia foi ter uma alternativa, para não ficar sem emprego.” A previdência serviu-lhe de pouco. Aos 52 anos, ficou desempregada e nem o curso lhe valeu. Hoje, com 59, vive com uns míseros 400 euros de pensão, porque, ao fim de incontáveis negas, viu-se obrigada a meter a reforma antecipada. Pior é pensar no argumento que lhe fechou as portas. “Às vezes, recorriam a subterfúgios, mas eu percebia que a questão era a idade. Noutras vezes, diziam-me mesmo: ‘Estávamos a pensar contratar uma pessoa um bocadinho mais nova, sabe?’.” Ao ponto de Elisabete ir interiorizando aquele discurso. “Cheguei a convencer-me de que tinha de dar lugar aos mais novos e que tinha mesmo que me encostar, apesar de não me sentir velha.” Para não dar lastro à revolta interior que lhe ficou, tenta manter-se ocupada. Faz caminhadas, vai ao ginásio, pratica ioga, começou a fazer voluntariado em hospitais. Entretanto, vai acalentando a esperança de conseguir “umas horitas” numa IPSS para complementar o ínfimo valor que lhe cai na conta no fim do mês. “Mas o meu marido já me disse para esperar até à morte.”

A história de Elisabete é a face mais visível do preconceito em função da idade, o chamado idadismo. O assunto foi o tema central de um relatório divulgado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em março deste ano. O documento concluiu que uma em cada duas pessoas no Mundo tem atitudes discriminatórias em função da idade. E chama a atenção para um “desafio global”. O idadismo já foi também considerado pela Organização das Nações Unidas a terceira forma mais grave de discriminação, depois do racismo e do sexismo. Mesmo que não ande nem perto de ser tão falado como os outros dois.

O brasileiro Alexandre Kalache, ex-diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da OMS e visto por muitos como o pai do conceito de envelhecimento ativo, explica os quatro “is” em que assenta o conceito. “A ideologia de um grupo que se acha superior em relação a outro; a institucionalização, que é quando essa ideologia é adotada pelas instituições e acontece, por exemplo, quando se nega um serviço médico ou um transporte público adequado; a parte interpessoal – as piadinhas e os pequenos tropeços que forçam a pessoa a perder a sua autoestima – e a internalização, que é quando a pessoa acaba por acreditar que realmente vale menos do que o outro, que é um fardo, que deve sair de cena.” No fundo, o que acabou por acontecer a Elisabete Machado.

Da carta de condução aos provérbios

Alexandre Kalache, também epidemiologista e presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil, relata outros exemplos. Um deles vivido na primeira pessoa. “Tenho casa em Espanha e sempre que lá vou alugo um carro. Da última vez que lá estive não consegui, por ser muito velho [tem 76 anos]. Isto apesar de a minha carteira [carta de condução] não ter qualquer mácula e de ser válida a nível internacional.” Há outros casos. Relativos ao mercado de trabalho, sobretudo, como percebemos por Elisabete Machado. “Há uns anos era algo mais gráfico. Os anúncios diziam que só aceitavam pessoas até aos 45 anos. Agora já não é tanto assim, mas a política não desapareceu. Surge é muitas vezes de forma dissimulada.”

Kalache assegura que o mesmo acontece na área médica, por exemplo. Jura que há colegas que quando se deparam com pacientes mais velhos pensam duas vezes antes de fazer uma tomografia computorizada , por exemplo. Ou mesmo em relação ao ensino. Conta outro caso pessoal. “A minha mãe, há uns 15 anos, tinha uma funcionária doméstica, muito inteligente, mas com um nível de educação muito básico. Eu convenci-a de que deveria progredir nos seus estudos, mas a verdade é que não conseguiu ser admitida no curso, por ser considerada muito idosa. Lá está, a forma como as instituições expressam o idadismo nas suas políticas.”

José Carreira, um dos mentores do movimento Stop Idadismo em Portugal, aponta outras situações mais específicas. “Foi muito notório agora com a covid. Cá a questão não chegou a colocar-se, mas em Espanha as juntas autonómicas chegaram a dar diretrizes de que as pessoas com mais idade não deviam ser tratadas nos hospitais.” O ex-presidente da Alzheimer Portugal lembra ainda alguns casos concretos. “Os jornalistas Mário Crespo e Luísa Castel-Branco, por exemplo, já assumiram em entrevistas que foram excluídos do mercado de trabalho em função da idade.” Isto sem esquecer os “micro idadismos”. “Pequenas formas de discriminação que estão no nosso dia a dia e de que nem nos damos conta. O simples facto de estranharmos que alguém a partir de uma determinada idade use um dado penteado. A uberização dos avós, quando se assume que têm de ser o táxi da família, os ditados (‘todos conhecemos a velha máxima de que burro velho não aprende línguas’), a própria sinalética, em que nos sinais de trânsito os velhinhos aparecem curvados. Há uma imagem negativa que é transmitida.”

Foi por notar todas estas formas de discriminação, das mais colossais às mais subtis, e também por ter ficado de sobremaneira preocupado com o Estudo Portugal Mais Velho – conduzido pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, em que se dava conta de que, apesar de termos cada vez mais pessoas mais velhas, “a idade continua a ser vista como um fardo” – que José Carreira, juntamente com outros dois colegas (um médico e um da área do marketing), decidiu pôr pés ao caminho. “Apesar de um quinto da população portuguesa ter 65 ou mais anos, pouco ou nada está a ser feito para que estas pessoas continuem a sentir-se incluídas”, alerta, como que a lembrar o mote para tudo isto. Assim, a 30 de abril, nascia o movimento Stop Idadismo Portugal, que se tem dedicado à realização de várias ações, entre as quais uma destinada à sensibilização em relação à violência contra a pessoa idosa e uma outra que decorreu durante a campanha para as eleições autárquicas do último domingo, 26 de setembro. “Contactámos todos os partidos dando conta da existência de uma resolução aprovada na Assembleia da República no sentido de promover o envelhecimento ativo [maio de 2021], perguntando-lhes que considerações queriam tecer sobre essas propostas e quais as medidas que tinham nos seus programas para contribuir para isso. Infelizmente, as respostas foram praticamente zero.” Estão ainda a apostar na criação de livros ilustrados sobre o tema para trabalhar junto das escolas.

“Uma peste à escala mundial”

José Carreira, que há 20 anos trabalha no setor social e tem estado particularmente atento ao tema do envelhecimento desde que em 2008 fez um trabalho académico sobre os maus-tratos às pessoas idosas, explica ainda que o movimento tem tratado, em parceria com organizações de outros países, de combater o que se considera ser um “paradoxo”. “No relatório divulgado no ano passado, a OMS concluiu que o idadismo está fortemente enraizado. Por outro lado, está proposto que a partir de 2022 a velhice seja considerada doença e incluída na Classificação Internacional de Doenças. Isto é surreal”, lamenta o também presidente das Obras Sociais Viseu.

Mas, afinal, o que pode ser feito para combater o idadismo que grassa e que leva Alexandre Kalache a falar numa “grande peste à escala mundial”? O especialista defende que é preciso fazer uma “ressignificação” do próprio processo de envelhecimento. “Pensarmos que quando somos mais velhos não fazemos o que fazíamos aos 30, mas que com 30 também não podíamos fazer coisas que fazemos hoje.” E apostar numa espécie de autoeducação, sublinha. “Pensarmos bem se queremos ser tratados da forma como estamos a tratar os mais velhos.”

Este será apenas o ponto de partida. Depois, claro, há todo um paradigma que é urgente mudar. A nível estatal, a nível institucional, a nível de políticas públicas. Até porque as consequências do idadismo são altamente gravosas. José Carreira realça isso mesmo. “Há danos ao nível da saúde e do bem-estar. Em muitos casos, a pessoa, fruto do estigma, interioriza que é um fardo para a família e acaba por se isolar. Muitas vezes, isto está de tal forma enraizado que acabamos a achar isso normal e não ativamos os nossos direitos. Há muita gente só, a viver numa solidão não desejada. E acho que em Portugal ainda não acordámos para isso.” O idadismo, frisa, tem por isso impacto na esperança média de vida. No limite, pode mesmo levar ao suicídio. José Carreira partilha até um exemplo internacional, bem ilustrativo da solidão a que os mais velhos podem acabar votados. “No Japão, já há quem cometa pequenos delitos para ir parar à prisão e ter com quem falar.”