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Helena Isabel: “As mulheres de 70 anos cada vez estão mais vivas”

Fotos: Leonardo Negrão/Global Imagens

Helena Isabel, atriz

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Não lhe digam que cada ruga é uma história de vida. As histórias de vida, privadas, íntimas, não as quer marcadas na cara, “à vista de todos”. Ri e insiste. Ter 69 anos é fazer o que lhe apetecer, “mesmo que seja ficar em casa, sem fazer nada”. Às vezes, dizem-lhe “tens de sair”. Ela responde, vírgula. Ter 69 anos é não aceitar imposições, é não fazer o que é suposto. Ou então fazer. Não lhe digam, por exemplo, que parar é morrer. “Gosto muito de trabalhar e continuo a trabalhar, mas às vezes também gosto muito de não fazer nada e não me sinto a morrer. É um prazer como outro qualquer.” Mas também diz que os prazeres mudam com a idade.

Não parece nada ter a idade que tem. O elogio que lhe dirigem com frequência encerra, no fundo, o velho preconceito: a quatro meses dos 70 anos, é suposto ser-se quebrada e frágil, uma pensionista gentil, composta e pouco atraente, apagada de uma cultura que traduz juventude por beleza e beleza por valor. Que considera cabelo grisalho igual a fraqueza, surdez, raciocínio lento. Os 50 são os novos 30 ou os 60 os novos 40, ouve-se frequentemente. Mas vitalidade, paixão, ambição, garra, sexo, atrevimento ou agressividade são palavras nunca dedicadas a mulheres de certa idade. Helena Isabel é francamente bonita. Segura e afirmativa mais do que nunca, doce e tranquila como sempre foi. Diz: “Conheço tão bem o estereótipo. Estou a fazer um papel assim para uma telenovela que está a ser gravada. A tal mulher de certa idade, invisível”. Se gosta de dar corpo ao estereótipo, pergunta-se. E ela, sorrindo: “Tivesse 50 anos e estaria a sentir-me miserável. Nesta idade, não me importo. Sim, até gosto”.

Estamos no 3.º andar do n.º 43 da Rua do Loreto, no Chiado, em Lisboa. Traça do início do século, o Wine Post é um espaço de eventos vínicos e jantares acompanhados por fado e jazz, que Helena costuma frequentar. Ali, sente-se em casa. Veste um vestido envelope. Azul-petróleo sobre o veludo castanho do sofá.

Envelhecer bem, o que é isso? “É não ficarmos agarrados ao passado, porque bom ou mau é isso mesmo, passado. É não ter medo do futuro. É concentramo-nos no mais importante – o dia de hoje. É rejeitar a ideia ‘no meu tempo’. É acompanhar os tempos – as novas tecnologias, a música, a literatura, a arte do nosso tempo. O nosso tempo é hoje, seja qual for a idade.” Não que envelhecer seja agradável. “Não é. Não me venham dizer que cada ruga é uma história de vida.” As histórias de vida, privadas, íntimas, não as quer marcadas na cara, “à vista de todos”. Ri e insiste. Ter 69 anos é fazer o que lhe apetecer, “mesmo que seja ficar em casa, sem fazer nada”. Às vezes, dizem-lhe “tens de sair”. Ela responde, vírgula. Ter 69 anos é não aceitar imposições, é não fazer o que é suposto. Ou então fazer. Não lhe digam, por exemplo, que parar é morrer. “Gosto muito de trabalhar e continuo a trabalhar, mas às vezes também gosto muito de não fazer nada e não me sinto a morrer. É um prazer como outro qualquer.” Mas também diz que os prazeres mudam com a idade.

“Como pode um jovem de 17 anos como eu, de repente ter 81?” Helena Isabel entende o lamento do biólogo britânico Lewis Wolpert (1929-2021), prova da capacidade de mantermos relações íntimas com versões mais jovens de nós mesmos. Porém, não partilha em absoluto a mesma experiência. “Não tenho a cabeça de uma mulher de 30 anos. Nessa idade, desejava fazer coisas de que hoje seria incapaz. Body jumping, por exemplo. Hoje, nem pensar. Hoje, sinto-me com a cabeça de uma mulher da minha idade”. Por vezes, com o corpo também. “Às tantas, começa a custar-nos fazer certas coisas. Há quatro ou cinco anos comecei a perder equilíbrio, por exemplo. Já não faço a espargata como dantes fazia. É uma chatice? É, mas, pensando bem, não é assim tão importante. Não vamos ficar infelizes por causa disso.”

Velha de mais a partir de quando?

Em si gosta sobretudo do cabelo, longo – a mãe sempre dizia que a partir dos 40 deve ser curto – e das pernas esguias, que hoje protege. Helena Isabel não gosta de “dar nas vistas”. É tímida, evita roupa que atraia a atenção. “Em nova, era mais fashion addict. Agora, tento refrear-me.” Quando se sentiu velha demais para uma minissaia? “Quando deixei de me sentir bem com ela. Terá a ver com a idade, não digo que não. O certo é que seria incapaz de ir de calções para a rua. Isso é para as miúdas. Já os usei, e muito, nos anos 1970, mas não tenho saudades. Tudo tem a ver com sentirmo-nos bem ou mal.”

A experiência e o meio em que se move dizem-lhe que a exceção é bem-vista. Serve até como exemplo para mulheres mais jovens. “Há hoje uma certa admiração pelas pessoas mais velhas que gostam de sair, de se divertir, de dançar todas as noites. Veja o caso da Ana Salazar. Foge a todo o estabelecido, é uma mulher extraordinária, sobre quem nunca ouvi uma opinião negativa.” Há dias, numa entrevista, o filho e primeiro admirador, o músico Agir, disse algo que a deixou orgulhosa: “Com uma mãe tão gira não sou filho dela de certeza. Devo ter sido apanhado no lixo”.

“Se és mulher, não envelheças. Envelhecer é um pecado. Serás criticada, humilhada e definitivamente não passarás nas rádios”, denunciou Madonna, 63 anos, em 2017. Um ano depois, Cher, 75 anos, no Twitter, dizia o mesmo, por outras palavras: “Um tipo perguntou-me se não me considerava demasiado velha para correr pelo palco e cantar rock’n roll. Respondi: não sei. Porque não pergunta ao Mick Jagger?”.

O envelhecimento penaliza sobretudo as mulheres. Helena Isabel sabe-o bem. Aos 40 anos, passou a interpretar papéis em que fazia de mãe de adultos. Pouco depois, interpretava o papel de avó de adultos. “Meryl Streep, numa entrevista, deu conta dos problemas que teve por acharem que com 40 e tal anos era muito velha para contracenar com Clint Eastwood, de 60 e tal, em ‘As pontes de Madison County’”, exemplifica.

Hollywood está cheio de pares cinematográficos tão bizarros quanto uma Catherine Zeta-Jones, de 30 anos, e um Sean Connery, de 69 anos, em “A armadilha”. Aos 43, a atriz Jamie Denbo foi considerada muito velha para interpretar a mulher de um homem de 57 anos e ter um filho de 18. Maggie Gyllenhaal denunciou discriminação semelhante e Helen Mirren resumiu o clássico idadismo do “star system” vigente em duas linhas: “Todos nós assistimos a que enquanto James Bond ficava cada vez mais geriátrico as suas namoradas ficavam mais jovens. E isso é muito irritante”.

Para a atriz portuguesa, “tem tudo a ver com uma sociedade criada nesse sentido. As mulheres sempre foram subalternas. Sempre estiveram atrás do homem. Durante anos e anos, as mulheres não tiveram direitos. Eram objetos que valiam pelo aspeto”. Também em Portugal, à medida que envelhece, uma atriz perde trabalho. “Vivi essa realidade que, diga-se, não penaliza os homens em geral e os atores em particular.” Não podendo ficar parada “por todos os motivos e mais um”, reinventou-se. “Abri uma loja de acessórios e até escrevi um livro.”

Uma mulher que deixa de atrair sexualmente torna-se transparente? “Tenho essa noção. Uma vez ouvi um homem dizer de uma mulher da idade dele ‘aquela está fora de prazo’. Fiquei chocadíssima e não pude ficar calada. Os homens olham pouco para eles. Se muitos dos que nos apontam defeitos se olhassem, e analisassem devidamente, aos espelhos creio que não criticavam tanto.” A atriz propõe o antídoto: “Não devemos centrar o nosso mundo nos outros. Temos de o centrar em nós. Eu visto-me para mim. Arranjo-me para mim. É afirmando-nos perante os outros que deixamos de ser transparentes”.

Foi sempre uma mulher bonita. “Os homens foram olhando. Mas isso foi sempre complicado para mim, porque nunca soube se olhavam por me reconhecerem da televisão ou se por me acharem algum interesse. Nunca consegui perceber.” A televisão e o reconhecimento da beleza física chegaram cedo no percurso da atriz e cantora. De uma família da classe média das avenidas novas, os pais, um empresário e uma assistente de bordo, tentaram convencer a adolescente a seguir uma carreira na TAP. Mas Helena Isabel, aluna da Alliance Française e do British Council, estava fascinada pela representação. Apareceu nos ecrãs televisivos com 14 anos (no programa de humor e variedades “Riso & Ritmo”, de Francisco Nicholson) e foi uma das cinco finalistas do concurso Miss Portugal de 1971. Tinha 19 anos e fazia sonhar corações.

Há uma idade para desistirmos de nos apaixonar?

“Quando se atinge determinada idade, o amor não é a mesma coisa, as paixões não são iguais. É mais difícil a uma mulher da minha idade apaixonar-se ou interessar-se por alguém. Mas nem fecho a porta nem sofro se esse alguém não aparecer.” Porque, acrescenta, “há vida para lá disso”. Lembra que já foi nova, que já namorou, que já casou, que já se divorciou e voltou a namorar. “Sem preconceitos”, admite que não há prazo para o amor e para a paixão, mas estabelece linhas. “Não consigo imaginar-me a ter uma relação com uma pessoa com menos 20 anos de que eu. Sinceramente, não. Mesmo sendo uma pessoa especial, a idades muito diferentes correspondem interesses muito diferentes.”

Depois há o sexo. “Que também não é igual. Não é igual ao que se tem aos 20 ou 30 anos. Mas não quer dizer que seja pior ou melhor.” Confessa que a idade já lhe foi mais pesada. “Sempre fui muito consciente do corpo e a consciência corporal, a partir de certa idade, incomoda. Aos 50 anos, sentia-a bem mais. Foi uma fase complicada. Tinha umas inseguranças que hoje não tenho. Eis algo de bom que ganhei com a idade – segurança. Hoje estou segura de mim e do que posso fazer. O que me incomodava aos 50 e tal anos neste momento, por estar tão de bem comigo, não me interessa. Quero lá saber.”

A menopausa precoce correu bem. “Passei lindamente, mas mesmo assim mexeu com a cabeça. Até lá sentia que ainda tinha uns resquícios de juventude e que a partir dali o tempo começava a ficar mais curto. Que ia viver menos do que já tinha vivido e por isso pesou. Mas, como em tudo e com tudo, vamo-nos habituando e cheguei a esta idade já preparada.”

Hoje, lamenta não ter tempo para fazer tudo o que gostava. “Ir viver para outro país, fazer todas as viagens que lhe faltam.” A morte não a assusta. “Os meus pais morreram muito cedo. O meu pai com 58 anos e a minha mãe com 69, de repente, com um AVC. Só espero não ter nenhuma doença incapacitante. Gostava de morrer de repente, também. É uma ambição.”

Quer morrer “cheia de saúde”. Independência, diz, é o traço de personalidade que melhor a define. É por isso natural que a aflija a doença. “Não penso, não quero pensar. É um pensamento que afasto.” Não faz planos. “Nunca fiz. Nem na minha vida pessoal, nem na carreira. As oportunidades foram aparecendo. Há quem programe todos os passos. Como sempre precisei do trabalho para viver, nunca planeei nada. Recusei trabalhos apenas quando considerei que não era capaz de os fazer ou porque, não gostando, iria sentir-me muito infeliz. Mas foi uma carreira nada planeada. O mesmo aconteceu com a minha vida: foi acontecendo.”

Da vida, ressalta duas fases, “as mais felizes”. “Os meus 20, 21 anos. Estava a viver o 25 de Abril e esse foi um marco fundamental na minha vida. Vivia num país a preto e branco e passei a viver num país a cores, onde todos os dias aconteciam coisas fantásticas. O país não parava e eu também não. Fase maravilhosa. Uma cidade onde nada acontecia que de repente fervilha de acontecimentos.”

O casamento com Paulo de Carvalho, com quem se cruza precisamente a 7 de março de 1974, no Festival da Canção – ele com o histórico “E depois do adeus” e ela com “Canção solidão” – é a outra “fase muito feliz”. Da relação, que duraria 16 anos, nasceria o único filho.

Os dias de Helena Isabel nunca são iguais. Há semanas em que grava apenas dois dias e outras em que faz o pleno. “Trabalho muito duro das oito da manhã às sete da noite, fora os textos que levamos para casa para decorar.” Oito horas de sono, longas caminhadas, trabalho de ginásio e aulas online são a receita para não perder a forma e recuperar do cansaço acumulado durante os meses de gravação. “Trato melhor de mim nas fases em que não estou a gravar. Só então tenho tempo para limpezas à pele e hidratação.” Poupada a considerações desagradáveis sobre a idade, há, no entanto, uma “maldade” que a desgosta e irrita. “As pessoas acham que estou toda operada. ‘Está toda operada, assim também eu’. Já ouvi isto muitas vezes. O que não é de todo verdade. Há muita maldade, sobretudo entre as mulheres, agora potenciada pelas redes sociais.”

Uma cirurgia “é uma coisa muito particular e intransmissível”. Não tem nada contra, mas não revela se já fez. Assusta-a a possibilidade de perder a expressão do rosto. “Nunca deixaria que me alterassem a expressão. Que me colocassem bochechas ou aumentassem a boca. Não quero uma boca de pato.” Para tudo “é preciso bom gosto e bom senso”. Insiste: “Nada tenho contra cirurgias ou contra o botox. Defendo apenas que deve ser feito com peso e medida. Não posso ficar com a testa sem rugas. É essencial poder franzir as sobrancelhas. Não posso ficar sem uma ruga”. Desde logo porque gosta de caras naturais. Considera a busca da perfeição física “um disparate que começa cada vez mais cedo”. Frisa: “Há quem comece a mexer na cara aos 20 e poucos anos. Corrigir um efeito grave, um nariz grande de mais, aceito. As pessoas devem sentir-me bem na pele que têm. Mas mais do que isso é erro. Pergunto-me o que farão quando chegarem à minha idade”.

70 anos em fevereiro de 2022. “As mulheres de 70 anos cada vez estão mais vivas. Mas não podemos olhar só para Lisboa. Já evoluímos muito e vemos isso todos os dias, até na ‘vox populi’, mas ainda há muito caminho a fazer.” Por isso é feminista. “Sempre fui.” Estreou-se na Companhia de Teatro Alegre, sediada no Teatro Variedades, em Lisboa, tinha então 17 anos, com uma peça chamada “Os direitos da mulher”.

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