Histórias de quem agarrou vagas de última hora no acesso ao Ensino Superior

Na primeira fase de acesso ao Ensino Superior, houve cerca de 220 alunos colocados nos chamados cursos de excelência que não se inscreveram. As explicações para os lugares que ficaram por preencher e os testemunhos de quem os agarrou.

Era 13 de outubro, passavam dez minutos das 17 horas, Gonçalo Sousa assistia a uma aula de Cálculo Financeiro na Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP), embrulhado em nervos. Sabia que o email que lhe escreveria o futuro haveria de cair algures àquela hora. Até que a notificação chegou. E ele não conseguiu manter-se sentado. “O meu coração parou.” Pediu ao professor para sair, levantou-se e dirigiu-se à parte exterior da sala. Mas as tecnologias não lhe facilitaram a vida. “A net foi abaixo, tive de ligar os dados, depois não dava nada, foi um momento um bocado assustador”, recorda, ainda inebriado. Mas o que chegou a soar a prenúncio de más notícias foi afinal um bafejo de fortuna. Gonçalo, 18 anos, natural de Santo Tirso, tinha agarrado a última das cinco vagas disponíveis no curso de Engenharia e Gestão Industrial da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), na segunda fase de acesso ao Ensino Superior. Com a porta da sala entreaberta, Gonçalo não se conteve. Virou-se para os colegas, que sabiam o quanto ele queria entrar naquele curso, e festejou. “À jogador de futebol mesmo”, conta com graça. Depois, não sabe bem porquê, desatou a correr, pelo corredor, rumo à casa de banho, um sorriso parvo que não lhe saía da cara, as lágrimas a marejarem-lhe teimosamente os olhos. Uma reação que nada teve que ver com a dos resultados da primeira fase, quando soube que tinha entrado em Economia, na FEP. “Na altura, fiquei só apático. Acho que de alguma forma soube que o jogo não acabava ali.”

Não é que a ideia daquele curso fosse uma convicção de raiz. Aliás, Gonçalo não foi daqueles miúdos que souberam o que queriam ser desde cedo. “Sabia mais o que não queria ser. Sabia que não queria ser médico e sabia que não queria ser juiz, até porque nunca fui muito marrão.” Depois, um amigo falou-lhe no curso de Engenharia e Gestão Industrial. E ele foi saber mais sobre o assunto. Depressa se deixou convencer. Até por ser um dos cursos “com mais saída e mais emprego”. Mas também por ser “muito abrangente”. “Sabia que se entrasse em Medicina só podia ser médico. Neste curso ficamos com bases fortes de Gestão, Física e Matemática.” Mas chegar lá “foi uma aventura”.

A nota interna no Colégio de Lourdes, em Santo Tirso, deixava-o plenamente sossegado. Um 20 redondo. O exame de Físico-Química da primeira fase (18,5 valores) também. O de Matemática é que foi o cabo dos trabalhos. “Estava nervoso e correu mal. Tive 15,8, uma nota mesmo muito baixa para as minhas expectativas.” Por isso, decidiu repetir o exame daquela disciplina na segunda fase. Confessa que, como tinha a matéria consolidada, só estudou “duas ou três tardes”. Mas foi muito mais tranquilo. E a serenidade deu frutos. Teve 18,5 no exame e concorreu com média de 19,25. “Quando soube que havia cinco vagas para aquele curso na segunda fase, tendo em conta a minha média, fiquei descansado.” Afinal, acabou por ser o último a entrar. “Tive mesmo muita sorte, as estrelas alinharam-se todas”, partilha Gonçalo, ainda exultante. Quanto ao futuro, já tem umas ideias. “Gosto muito de desporto e de futebol. Normalmente quando falamos em indústria, não incluímos o futebol. Mas a verdade é que é uma indústria. Gostava de explorar um bocadinho esse lado, ser gestor na indústria desportiva.”

Gonçalo Sousa entrou no curso de Engenharia e Gestão Industrial, na FEUP, com média de 19,25 valores
(Foto: Igor Martins/Global Imagens)

O curso que Gonçalo elegeu, Engenharia e Gestão Industrial, na FEUP, foi o quarto com a média de acesso mais alta (19,25 valores) na segunda fase do concurso nacional de acesso ao Ensino Superior. Mas houve outros oito em que o último colocado entrou com uma média superior a 19 valores. É o caso do curso de Engenharia Física Tecnológica, da Universidade de Lisboa (19,13), do de Design de Comunicação, da Universidade do Porto (19,15), do de Engenharia e Gestão Industrial, do Instituto Politécnico do Porto (19,17), do de Medicina, da Universidade de Coimbra (19,17) ou do de Engenharia Aeroespacial, do Instituto Superior Técnico (19,18). No top 3, ficaram, por ordem crescente, o curso de Medicina da Universidade do Minho (19,27), o de Engenharia Aeroespacial da Universidade de Aveiro (19,48) e o de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), onde, na segunda fase, entraram dois alunos, o último dos quais com uma sonante média de 19,52 valores.

Das enciclopédias à FMUP

A “Notícias Magazine” seguiu-lhe o rasto. Tomás Lopes, 18 anos, residente em Penafiel, bom aluno e adepto da leitura desde sempre (devorava enciclopédias infantis, o que em muito contribuiu para lhe engordar a cultura geral), estudante do Colégio Casa Mãe, em Baltar, durante o Ensino Secundário. Eis o retrato sumário do “sortudo” que agarrou a última vaga de um dos cursos mais procurados do país. Ainda que nisto do acesso ao Ensino Superior a sorte não seja mais do que um pequeno apêndice do trabalho árduo. Tomás que o diga. “Até ao 9.º ano estudava para os testes, mas não tinha propriamente um método de estudo. No 10.º, quando começou a surgir a pressão de tirar boas notas para poder ir para a faculdade, é que isso mudou. Comecei a perceber que tinha de fazer um estudo contínuo, principalmente na Matemática.” O empenho valeu-lhe uma média interna de 19,1 valores. E um 20 no exame de Físico-Química, no 11.º ano. E um 19,2 no de Biologia e Geologia. Mas também no caso de Tomás a Matemática quis complicar as contas: 16,1 valores no exame nacional. E a média dele a ir por ali abaixo para os 18,77. “Fiquei mesmo desanimado. Estive um mês a estudar para o exame, empenhei-me bastante e depois não correu bem. Cheguei mesmo a pôr em causa se ia conseguir entrar em Medicina.” Como previa, a nota não chegou para entrar, à primeira, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto (19,03), nem na FMUP (18,82). Foi parar a Coimbra. E ainda frequentou as aulas durante duas semanas.

Mas tinha o objetivo de continuar na Invicta bem estabelecido. E então permitiu-se uma segunda tentativa. “Inicialmente era algo que não queria muito fazer, porque achava que as possibilidades de entrar eram muito mais baixas e sabia que tinha de tirar uma nota mesmo muito alta. Mas os meus pais e o meu professor de Matemática acabaram por me convencer.” E em boa hora o fizeram. De 16 passou para 20. O segredo? “Baixei as expectativas e geri melhor o meu tempo.” Não entrou logo em euforias, ainda assim. Até porque havia a possibilidade de os cursos que queria (Medicina no ICBAS ou na FMUP) não terem vagas na segunda fase. Mas depois soube que na FMUP tinham aberto duas. E a expectativa cresceu de mansinho. Até que naquela tarde de 13 de outubro, a expectativa se fez sonho cumprido. “Foi uma reação muito controlada. De alguma forma já estava conformado e até achei a experiência em Coimbra muito enriquecedora. Mas fiquei contente por vir para o Porto, até porque estou a gostar mais das aulas. Não são tão teóricas e não há aulas online, que é algo de que também não gosto.”

Ao todo, foram 13 697 as vagas disponibilizadas na segunda fase de acesso ao Ensino Superior. Destas, perto de 6400 foram dadas a conhecer logo aquando da divulgação dos resultados da primeira fase e mais de sete mil foram anunciadas cerca de uma semana depois, a 7 de outubro, em função de lugares que não foram preenchidos por falta de inscrição dos colocados na fase inicial, das vagas reservadas para os alunos internacionais e dos lugares adicionais entretanto disponibilizados pelas instituições de Ensino Superior. Mais curioso é constatar que, entre as vagas que resvalaram para a segunda fase por falta de inscrição dos alunos colocados na primeira, se incluem aproximadamente 220 respeitantes aos chamados cursos de excelência – o índice de excelência é medido pela quantidade de candidatos com média igual ou superior a 17 (este ano, foram cerca de 40 cursos, onde entraram, na primeira fase, 4900 alunos). O número de estudantes que não se inscreveram foi adiantado à “Notícias Magazine” por Fontainhas Fernandes, presidente do Conselho Nacional de Acesso ao Ensino Superior e membro do grupo de trabalho nomeado, em fevereiro, pelo Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, para elaborar um relatório de acesso ao Ensino Superior. “É uma matéria sensível e que merece melhor análise, nomeadamente por parte desta comissão [o referido grupo de trabalho]”, admite o responsável.

Na primeira fase, Tomás Lopes foi parar a Coimbra, para estudar Medicina. Na segunda, conseguiu entrar no Porto
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

E se, olhando para o panorama geral destes 40 cursos, haverá uma explicação mais ou menos óbvia para as vagas sobrantes numa parte deles, que é o facto de alguns dos alunos não ficarem satisfeitos com as suas colocações à primeira e preferirem concorrer a outras opções na segunda fase em vez de se inscreverem nos cursos que lhes foram inicialmente atribuídos, Fontainhas Fernandes chama a atenção para outros dois fatores que podem ajudar a explicar os números elevados. “Um é a possibilidade de os alunos se inscreverem em cursos do setor privado”, aponta. Uma possibilidade que foi reforçada este ano, com a estreia do curso de Medicina, da Universidade Católica. Outro possível fator é o facto de haver “muitas famílias apostadas em colocar os filhos no estrangeiro”. Sobretudo agora que a pandemia começa a dar tréguas. Aliás, há até vários colégios privados que se dedicam a preparar os alunos para o ingresso em cursos no estrangeiro. O que não impede que, para salvaguardar uma vaga ou simplesmente para manter todas as opções em aberto, estes se candidatem também ao concurso de acesso nacional ao Ensino Superior. Fontainhas Fernandes ressalva, no entanto, que estas hipóteses resultam de uma “reflexão pessoal”, sublinhando que será preciso haver uma análise mais profunda do fenómeno para chegarmos a conclusões mais palpáveis.

Com a cabeça na lua

E assim a segunda fase abriu com umas quantas vagas nos cursos que registaram as médias de ingresso mais altas da fase inicial. A começar pelo curso de Engenharia Aeroespacial do Instituto Superior Técnico, em que o último colocado da primeira fase teve a média mais alta, quando comparada com toda a concorrência: 19,05. Um número auspicioso que não impediu que ficassem seis vagas por preencher – quatro porque os alunos optaram por mudar para outros cursos do Técnico, dois porque simplesmente não se inscreveram, adiantou fonte oficial da instituição, acrescentando que estas situações acontecem anualmente nos cursos mais disputados.

Cláudia Chen, 18 anos, residente em Almada, foi uma das alunas que agarraram estas seis vagas. Um destino que esteve quase para não acontecer. É que com uma média interna de 19,3, um 19 no exame de Química e um 18,5 no de Matemática, Cláudia acabou a concorrer a este curso, na primeira fase, com 19,03, quando o último a entrar teve… 19,05. E ela a conformar-se. “Achei que se não tinha entrado era porque não era para mim.”

Mas a família e os amigos incentivaram-na a permitir-se uma segunda oportunidade. E no último dia, já pelas 19 horas, lá voltou a candidatar-se. Pelo meio, tinha repetido o exame de Matemática. E desta vez teve 19,7. Por isso, à segunda, com uma média global de 19,33, entrou mesmo no curso desejado. “Fiquei superfeliz”, lembra. Ainda mais porque os dias que passou no curso que lhe tinha calhado na primeira fase, Matemática Aplicada, não lhe agradaram minimamente. Agora, em Aeroespacial, os primeiros tempos também não foram fáceis, reconhece. “Nos primeiros dias fiquei desesperada porque percebi que os meus colegas já iam muito avançados na matéria. Mas depois pensei: ‘Não, eu consegui entrar neste curso, não posso desistir, mesmo que seja difícil’.” Agora, “mais calma e confiante”, até já vai sonhando com o futuro. “Gostava de fazer investigação na área das aeronaves.”

Cláudia Chen foi uma entre 281 alunos que entraram, na segunda fase, nos cursos de excelência. Sendo que, também nesta fase, houve alunos que não se inscreveram. Foi o caso de uma estudante que entrou no curso de Medicina da Universidade do Minho, com uma média de 19,27 valores, e que nunca chegou a matricular-se. A vaga transitou, por isso, para a terceira fase. A “Notícias Magazine” ainda tentou perceber, junto da instituição, a explicação para esta opção inusitada, mas sem sucesso. O que conseguimos apurar, numa ronda de conversas com funcionários das várias universidades, é que além das explicações mais “óbvias”, já mencionadas neste artigo, surgem, esporadicamente, histórias de âmbito mais específico ou pessoal que também ajudam a deslindar o fenómeno. Atletas de alta competição que concorrem pelo contingente normal e pelo regime especial, por exemplo, e que acabam por agarrar a vaga resultante da segunda via. Ou alunos que por viverem dramas pessoais optam por adiar a entrada na universidade. Ou mesmo estudantes que, por serem de longe, repensam a saída precoce de casa, mesmo depois de colocados.

Por sorte, Pedro Moura, maiato de 18 anos, acabou por não ter de ir para muito longe de casa. Isto porque escolheu seguir Engenharia Aeroespacial precisamente no ano em que a Universidade de Aveiro inaugurou o curso. Mas a história não se fez sem curvas e contracurvas. Percebê-la implica recuar uns anos, algures até ao 7.º, 8.º ano de Pedro. Foi nessa altura que foi dar com o livro “Astrofísica para gente com pressa”, do astrofísico americano Neil deGrasse Tyson, e se embeiçou pela área. Mas andou indeciso. Porque adorava computadores e queria fazer programação. “Ainda por cima eu gostar, sempre gostei de fazer muita coisa. Origami, por exemplo. Ou de montar e desmontar coisas. Primeiro eram as canetas, depois passaram a ser os telemóveis.” E então foi aconselhado a ir para um curso em que a componente de programação se pudesse aliar à da criação de objetos. E foi assim que a Engenharia Aeroespacial se desenhou no horizonte.

Pedro Moura foi para o primeiro exame de Matemática a “jogar para o empate” e deu-se mal. Mas redimiu-se a tempo
(Foto: Maria João Gala/Global Imagens)

Mas a meta não estava logo ali à mão. Com uma média interna de 19,5 e um 19,7 obtido no exame de Físico-Química, Pedro foi para o exame de Matemática a transbordar confiança. Demasiada. “Fui a jogar para o empate. E normalmente quando se joga para o empate corre mal”, brinca. Correu mesmo. 14,5 valores e uma média de sonho a ir por água abaixo. Logo ele que nunca foi de “marrar”. “A minha filosofia sempre foi: ‘Se estás a marrar, estás a fazer alguma coisa mal.’ 70% dos meus resultados sempre se deveram ao que eu ‘apanhava’ nas aulas.” Mas para a segunda fase do exame de Matemática deu tudo. “Fiz um caderno inteiro de resumos.” O esforço compensou. Teve 19,2 e acabou a ser o único entrar a entrar na segunda fase no curso de Aeroespacial, em Aveiro, com 19,48 valores. A boa nova chegou a meio de uma aula do curso de Engenharia Informática e de Computação, na FEUP, onde ficou colocado na primeira fase. Dois dias depois, já estava em Aveiro, com quarto escolhido e a assistir a uma aula. As diferenças são notórias (“na escola, metade da aula era matéria nova e a outra metade era, como eu dizia, ‘encher chouriços’, agora as aulas são de duas horas e é uma hora e 59 minutos de matéria), mas a prova do entusiasmo com a nova etapa é que, um dia destes, quase deu por ele a passar o pequeno-almoço. “Acordei de madrugada para estudar programação e quando reparei já eram horas de ir para as aulas”, relata, bem-disposto, a mostrar que as alegrias de última hora são, quase sempre, as mais saborosas.