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Gouveia e Melo: “Se Deus me der essa honra, quero morrer militar”

Fotos: Diana Quintela/Global Imagens

Lisboa, 31/08/2021 - Entrevista com o Vice-Almirante Henrique de Gouveia e Melo (Diana Quintela / Global Imagens)

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Assumiu a coordenação da task force do Plano de Vacinação Contra a Covid em fevereiro de 2021. Sete meses depois, com a percentagem traçada para a imunidade de grupo garantida, o submarinista Gouveia e Melo faz o balanço de uma das missões mais importantes da sua vida e reflete sobre o capital de simpatia e confiança conquistado. Os portugueses conhecem-no pelo nome de “almirante das vacinas”.

No antigo edifício do comando naval, em Oeiras, sede da task force, o gabinete do coordenador tem vista para o mar. É a olhar o mar que vai conversando com a NM, sempre com alguma cautela, mas não deixando respostas por dar. “Gosto pouco de falar de mim. Sabe, sou muito aborrecido.” Um geek, diz, apontando para a estante que acolhe a coleção de carrinhos infantis, brinquedos que programa e que podem transportar cargas letais. Abre depois o computador para mostrar mais da paixão pelas matemáticas, agora em forma de gráficos de incidência que fez e programou, roteiros essenciais para seguir a evolução da pandemia. No gabinete há quatro pequenos quadros. Num deles, um homem carrega uma cruz, inside joke destinada a um departamento que lhe deu problemas. Ao lado, a ilustração de um perfil publicado na “Notícias Magazine” pouco depois de assumir o comando da task force, um lobo do mar com traços de Haddock. Em moldura semelhante, está precisamente a carismática personagem de Hergé, em Tintim, dono da mais fabulosa coleção de insultos, a vociferar “calão naval usado para pôr esta gente na ordem”. E sorri. Por último, destacado, um desenho infantil, oferecido por uma criança, dois meninos e uma palavra: “Obrigado”.

Em Portugal, uma farda põe muita gente em sentido?
“Pôr em sentido” é uma expressão que lembra coisas antigas, hoje em dia já não existe. As pessoas têm respeito por quem anda fardado, é verdade, mas é normal que o tenham. Representa o respeito por uma instituição.

O que lhe parece que teria acontecido se fosse um político a dizer “colinho dá a mamã em casa”?
Acho que lhe ficava mal dizer isso porque há, nesse caso, uma etiqueta de vocabulário a cumprir. Acredito que levássemos a mal. Eu senti-me completamente à-vontade para o dizer. De tal forma que voltava a dizê-lo.

Goza de boa imprensa desde o primeiro dia. Foi poupado pelos portugueses mesmo quando surgiram alguns problemas (filas e atrasos de várias horas). Que explicação encontra para essa boa vontade?
A minha comunicação foi sempre honesta, genuína, direta e simples. Nunca fugi a explicar a situação, fosse boa ou má. As pessoas percebem quando do outro lado está uma pessoa genuína, alguém que diz o que tem a dizer. É essa a explicação que encontro.

Avisou o poder político de que consigo as regras seriam essas?
As pessoas conheciam-me. Sempre fui assim, quer na vida pessoal, quer na profissional. Penso até que terá sido por ser assim que me nomearam.

Nunca foi pressionado para dourar a pílula?
Deram-se sempre liberdade total. Liberdade que implica, naturalmente, responsabilidade. Para o bem e para o mal, era responsável por tudo o que comunicava. Nunca senti pressão, nunca me disseram “não faça ou diga isto”. A comunicação foi sempre muito livre e espontânea também por isso.

Portugal em matéria de vacinação esteve sempre acima da média europeia, mesmo no tempo do antecessor. A que acha que se deve?
Quando o processo se inicia, há poucas vacinas e quando há poucas vacinas é difícil estar mal ou bem. Nessa fase, estávamos todos dentro da média. Era preciso vontade de não vacinar para que um país baixasse. A diferenciação dá-se, depois, com o avançar do processo e por um conjunto de circunstâncias relacionadas com os reguladores, as autoridades de saúde, os coordenadores das task force. Conforme o processo foi avançando, as diferenças foram-se acentuando.

O que pensava e o que pensa agora do Serviço Nacional de Saúde?
Nas duas situações mais críticas que vivi, recorri ao SNS e fiquei com muito boa impressão. Agora, trabalhando tão de perto, tenho, é claro, um conhecimento superior, quer das fragilidades, quer das potencialidades. Uma coisa é óbvia, neste momento: neste combate de mais de ano e meio, quer quando teve de socorrer pessoas nos hospitais, quer na fase dos rastreios, quer, agora, na vacinação, o SNS mostrou grande capacidade de organização e resiliência.

Que quota parte de mérito atribui ao SNS no sucesso da vacinação?
Uma grande parte. O maior reagente desta reação foi o SNS.

Como foi a relação de um militar com um sistema civil, culturalmente muito diferente?
Depois da fase de adaptação das duas culturas, o tempo uniu-nos num objetivo grande: salvar os portugueses o mais rapidamente possível através do processo de vacinação. Não há cola mais resistente. Uma tarefa tão relevante leva à união das pessoas de boa vontade e de caráter.

Que discurso usava nos “balneários”?
Não sou muito de fazer grandes discursos. Sou mais de atribuir responsabilidades. Expliquei às pessoas o que era necessário fazer, tentei convencê-las das virtudes de determinado método ou aproximação a um problema, discutindo à exaustão sempre que foi necessário. Essa discussão até à exaustão foi o campo magnético que orientou os intervenientes numa determinada direção.

Que quota-parte de responsabilidade no sucesso atribui a Marta Temido?
Enquanto militar, e dependendo de uma superior hierárquica, não posso, não devo e nunca irei comentar a senhora ministra. Mas posso falar da nossa relação pessoal e de trabalho. E essa foi sempre muito boa, desde o primeiro dia. A senhora ministra sempre me apoiou, sempre mostrou uma elevada capacidade para me ouvir e compreender e me ajudar a superar as dificuldades, conforme foram aparecendo.

Merece uma condecoração?
Não dou esses recados. Porque não me fica bem, mas também porque acho que não devo fazê-lo. A senhora ministra tem uma testemunha que é difícil de enganar: o povo português. Melhor do que uma medalha é o reconhecimento do povo português ao trabalho de todos nós – e, de entre todos nós, em grande parte, à senhora ministra da Saúde – que conta. A senhora ministra passou dois anos muito difíceis.

Antes destes dois anos, que imagem tinha dela?
Não sou aquele cidadão que olha para a cara de uma pessoa e tira conclusões. Quando conheço uma pessoa, dou toda a abertura. A senhora ministra está no patamar político. Eu num patamar essencialmente prático – uma missão e uma tarefa relativamente bem estabelecidas e delineadas -, e com o objetivo de fazer essa tarefa com eficácia.

Num patamar parecido com o de Graça Freitas.
Sempre ouvi a doutora Graça Freitas, ela sempre me ouviu, trocámos opiniões, algumas vezes divergimos, mas isso é natural. A maior parte das vezes convergimos.

Quer dar exemplos de divergência?
Não interessa. Nós tentámos os dois e o Rui Ivo, da área do medicamento, fazer o melhor que sabíamos a cada momento, com perspetivas diferentes, claro. A minha, perspetiva militar e mais pragmática, e a deles, mais direcionada para a defesa da saúde pública da população. Cada um fez o seu papel e demo-nos sempre muito bem.

Estava desde novembro de 2020 na task force. Quando é que percebeu que, da forma que estava delineado, o processo ia correr mal? Como era a relação com Francisco Ramos?
Não vou fazer referência ao meu antecessor. Dei-me muito bem com ele enquanto pessoa. É um bom ser humano que tentou fazer o melhor que podia. Arrancou com o processo, e essa é sempre uma fase difícil. Ele passou isso e não tenho nada a dizer. Claro que na minha perspetiva mais militar e pragmática havia que se percorrer alguns caminhos.

Já foi felicitado por ele?
Por diversas vezes.

Assumiu três prioridades. A primeira foi reforçar a organização do processo. Qual foi a medida mais difícil de implementar?
Criar um sistema nervoso central que tivesse os indicadores corretos e que pudesse contribuir para os agendamentos, convocatórias e perceção do que estava a acontecer a cada momento.

Porquê tanta dificuldade?
O sistema de saúde não estava preparado para uma operação centralizada. O sistema de saúde era um sistema essencialmente descentralizado e nós fizemos um processo de vacinação que obrigava a controlo e comando centralizados. Esta situação obrigou a que fosse reinventado.

Encontrou muitas resistências?
Diria, antes, dificuldades. Porque as capacidades disponíveis não estavam vocacionadas para o que se pretendia. Foi necessária uma grande adaptação e as adaptações, em pleno combate, são mais difíceis de fazer.

Contou com que apoios?
Todo o apoio do Ministério da Saúde. E uma excelente relação com as ordens – médicos, enfermeiros, farmacêuticos – e as associações de doentes. Foi essencial.

A segunda prioridade foi investir na capacidade de resposta.
Com o apoio extraordinário dos autarcas, pudemos passar dos centros de vacinação nos centros de saúde para os centros de vacinação rápida, em diversos pavilhões. Foi essa medida que nos permitiu passar de 30 ou 40 mil vacinas por dia, em média, para as 100 mil ou 150 mil.

Em ano de eleições autárquicas, apercebeu-se de algum aproveitamento eleitoral?
De forma evidente, não houve nada escandaloso. Os autarcas que participaram, fazendo eles também um grande esforço, deram um contributo essencial a este processo. É natural que beneficiassem desse esforço que fizeram. Mas nunca vi nada de escandaloso.

E se tivesse visto?
Falaria com o senhor presidente e dir-lhe-ia que, no meu entendimento, passaram as medidas.

Terceira prioridade: responsabilizar as estruturas intervenientes. É impiedoso, avisou, com os malandros. Fomos assim tão malandros?
Foi apenas um aviso à navegação. No fim de contas não fomos assim tão malandros. Se tal se deveu ao aviso ou se resulta da nossa natureza? Eu julgo que vem da nossa natureza. A maior parte das pessoas são boas pessoas e querem o bem. Faltava-lhes, se calhar, um bocadinho de ordem. Alguém que estabelecesse a divisória entre o que se pode ou não fazer. Feito isso, as pessoas reagiram muito bem. Houve um ou outro incidente, nada que me tivesse tirado o sono.

No caso do Cerco, no Porto, não acha hoje que pode ter sido excessivo?
Não sei se a senhora tem culpa, não sou eu que tenho de averiguar. Mas houve uma iniciativa não programada que não podia aceitar.

Se tivesse sabido, teria autorizado?
Não teria. Estávamos numa fase em que isso quebrava a regra das faixas etárias.

O que aprendeu ao longo destes meses?
Cheguei a este processo com 60 anos de idade e uma carreira de 42 nas Forças Armadas. Mas aprendi. Aprendi a trabalhar com uma estrutura não tão hierarquizada como aquela em que cresci, a negociar mais, a ouvir até à exaustão outras pessoas para as conseguir convencer até a exaustão.

Aprendeu a ser mais paciente.
Aprendi a ser mais paciente, sim. Nós, militares, somos postos sob pressão, estabelecendo metas. No final de uma meta tem de haver decisão. O que muitas vezes encontrei foi a ausência dessa urgência de decisão. As pessoas enrolavam-se em muitas discussões, discussões intermináveis que, entretanto, faziam passar o prazo de decisão. Ora, quando se passa o prazo, a decisão está tomada e é sempre negativa. A grande dificuldade foi mudar esse mindset. Não podemos esperar indefinidamente por uma informação que pode aparecer passados cinco meses ou mais.

Fala-me dos momentos de revés.
Nunca me deixei chegar a uma situação de revés. Planeei sempre alternativas e nunca me senti encurralado. Mas houve momentos mais difíceis em que tive de me afirmar e dizer “é assim, eu sou o responsável, é por esse caminho que vamos”.

Pode dar exemplos?
Prefiro não falar nesses momentos. Momentos em que tive de me impor ao sistema.

Em todos esses momentos teve o apoio de Marta Temido?
Se não tivesse tido esse apoio não teria sido possível impor-me. Tive sempre o apoio de todos os ministros.

Que lições devemos todos tirar destes dois anos?
Uma lição de união e de comunidade. Comunidade no sentido em que nenhuma pessoa se salva sozinha, no sentido em que não podemos querer mais para nós de que para os outros.

18 mil mortos. É bom mesmo que tenhamos tirado lições.
Tive grandes lições de humildade, de entrega, de espírito de missão. Vi pessoas esgotadas que continuavam a trabalhar. Vi jovens a vacinarem-se porque queriam fazer o que era melhor para todos. Um deles disse-mo, mesmo depois de ter passado pela pressão da manifestação dos negacionistas. Foi comovedor.

Comoveu-se muitas vezes?
Costumo dizer que tenho duas janelas impenetráveis que são os meus olhos, mas vieram-me algumas vezes as lágrimas aos olhos. Quando uma senhora, agarradas às minhas mãos me disse “é o almirante das vacinas? Muito obrigada”. Tendo eu feito tão pouco… Na sua simplicidade foi o elogio que mais me comoveu.

Esperava uma adesão tão grande à vacinação?
Esperava sim. Portugal não tem tradição da corrente negacionista das vacinas. Os portugueses sabem o que é importante. Uma das grandes vitórias do processo de vacinação é o povo português.

Caso contrário, a vacinação devia ter sido obrigatória?
Tudo o que é obrigatório acaba por ser contraproducente. Devemos discutir até a exaustão, convencendo as pessoas da importância da vacinação. Obrigar, não.

Mesmo não havendo tradição, levou com a ira dos negacionistas.
Sobre eles apenas isto: é gente que vive numa bolha de desinformação, que se autodiminuiu.

A partir das ameaças passou a andar com proteção?
Passei a andar acompanhado por um agente da PSP.

O que não pode voltar a repetir-se?
A sensação inicial de que “eu passo à frente de”. Esse egoísmo tão grande destrói qualquer processo, destrói o grupo. Sem ética interna ficamos desorientados, sem a tal cola.

O sucesso da sua coordenação coloca em causa os técnicos e responsáveis políticos em próximas tarefas? Falo também de “boys”.
O que enquanto militar trouxe ao processo não foi a técnica de vacinação nem conhecimento em saúde pública. Foi um modelo de organização que permitiu vencer uma batalha logística em termos operativos puros. Foi essa a minha mais-valia. Face às circunstâncias do início do processo era preciso alguma autoridade e experiência para trabalhar com um grande aparelho, afetar uma grande logística a um grande fim e levar esse combate ao longo do processo de forma dirigida. Penso que os militares têm essas características.

O que tenciona fazer com o capital de simpatia e protagonismo acumulado durante estes meses?
Nada. Não sou obrigado a fazer seja o que for com esse capital. Sou uma pessoa simpática por natureza, portanto hei de continuar a ser simpático. Apareci com naturalidade, desaparecerei com naturalidade.

Pode garantir que não tem ambição política?
O que garanto é que em vida normal, ou seja, em democracia, não tenho qualquer ambição política.

É descrito, porém, como um homem ambicioso.
Sou ambicioso de realizar coisas, não de cargos. O poder, para mim, é a capacidade para realizar coisas. Nunca gostei de festas, de cocktails, de palmas. Dito de outra maneira: cresci a ouvir o meu pai dizer que a profissão mais nobre era ser político. Porque se dedicavam à causa comum. Eu encontrei uma profissão que tem essa nobreza: a causa comum, que é o nosso povo, a garantia da Constituição, a defesa do território, acrescida de um significado especial – se for necessário, dar a vida por essa causa. Sinto-me, portanto, realizado. Não preciso de encontrar outra via para me dedicar à causa comum.

Quando diz que a Marinha precisa de uma revolução, está a pensar em algum cargo?
Como todo o cidadão tenho direito às minhas ideias. Defendo que o nosso país pode beneficiar imenso do seu território marítimo, da sua posição geoestratégica e que a Marinha pode ter um papel catalisador e holístico nessa aproximação do país ao mar.

Gostava de ter um lugar nessa revolução?
Claro que sim. Mas não discuto lugares. Se alguém desempenhar esse papel, fico feliz.

Incomodava-o ver um militar num cargo ministerial?
Se um militar despir a farda e se transformar num ex-militar claro que pode aceder a cargos políticos. Enquanto militar, não deve, porque não deve transferir a sua imagem de militar para a política. A política com militarismo nunca deu bom resultado. Se Deus me der essa honra, quero morrer militar.

Ideologicamente, como se situa?
Respondo do ponto de vista ético. Quando nasce, o ser humano tem direitos. A uma vida boa, à liberdade, à saúde, à educação, direitos que devem ser garantidos e regulados pelo Estado. Mas também não pode haver só Estado. Essas experiências já provaram ser más receitas. Tem de haver um equilíbrio. O centro é um bom equilíbrio.

Um homem de centro-esquerda?
Todos nós devemos ser bons seres humanos. O nosso céu e o nosso inferno são aqui, nesta terra. Não devemos fazer nada que prejudique os direitos dos outros ou que de alguma forma colida com capacidade de os outros poderem crescer e usufruir. Enquanto militar nunca direi as minhas cores ideológicas. Nós, militares, temos de ser asséticos. Defendemos uma Constituição, o país, os nossos cidadãos.

Se a Constituição saísse do seu raio ético, o que fazia?
Deixava de ser militar. Não poderia jurar defender algo com o qual estou em desacordo.

Voltemos à farda. Não o preocupa saber que um militar impõe mais autoridade do que um político?
Preocupa-me porque o exercício da política deve estar tão credibilizado quanto as Forças Armadas. Se os militares estão credibilizados perante a opinião pública isso deve-se à nossa postura. O mesmo deve acontecer à classe política. Uma classe política credibilizada é a essência da democracia. A democracia precisa de uma classe política credibilizada. Uma pessoa que se afirme como político deve merecer o respeito de todo o cidadão, desde que esse político tenha em si a essência do que é ser político.

Não aceitou ser vacinado na altura em que lhe competia. Sendo certo que não nos podíamos dar ao luxo de ter o coordenador da task force contaminado, não foi uma posição demagógica?
Tem a ver com o exemplo. Se me fosse dada ordem para me vacinar, obedeceria à ordem. Ter de dar a ordem a mim próprio é mais complicado. Acabei por receber a ordem do meu staff.

Quando disse que o país levava anos a endireitar, estava a pensar em que problemas?
Porque é que não somos tão produtivos como os outros países da Europa? Porque é que não estamos à frente de diversos setores? Há algum problema genético? Não acredito. Digo que levávamos muitos anos a endireitar porque acho que devíamos fazer uma revolução cultural e de atitude que nos libertasse dos pesos que há anos nos prendem ao chão.

Por onde começaria?
A nossa população julga que há homens providenciais. Alguém que tem a verdade, nos ilumina e que em dois meses nos torna fantásticos. Esse é um traço cultural que nos diminuiu. O homem providencial está dentro de cada um de nós. Nesse sentido é obrigação de cada um fazer o melhor. Não se pode desculpar dizendo “ainda não apareceu aquele que nos vai fazer dar o salto em frente”. Ao longo da minha carreira, a minha atitude foi sempre esta: fazer tudo o que pudesse para ser melhor do que tinha sido no dia anterior. Se todos fizéssemos assim, talvez tivéssemos outro desempenho.

Disse que os portugueses são dados a inveja. Ligou os ingleses ao snobismo. Os alemães a nazismo. Os franceses ao chauvinismo. Por uma vez levou com as “redes sociais”.
Não penso nada disso e disse-o num contexto completamente irónico. Mas – e essa foi uma das lições que aprendi – é muito difícil passar a ironia. Hoje, não o diria.

É um submarinista que anda exposto nos últimos meses. Como lida com o mediatismo?
Sendo uma pessoa normal, há que tentar levar o mediatismo da forma mais natural possível. Sempre achei que devíamos ter a iniciativa de explicar o processo à população, e que deveria ser o coordenador a fazê-lo.

Está preparado para a ausência do holofote.
Acho que vou reagir muito bem. Os holofotes tinham um sentido que referi na pergunta anterior.

Importava-se se daqui a dez anos ninguém soubesse quem é Gouveia e Melo?
Todos nós vamos ser transformados em pó. Tenho família, um círculo de amigos, na Marinha conhecem-me. Não preciso de mais do que isto. Não me incomoda regressar ao anonimato.

No próximo processo massivo de vacinação estaria disposto, caso fosse necessário, a retomar funções? Se for necessário, voltará a liderar uma empreitada desta grandeza?
Dentro do meu dever e da minha ética militar, o país contará sempre comigo.

Quanto tempo levou a aceitar o convite?
Uma hora.

O que ponderou?
Se tinha os instrumentos que me ajudariam a cumprir a missão com sucesso. Porque é nos momentos em que nos convidam que temos de dizer o que queremos.

O que pediu?
A confiança que precisava para conduzir o processo. Liberdade de ação. “Venha para cá ser um palhaço, nós conduzimos o processo e o senhor dá a cara” é algo que nunca aceitaria.

Não pensou que podia ser um desastre para a carreira?
Pensar pensei, mas não me condicionou. É óbvio que se isto tivesse corrido mal era uma tragédia para a minha carreira.

Aconselhou-se com a família, até porque tem um filho médico?
Não. Tomei a decisão sozinho. Mas, um dia, o meu filho disse-me algo que foi muito bonito e importante: “Pai, é com prazer que tu e eu estamos a combater juntos na mesma crise”. (comove-se)

Como descomprimia dos dias mais difíceis?
Gosto de passear com a minha mulher, de comer fora, de ler um bocado. Posso divertir-me com as coisas mais simples. Se me deixarem em minha casa, com carrinhos para montar e umas eletrónicas, a brincar e a fazer programas, sinto-me muito bem. Sou uma pessoa simples e desinteressante.

Tem noção de que por ser militar evitou muitos problemas a António Costa?
Não faço esse tipo de análises. Já conhecia o primeiro-ministro, tenho muita consideração por ele, consideração que, julgo, é mútua.

É um submarinista que adora a liberdade. A liberdade, memória do período africano. Fale-me de África.
Olha-se o mar e não se vê fim. África é assim. Planícies infinitas. A sensação de grandeza é muito especial. Os sons, os aromas são especiais. Os seres humanos, mais expostos aos elementos e a muitas adversidades, são especiais. Vivi em África, na América do Sul e na Europa e isso deu-me uma grande abertura. Também sempre beneficiei da abertura dos meus pais e tios, pessoas muito viajadas.

O que retém do miúdo obsessivo e muito organizado?
A capacidade de me emocionar e alguma ingenuidade. Numa relação, estou sempre de boa-fé.

Já levou pontapés?
Como todos nós. Quando isso acontece afasto a pessoa da minha trajetória. E quando as pessoas saem da minha trajetória, ou eu da delas, tornam-se invisíveis. Nem coisas do passado nem rancores me fazem afastar do meu caminho.

Em que é que a solidão lhe é gratificante?
A solidão pode ser libertadora. Tenho algo de ascético, e a sensação de não ter necessidades e dependências leva a um elevado domínio sobre nós próprios. Logo, enorme capacidade de introspeção. Outra característica de miúdo.

Quer morrer militar. E em África?
Nenhum ser humano quer morrer agarrado a uma cama. Gostava de morrer no ativo, a fazer qualquer coisa de útil. Gostava muito que Deus me fizesse esse favor.

É muito medalhado. De todas, qual considera especial?
As medalhas da esquadrilha de submarinos. Porque é muito raro ser-se medalhado na esquadrilha de submarinos. Nós não gostamos de dar medalhas uns aos outros. Achamos o que fazemos normal.

Com que figura pública não se importaria de passar 15 dias sozinho num submarino?
Tinha de ser um indivíduo divertido.

Que música ouvia quando estava submerso?
Nenhuma. Nem música nem filmes. Lia.

Além do fortalecimento das variantes da covid-19 e de outras ameaças pandémicas, qual acha que é a maior ameaça à saúde pública mundial, agora e no futuro?
A maior ameaça está relacionada com as alterações climáticas, que vão trazer mudanças de habitat que o ser humano pode não conseguir contrariar, tal será a escala. Não quero ser apocalítico, mas quando penso nos meus filhos e nos meus netos não posso deixar de estar preocupado.

Já tem netos?
Infelizmente, não.

Depois do falhanço no Afeganistão, mais um, ainda acha que as intervenções militares ajudam a instaurar ou repor a democracia em territórios estrangeiros?
As Forças Armadas não podem ser usadas para impor nada a ninguém. Está historicamente provado que esses projetos não correm bem.

Impor é um verbo muito militar.
Para mim, o principal papel das Forças Armadas é defensivo, dissuadindo algum impositor. A dissuasão é a guerra mais barata. Fazer parte do contrário, ou seja, impor a nossa vontade aos outros povos é um processo inútil.

Como olha para a retirada dos EUA?
Olho para o aeroporto de Cabul, para tudo o que se passou e sinto uma dor no coração. Estão ali muitas vidas destruídas para sempre. Quando mal calculadas, quando não têm atrás uma razão de peso, as intervenções militares têm estas consequências.

As consequências, no pensamento dos militares, estão sempre presentes?
Os militares são talvez das pessoas que mais pensam sobre isso.

E os danos colaterais?
Sou militar português. A cultura em que fui criado nunca foi a de entender que os danos colaterais são algo indiferente.

Se fosse norte-americano teria seguido a carreira militar?
Não sei responder. Ser militar, para mim, é um exercício de ética. Não é um exercício de violência irrestrita. Há coisas que faria sem nenhum constrangimento, as que têm a ver com a defesa da nossa população e da nossa maneira de estar, e outras que faria com enorme constrangimento. E há ainda outras que me fariam abandonar as Forças Armadas.

Por exemplo?
Violência sobre população indefesa. Faria com que abandonasse as Forças Armadas.

Poderia, portanto, não cumprir uma ordem?
Sim. Nós, militares portugueses, somos ensinados que há uma barreira ética. Se ultrapassada, podemos não cumprir a ordem. Podemos ter consequências, mas, quando o que está em causa são problemas éticos e morais, nós temos de estar dispostos a tudo.

Se não fosse militar podia ser o quê?
Se calhar tinha-me dedicado à Física.

Gostava de ir ao espaço?
Gosto de adrenalina e do risco, claro que gostaria, mas onde temos de investir é no fundo do mar, com cuidado, protegendo o ambiente e em desenvolvimento sustentado. Acredito que o século XXI é o século da colonização do mar. O ser humano, que é nómada no mar, vai passar a ser sedentário no mar e isso mudará a face do nosso Planeta.

Tem algum herói militar?
Há indivíduos que, pelas suas capacidades, admiro. Admiro os grandes ases dos submarinos. Independentemente de discordar em absoluto da ideologia que partilhavam. Porém, enquanto submarinistas, sofreram e encontraram soluções. Falo de De la Perière (Lothar von Arnauld), o maior ás alemão da I Guerra Mundial, e Gunther Prien, o ás da II Guerra Mundial.

Alguma biografia predileta?
Uma das mais interessantes é a vida de Laurence da Arábia. Um herói improvável.

Um militar deve ter várias qualidades. Qual delas é absolutamente imprescindível?
Capacidade de liderança sob stresse.

Recebeu do presidente da República uma condecoração pela carreira, mas é evidente que é também o reconhecimento pelo trabalho feito na task force.
O grande prazer está em fazer. Se me disserem “estiveste bem, meu rapaz”, basta-me.

Veja o vídeo da entrevista aqui