Margarida Rebelo Pinto

Ganhar à segunda volta


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

A Francisca conversa com o meu amigo Manel num almoço improvisado. Quando combinei com ela, tive a intuição de desafiá-lo para aparecer. Chegou quase no final, a tempo de partilhar um brownie servido com três colheres. Três foi a conta que Deus fez, eu em modo elo de ligação entre duas pessoas que nunca se cruzaram antes e que, ao fim de uma hora, tinham um universo de coisas em comum.

Esta vocação de fada madrinha não é de agora. Já em miúda andava nestes afazeres de Cupido. Em Espanha, tal habilidade dá pelo nome de Celestina, personagem da obra homónima de Fernando Rojas, uma tragicomédia do século XVI, na qual uma feiticeira sabidona dona de um bordel rouba o colar à donzela Melibea e o mergulha numa poção mágica para que esta se apaixone por Calisto, o que acaba obviamente por acontecer.

Com ou sem setas, a verdade é que tenho um anjo endiabrado dentro de mim que me faz casar pessoas. E já casei umas quantas, o que me granjeia a honra de ser a madrinha na cerimónia. A Francisca e o Manel trocaram sorrisos tímidos, meia dúzia de confidências e um abraço apertado na despedida. Agora, anda cada um na sua vida a sonhar com o outro, e eu a assistir de camarote, encantada com a capacidade quase infinita do ser humano em voltar a acreditar no amor, mesmo quando os alicerces de uma família se desmoronam, fruto de uma paixão avassaladora, de uma patologia, de um vício, de uma sogra castradora e invejosa, ou de uma enteada que reencarna a sinistra Wednesday da família Addams.

Um casamento não é como jogar a lotaria, uma pessoa sabe quase sempre ao que vai. Quando as coisas dão para o torto, nem sempre é uma novidade que cai como uma bomba. É antes uma nuvem negra que vai cobrindo o céu do presente, minando o sonho de um futuro a dois, tal como a que se forma após uma erupção vulcânica: imensa, monstruosa, sufocante e inevitável.

Depois de contar as baixas e de evacuar os feridos, da limpeza dos escombros e de vários meses no hospital dos corações partidos, as pessoas recompõem-se. O Manel, divorciado há seis meses, disse “Isto é como ficar coxo”, e a Francisca comentou que, depois da separação, sentia o coração blindado. Estiveram os dois naquele lugar terrível onde os corações amarfanhados se refugiam, a caverna onde se lambem as feridas, uma ilha de silêncio, de frio e de desolação, na qual sexta-feira é um psicoterapeuta bem-intencionado com quem uma pessoa chora e funga uma vez por semana, procurando respostas que a façam manter-se à tona até à sessão seguinte.

Nunca acreditei na velha máxima que diz que o tempo cura tudo, porque não cura. Pode apagar, o que não é o mesmo. O que cura é a transformação lenta da realidade, por vezes impulsionada por alguns insights: um livro, uma frase, uma conversa com alguém que nem sequer conhecemos bem e que nos dá uma chave para uma porta desconhecida, ou nos fornece a última peça do puzzle para o terminarmos na nossa cabeça.

O tempo não sabe nada, o tempo não tem razão, como canta o Jorge Palma. A vida é que sabe, e a vida ganha quase sempre ao amor. Quase sempre.

Daqui a poucos dias, vou saber se as minhas setas acertaram no alvo. Acredito que os dois venham a ter uma história bonita, porque ambos já fizeram o luto do estrondoso despiste da primeira volta e ambos sabem o que nunca mais vão querer numa relação.

Nada como saber aquilo que não toleramos para encontrar o que merecemos.