Ghosting. Desaparecer da relação sem deixar rasto

É abandonar sem aviso, sem explicação, como um fantasma. O fenómeno ganhou um nome e é cada vez mais comum, muito potenciado pelas redes sociais. Gera sofrimento. Mas há estratégias para lidar com a sensação de abandono e rejeição.

A verdade é que não sei o que se passou. Pensei muito no que fiz de errado, que o problema foi meu.” Mais de um ano depois, Maria (nome fictício) ainda guarda a mágoa do abandono sem explicação, que a atirou para o limbo da dúvida e da incerteza. Vai ao baú, conheceu João no Tinder em janeiro de 2020. Foi já depois de muitas saídas e promessas de férias a dois que, à boleia do confinamento, ele deixou de dar sinais de vida, de responder às mensagens, de ligar.

O termo ‘ghosting’ começou a ser usado há cerca de seis anos para traduzir o fim repentino de relações sem justificação. É quando a pessoa que quer pôr um ponto final simplesmente desaparece, sem aviso, como se fosse um fantasma (ghost, em inglês). O fenómeno já existia, o nome é só a atualização da velha história do homem que saiu a meio da noite para comprar tabaco e nunca mais voltou. Hoje, acontece sobretudo na fase de início de uma relação. Como a de Maria.

A jovem de 26 anos rebobina a cassete. Decidiu instalar o Tinder no ano passado, empurrada pelas amigas. Duas semanas bastaram para fazer “match” com João. Alguns dias de conversa até combinarem ver-se, de manhã, no comboio, a caminho do trabalho. Na última carruagem. “Era terça-feira. Lembro-me perfeitamente, estava super nervosa.” O comboio virou palco de sucessivos encontros matutinos até ao oficial, em noite de chuva, a ver o mar revolto. “Ficámos na conversa, as horas passar, já era madrugada e aconteceu aí o beijo.”

Mensagens para aqui, encontros a bordo do comboio para acolá. Saídas aos fins de semana, às sextas, aos dias de semana. Almoços, jantares, idas ao cinema. Maria apaixonou-se a sério. “Nunca foi oficializada uma relação, nunca falámos disso. Sentíamo-nos bem um com o outro e ele é que tomava a iniciativa na maior parte das vezes.” Mas quando ela o convidou para um jantar com as amigas, João disse-lhe que não. E a nega repetiu-se. “Na altura, não pensei muito nisso”, conta. O confinamento foi o início do fim. Maria ainda quis ir ter com João ao trabalho, para se despedir antes de o país se enfiar em casa. Já estava a caminho, quando ele lhe pediu para não ir, desculpou-se com o medo da covid-19. Ele foi para o Alentejo com amigos. Nunca mais se viram.

Ainda trocaram mensagens durante alguns dias. “Até que do nada, puf. Não me respondia, não me atendia o telefone, não me retribuía as chamadas. Estava a evitar-me ao máximo. Comecei a ficar à nora. Sem saber o que ele andava a fazer. E eu a sofrer.” As amigas diziam-lhe que “ele era um cobardolas” e Maria passava os dias a chorar, mal dormia. Em modo “stalker”, a espreitar as poucas publicações de João nas redes sociais. Fechada em casa com os pais, em teletrabalho, sem poder sair com amigos para se distrair, a viver o primeiro desgosto de amor que a atirou ao chão.

“Ele esperou que eu desistisse. Deixei de ligar, não queria fazer papel de estúpida. Mas estava sempre com aquela esperança. Ainda antes da pandemia, ele estava a ver férias para irmos juntos, um sinal de que era coisa séria.” Afinal, não era. Já corria o mês de junho quando ela ganhou coragem para lhe mandar mensagem. Disse-lhe que estava a gostar muito dele e que a tinha abandonado quando mais precisava. A resposta não chegou, também não era esse o objetivo. “No fundo, foi para eu encerrar este ciclo comigo própria. Porque viver na dúvida, na incerteza, é uma coisa horrível.”

Cortar pela raiz sem lidar com as emoções

Este é um fenómeno cada vez mais comum, segundo Luana Cunha Ferreira, psicóloga com investigação na área da conjugalidade. “No último ano, no consultório, o ‘ghosting’ tem surgido frequentemente. Tanto do lado de quem faz, como do lado de quem é, por assim dizer, vítima. Porque ninguém fica muito confortável com isto.” O facto de ter ganho um nome, admite, também tornou o fenómeno mais visível. Isso e aplicações como o Tinder, “onde acontece grande parte” do ‘ghosting’. “É como se fosse um ‘ctrl alt delete’ que acaba por ser um filtro. Nestas aplicações, somos expostos a uma montra enorme de pessoas e o nosso cérebro não está preparado para lidar com tantas potencialidades.”

A especialista defende que é um atalho fácil para “cortar pela raiz uma potencial relação que não se antevê que cresça”. Desaparecer “acaba por ser uma forma eficaz de garantir que não temos o trabalho emocional de encontrar o outro no final de uma pequena ligação”. Até porque dar a cara também implica alguma dose de segurança e confiança. “É uma maneira de nos retirarmos sem termos de lidar com os sentimentos do outro, sem termos de admitir que não estamos prontos ou que aquela pessoa não nos interessa assim tanto.”

Pode mesmo ser “uma forma de protegermos o outro de uma rejeição mais clara, com motivos”. “O sofrimento, a angústia, é qualquer coisa de relacional, não pertence só a uma das pessoas. E é muito difícil lidar com o sofrimento de alguém, mesmo alguém que não conhecemos minimamente.” José Pacheco, psicólogo e sexólogo, acredita que o ‘ghosting’ não é mais do que um sinal dos tempos. E vê no desaparecimento repentino e inesperado algo mais individualista. “Podemos entender como uma falta de consideração pelo outro. Mas as relações hoje também já não assentam nessa base. Assentam em algo que tem a ver com o próprio: ‘Eu quero esta relação porque me dá prazer’. Se por acaso deixa de dar, desaparecer evita o lado desagradável de terminar.”

A superficialidade do online

A verdade é que acabar um relacionamento também significa que a pessoa se vai confrontar consigo própria. “Não é só uma questão de confrontar o outro. O outro vai questionar e a pessoa terá que ter argumentos.” Para o sexólogo, as redes sociais permitem relações fáceis, mas poucas são de compromisso. Ainda assim, o fenómeno de “pessoas que ora aparecem, ora desaparecem, sem qualquer previsibilidade” não é novo. É Rute Agulhas, psicóloga clínica, quem o lembra. “O que é novo é a forma virtual como acontece.” O mundo online só veio facilitar o processo de desaparecer sem deixar rasto. “Porque é tão simples como ignorar, não responder, bloquear.” Nas redes sociais, há uma falsa disponibilidade. “Fala-se com 30 pessoas ao mesmo tempo, mas não se fala verdadeiramente com ninguém. Mantêm-se abordagens superficiais, com receio de estabelecer relações de intimidade emocional.”

E concorda com José Pacheco quando fala em individualismo. Quem faz ‘ghosting’, sustenta, “são pessoas centradas em si próprias. ‘São os meus interesses e as minhas necessidades que importam’”. Mas o fenómeno não se limita às relações amorosas. Também acontece com amigos, que subitamente deixam de falar, ou a nível profissional.

Rute Agulhas sentiu-o na pele. “Já fui vítima de ‘ghosting’ profissional. Alguém a quem eu pagava por um serviço limitou-se a desaparecer. Assim, de um dia para o outro. Fiquei sem resposta para a tarefa que tinha pedido, e pago.” Ainda pensou que tivesse ficado doente – e até a morte lhe passou pela cabeça – mas não. “Vim a saber, mais tarde, que a pessoa está viva e de saúde.”

Para as vítimas, o ‘ghosting’ deixa marcas, porque ninguém está preparado para este tipo de cortes. “Sente-se abandonado, sozinho e enganado. O impacto na autoestima pode ser significativo”, explica Rute Agulhas. Mas tudo depende do grau de envolvimento, segundo José Pacheco. “Quando a pessoa desaparece, nem se tem a certeza se morreu ou se lhe aconteceu alguma coisa. Mas os sofrimentos associados são diferentes. Se a vítima estiver pouco envolvida, é igual ao litro. Se estiver muito envolvida, pode gerar muito sofrimento. Sofre porque associa a separação a uma coisa em que tem culpa. Como não tem explicação, vai pensar que a pessoa a deixou porque fez algo de errado e achou que ela nem sequer merecia uma justificação.”

Gerir a dor, as dúvidas, a autoestima

É a dúvida que gera mais sofrimento. “As pessoas passam longos períodos a ruminar sobre o que fizeram e o que podiam ter feito para merecer outro tipo de respeito”, refere Luana Cunha Ferreira. Mas o porquê não pertence à vítima. E a especialista diz que há estratégias para lidar com o fim abrupto, o abandono gratuito, a sensação de rejeição. É fechar o ciclo, como fez Maria. Enviar uma mensagem, sem esperar resposta e pedir que não volte a contactar. Isso acaba por devolver a responsabilidade a quem não teve coragem para assumir a sua posição. “E dá alguma paz às vítimas, no sentido em que ficaram com a última palavra.”

A psicóloga alerta, contudo, para o facto de este tipo de comportamentos estar a tornar-se normativo. “As relações hoje começam e acabam mais rápido. Precisamos de saber como terminar de forma eficaz, mas responsável e ética. E penso que ainda estamos todos a tentar descobrir essa forma.”

Há cerca de um mês João enviou uma mensagem a Maria. Reapareceu, passado mais de um ano. A desculpar-se. “A dizer que tinha gostado muito de estar comigo e que não me tinha valorizado o suficiente. Que ficou confuso e se tinha acobardado. E que gostava de um dia deixarmos tudo para trás das costas e pudéssemos combinar um café.” Maria gelou. Já tinha ultrapassado o desgosto, a mensagem agora já não fazia sentido.

Tremia de nervos, só conseguiu ler tudo o que ele escreveu com calma um dia depois. Decidiu apagar e não responder. Afinal, o silêncio é a melhor resposta. “O assunto já estava enterrado. Já estava em cinzas. E ele nem sequer justificou o porquê de ter ficado confuso. Mas uma coisa é certa, só com aquela mensagem é que vi que o problema não era meu e que ele é que errou. Só que o comboio já passou.”