Não recebem ordenado nem pagam segurança social, mas fazem parte da organização, como todos os trabalhadores. Cada vez mais empresas portuguesas adotam animais de companhia, muitos resgatados da rua. Garantem que isso é bom para os bichos, mas também para os funcionários.
Na vila de Fajões, em Oliveira de Azeméis, pensaram que Sara Pinto teria perdido o juízo. Por que razão andaria ela a correr pelas ruas, madrugada dentro, a gritar “Feijão, Feijão”? O que a movia nessa noite de 3 de setembro não era loucura alguma, mas antes afeto. Afeto ao rafeiro chamado Feijão, pelo qual é uma das responsáveis na fábrica da Silampos. O bicho estava desaparecido havia três dias e ela consumida pela preocupação.
Foi Filipa Campos, diretora de marketing e neta do fundador, que o levou para a fábrica há quase dez anos. Foi para fazer companhia a Lara, uma cadela São Bernardo resgatada de uma vida de maus-tratos na vila de Cesar, junto à fábrica. Mesmo depois de tratada, hidratada e alimentada, Lara estava abatida. “Eu e o meu irmão João pensámos que talvez estivesse triste por não haver mais nenhum animal e fomos ao canil para lhe arranjar companhia”, conta a responsável. Como a Silampos fabrica louça para cozinhar em aço inoxidável, quiseram dar ao novo animal da fábrica um nome ligado ao mundo da cozinha. Ficou Feijão. Ele e a cadela São Bernardo Lara foram bons amigos durante quatro anos, até Lara morrer de velhice.
Feijão anda habitualmente por todo o terreno da fábrica e, apesar dos portões estarem sempre abertos, demonstra pouca vontade de sair. “Mas naquele dia fugiu à minha frente, assustado com o temporal. Não o consegui agarrar. Fiquei muito preocupada”, recorda Sara Pinto, de 42 anos. “Quando ligaram a dizer que o tinham visto em Fajões, vesti um fato de treino, pus umas sapatilhas e lá fui eu. Andei a chamá-lo, mas não o vi. Depois decidi fazer o percurso de um quilómetro até à fábrica, a pé, para ver se ele conseguia seguir-me o rasto.” Se foi isso que Feijão fez, não se sabe, o certo é que horas depois, pelas cinco da manhã, depois de três dias desaparecido, o patudo chegou à fábrica. Foi recebido com um abraço pelo guarda-noturno, que espalhou a boa nova.
O rafeiro tem um contacto mais próximo com Sara Pinto e Rosa Henriques – responsáveis por ele e que lhe tratam da alimentação, dos banhos e das idas ao veterinário -, bem como com os guardas da portaria, a quem faz companhia, sobretudo durante à noite. “Mas ele aqui tem 200 amigos, que é o número de funcionários que temos”, diz Filipa Campos. “É muito acarinhado por todos e faz parte da família Silampos.” Na hora da pausa, muitos trabalhadores pegam na merenda e sentam-se em grupo com Feijão de volta deles.
Esse é um dos superpoderes dos animais nas empresas: o efeito agregador. “Ter um animal numa empresa, além de requerer a prática de competências como a organização, comunicação e responsabilidade no cuidado ao animal, tem efeitos benéficos a nível relacional”, garante a psicóloga clínica e da saúde Daniela Esteves. Os momentos de atenção ao animal, explica, “traduzem-se noutros temas de conversa para além do trabalho, o que fortalece os relacionamentos interpessoais. Consequentemente, dá lugar a momentos mais alegres e descontraídos, pelo que o humor geral será mais consistente ao longo do dia”, esclarece.
Uma Câmara amiga dos animais
O estudo “Pets at Work 2017”, conduzido pela Ipsos, que envolveu a participação de 3221 pessoas, tutores de cães de oito países europeus, incluindo Portugal, conclui que quatro em cada dez (39%) donos de cães optariam por trabalhar numa empresa onde existe a possibilidade de levarem o animal de estimação para o trabalho. E cada vez mais empresas, no âmbito da conciliação entre vida profissional e pessoal, oferecem essa possibilidade. A Câmara Municipal de São João da Madeira é uma delas e pelo menos três funcionários levam os cães para o local de trabalho – todos os dias ou alguns dias por semana. Mas o Executivo camarário, liderado por Jorge Sequeira, foi mais longe: desde outubro de 2018 vivem no edifício, em permanência, dois gatos resgatados.
A sugestão foi do próprio presidente da Câmara, depois do tema dos direitos dos animais ter sido debatido numa Assembleia Municipal. “Porque não dar o exemplo, adotando um gato?”, perguntou o autarca. “Porque não adotar dois?”, acrescentaram Irene Guimarães e Paula Gaio, vereadoras da Educação e Ação Social, respetivamente.
Agora, quase três anos depois, quando chega ao gabinete, no 6.º piso, Irene Guimarães já tem Sanjo e Oliva à espera. “Temos o ritual do miminho matinal. Dou-lhes sempre um biscoito e umas festinhas”, revela a vereadora da Educação. “São amorosos e muito silenciosos. Às vezes ouvimos as unhas no chão, outras vezes sentimos as patinhas nas pernas. A mim relaxa-me muito a presença dos animais”, confessa Paula Gaio. A vereadora da Ação Social assegura que os bichanos são um sucesso, dentro e fora de portas. “Acho que fortalecem os laços entre as pessoas. Há funcionários de outros pisos que vêm aqui todos os dias para lhes dar umas festas ou trazer brinquedos. E quando fazemos atendimento aos munícipes as pessoas ficam encantadas com os gatos. Mesmo quando há um clima de preocupação, ele acaba por se atenuar um pouco”, salienta a vereadora da Ação Social.
Dos imensos benefícios da interação com os animais, a psicóloga Daniela Esteves destaca precisamente esse efeito relaxante e tranquilizador, com a diminuição dos níveis de cortisol – hormona associada ao stress – e o aumento dos níveis de serotonina e dopamina – hormonas associadas ao bem-estar e à sensação de prazer. “Os estudos também têm demonstrado que estar em contacto com animais pode reduzir os sintomas de ansiedade e de depressão.”
No “T6” – como lhe chamam – do 6.º piso, os bichanos andam livremente pelos gabinetes, mas têm espaço preferidos. “Gostam muito do gabinete da vereadora Irene, que lhe dá muitos mimos, e do gabinete de comunicação, onde se sentam e deitam em cima das pilhas de jornais”, conta Paula Gaio. Do que Sanjo e Oliva também gostam é de armários. “Já aprenderam a abri-los com a patinha e, às vezes, quando algum desaparece, damos com ele lá dentro aninhado.” Outras vezes, desaparecem, não muito misteriosamente, as borrachas da secretária de Paula Gaio. “Tenho de as deixar dentro da gaveta durante a noite”, conta a rir. Mas essa é a única travessura que fazem, são animais tranquilos e bem comportados. “Eles respeitam o nosso espaço e nós o deles. São muito independentes e vivemos em perfeita harmonia”, frisa Irene Guimarães. A mensagem que esperam transmitir é simples: quando existe vontade é possível. “Nós demos o exemplo e a expectativa é que outros o possam seguir. Porque nós melhorámos a vida destes animais, mas eles também melhoraram a nossa”, resume.
Família alargada numa empresa familiar
A primeira foi a Liti. Gabriela e Alda Gonçalves, mãe e filha, proprietárias da Litigonçalves, empresa de São Domingos de Rana, Cascais, que fabrica portões e caixilharia, foram buscá-la ao canil de Sintra, há nove anos, com o objetivo de terem um cão de guarda nas instalações da empresa. A cadela cumpria a sua função e a empresa estava mais do que servida de vigilante noturna. Mas então, há cinco anos, apareceu-lhe o Farrusco à porta. “Estava longe de querer aqui mais um cão, mas ele estava muito ferido e tive pena dele. Acabou por ficar”, assinala Gabriela Gonçalves, de 68 anos.
A história podia ter ficado por aqui. Mas não ficou. “O Farrusco engravidou a Liti”, recorda Gabriela. “Tiveram nove cães e consegui dá-los todos. Mas, há três anos, tiveram outra ninhada, desta vez com 11 cachorros.” Gabriela deu-os todos, menos uma: a Rosquinhas. E assim a família canina na Litigonçalves, cresceu mais uma vez. Por fim, a filha Alda, que adora gatos, fez mais uma aquisição: o gato Black – que a dona garante ser o animal mais inteligente de que há memória e tem hábitos bem definidos. Todos os dias, às 16 horas em ponto, sai de onde está a dormir e vai para junto do pratinho onde lhe dão comida: se se atrasam, bate com a pata na gamela, em sinal de protesto. Já a água, não a bebe do prato, só de uma pequena fonte ou diretamente da torneira do lavatório.
Farrusco e Black têm uma posição privilegiada: eles são os únicos que têm acesso ao escritório onde Gabriela e Alda trabalham. Black passa os dias deitado numa cadeira perto das donas, a dormitar. Farrusco faz o mesmo, na sua caminha no chão. Quando algum cliente entra no escritório, Farrusco ladra – mas não morde. O bicho tem uma particularidade: gosta de companhia humana, mas só feminina. “Tem muito medo de homens porque foi maltratado por um”, realça a dona.
Apesar do amor que tem pelos animais, Gabriela não tem nenhum em casa e é rápida a explicar porquê: cães enfiados num apartamento, sem espaço, não. “Aqui eles têm um espaço muito grande, podem correr e brincar à vontade. Entrar e sair.” Além disso, há outro argumento de peso para ter os animais no local de trabalho e não em casa: “Estou 12 horas por dia aqui, na empresa. Em casa estavam sozinhos o dia todo, não me parece bem. Aqui têm companhia”.
O veterinário Ricardo Vintém considera que, no geral, “ter animais no local de trabalho é excelente tanto para os animais como para as pessoas”. Refere que os gatos, por serem mais tranquilos e independentes, costumam adaptar-se melhor. Os cães, para se ajustarem ao espaço, têm de ter temperamento calmo ou aprender a tê-lo. “Os mais efusivos e irrequietos podem precisar de treino para estar num escritório. Mas isso até é positivo, porque a pessoa sente a responsabilidade de o educar.” E o veterinário não é só um apoiante “teórico” dos animais no local de trabalho. É um praticante convicto.
O que os animais nos ensinam
A Nicas foi um dos primeiros seres de quatro patas a entrar na clínica veterinária Primavet, em Agualva (Sintra), quando Ricardo Vintém abriu o espaço, em 2006. O diretor clínico ficou com a gata bebé, que era da avó, mas ela era muito arisca e reservada. Levou-a para casa, mas ela não gostou da companhia de Johnny, o gato que já lá morava. Ricardo decidiu levá-la para a clínica.
Continua a ser um bicho de personalidade reservada e gosta de estar em paz: passa grande parte do tempo debaixo do quente do ar condicionado, no gabinete de Ricardo, ou sentada junto ao computador, na receção. Mas se vê um gato em apuros, entra em ação. “Nós costumamos dizer que ela é a provedora dos direitos dos animais da clínica”, brinca Ricardo Vintém. “Quando vê um gato assustado, ou a ficar agressivo, vem morder as pernas dos veterinários e dos assistentes.”
Mais impressionante é a história de Simba, que lhe faz companhia desde 2019. Ele foi levado à clínica por uma mulher que o encontrou na rua, com apenas 15 dias, muito ferido em ambos os olhos. Achava que a solução seria eutanasiar o animal, para o poupar ao sofrimento em que estava. Ricardo operou-o e adotou-o. “O Simba tem sido uma experiência surpreendente para todos nós. Mesmo sendo veterinário, vendo centenas de animais, não esperava isto”. “Isto” é vivacidade, inteligência e sociabilidade do animal: salta do chão para as cadeiras e das cadeiras para o chão, vai para os canteiros na rua à procura das suas plantas preferidas para roer, corre atrás de moscas e de papéis. Ninguém diria que ele não vê. “O Simba toca muito as pessoas e tornou-se numa espécie de embaixador da clínica. Os miúdos da vizinhança vêm bater à porta para o ver e dar festas. Nunca tinha tido um gato cego e ele ensinou-nos muito.”
A verdade é que todos os animais ensinam, se estivermos dispostos a aprender. “Os animais são um grande suporte emocional das pessoas. As dificuldades de relação que as pessoas sentem umas com as outras não têm lugar na relação com os animais”, sustenta o médico veterinário. Há quem diga “Quanto mais conheço as pessoas, mais gosto dos animais”, mas Ricardo Vintém tem outro mote: quanto mais conhece e aprecia animais, mais conhece e aprecia também os donos humanos. “Na relação com um animal, não há papéis sociais a serem cumpridos, não há máscaras. Há uma interação mais pura entre dois seres que nos permite crescer emocionalmente”, defende. E conclui: “Os animais tornam-nos mais humanos”.