Rui Cardoso Martins

Ginástica geriátrica

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

A meio da sessão, soube-se que o arguido era professor de ginástica. Mas já se percebera que era homem para correr, saltar, dar cambalhota, pular ou atirar-se para o chão, fingindo-se lesionado. Estava toda a gente à espera do arguido – juíza, procuradora, funcionária judicial, testemunhas de acusação, advogada de acusação e advogada de defesa, e nem esta última sabia onde parava o seu cliente. Foi então que ouvi (também eu à espera) que acabara de chegar à secretaria do juízo criminal uma mensagem do arguido a dizer que, na véspera à noite, tinha sentido “dificuldades respiratórias e sintomas de covid”, infelizmente não podia vir.

– A ser verdade…, ironizou a advogada de acusação, não é a primeira vez que aparece com uma desculpa, acrescentou.

E a advogada de defesa, a pedido da juíza, telefonou, telefonou para saber como estava, e se podia responder por WhatsApp, mas ele nunca atendeu. Assim se fez o julgamento, sem o professor de ginástica que podia ter covid.

Pessoa antes respeitadíssima numa associação de reformados, cujo objectivo não é o lucro, mas o bem-estar de profissionais no fim de carreira, e até à morte, o professor de ginástica começou a roubar os velhotes. Como? Um método também muito velho: cheques (ainda há, fiquem sabendo…). O professor ia à gaveta sempre aberta da tesoureira Maria, uma senhora de quase 80 anos, tirava cheques e falsificava as assinaturas dela e do presidente. É na mudança de direcção, por doença do presidente – falecido, entretanto – que se nota a falta de mil euros aqui, 900 euros ali, 600 acolá.

– Isto era uma roubalheira que vinha de longe!, gritou na sala o velho-novo presidente, como se falasse de uma casta de vinhos ou aguardentes.

O novo presidente defendia a instituição, contendo a voz.

– Era um caso grave.

– Evidentemente!

– Como é que só se deu conta ao fim de nove meses?

– Pensámos que estava tudo bem, tudo pago. Só que no mês 2 vemos que há um cheque levantado de 1 200 euros. É um valor elevado.

Começaram a ver tudo para trás, ele e a tesoureira Maria, um casal de velhotes em investigação, comparando extractos bancários, perguntando ao gerente de conta. Descobriram que faltavam os últimos cheques de um livro de 30. Arrancados do fundo da caderneta, como nos filmes de espiões.

– Quando fizemos a pergunta, se tinha passado algum cheque… ele diz, naturalmente: “Pois, já fiz asneira. Mas eu pago!”

Não pagou nada, até porque levantara cheques com assinaturas do presidente anterior, num longo cacharolete de falsificações.

O problema que se colocava agora, em tribunal, era da ordem ontológica, do ser ou não ser. Como provar que foi o professor de ginástica quem roubou, uma vez que os cheques foram assinados com o nome de outros? Foi mesmo ele, se não está lá o seu nome?

A juíza pediu ao presidente da associação de reformados que, primeiro, colocasse a máscara por cima do nariz, coisa de que o velho senhor se esquecia, depois que desinfectasse as mãos para pegar no processo, coisa de que também não se lembrara e, por último, que confirmasse que as assinaturas nos cheques eram as suas. Ou melhor (daí o problema ontológico), que não eram as suas. Finalmente, quase cego, o presidente levou o calhamaço ao nariz, observando-o ao microscópio.

– Reconhece esses cheques?, perguntou a juíza.

– Sim, são cheques nossos.

– E reconhece as assinaturas?

– Sim, quer dizer, está aqui o meu nome, mas não fui eu que assinei isto!

O professor de ginástica passava depois o cheque em nome de um terceiro que levantava a quantia (um cúmplice), mas depois perdeu a vergonha e já os passava a si próprio, como se fossem salários.

Porque era um homem amado, o professor que punha velhotes a ginasticarem o corpo neste mundo ferrugento de dificuldades respiratórias e com a morte à esquina. Disse o presidente, sempre um cavalheiro:

– Eu tenho de dizer uma coisa, eu quando suspendi as aulas de ginástica, quase fui agredido! Porque o senhor tinha uma confiança quase ilimitada com toda a gente!

Quem não tem vergonha, todo o mundo é seu.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)