
São estudantes portugueses, em Erasmus pela Europa, que vão passar a consoada fora de portas, ao lado de amigos, numa mistura de tradições pintada com as cores das bandeiras de muitos países. Bacalhau, rabanadas ou videochamadas para a família entram nos planos. E saudades, muitas.
Nicósia, 18 graus. A temperatura em pleno inverno já não dá para Carlos Miguel, mais conhecido por Miguel do que por Carlos, se enfiar num autocarro durante hora e meia a caminho das praias do país que escolheu para Erasmus. Há pouco menos de um mês ainda dava. O estudante de Turismo e Gestão da Universidade Lusófona do Porto aterrou na capital do Chipre no final de setembro. As ideias por essa altura já estavam arrumadas: ia passar lá o Natal para “aproveitar a experiência ao máximo”. E nem o choque cultural o demoveu.
Portuense de gema, tem 21 anos, está no terceiro e último ano do curso. A pandemia não o deixou fazer as malas no segundo ano da licenciatura, como ele tanto queria. O irmão já tinha ido de Erasmus há uns anos e Miguel sempre esperou fazer o mesmo. Foi agora, um semestre, na reta final do curso. Três opções em cima da mesa: Espanha, Polónia e Chipre. “Queríamos um sítio muito diferente e aqui o tempo é bom.” Fala no plural, porque embarcou para o Chipre com uma amiga, com quem partilha casa. Mas o embate foi maior do que esperava.
“É um país muito menos desenvolvido do que Portugal. Os transportes são poucos ou nenhuns. Temos que andar, a maior parte das vezes, de táxi. Estamos na capital, mas não há muito para fazer.” Uma ilha dividida, a sul ocupada pelos cipriotas, a norte pelos turcos, com uma fronteira a meio coberta por polícia e tropas, foi uma surpresa. Mas Miguel não quis deixar a experiência pela meia medida. Vai passar lá o Natal. Com todos os amigos de Erasmus que conheceu na European University Cyprus, desde franceses a belgas. Camisolas natalícias, vestidos a preceito, já têm planeado um jantar e trocas de presentes. “Vai ser a primeira vez que vou passar o Natal fora. Claro que não passar com a família pesa sempre. Mas queria mesmo fazer isto.”

(Foto: DR)
Agora, anda numa correria para encontrar bacalhau em Chipre. E não é tarefa fácil num lugar onde nem há “natas ou feijão nos supermercados”. Foram eles, os portugueses, que ficaram encarregues de fazer o prato principal, típico do seu país. “Dividimo-nos por grupos. Uns vão fazer as entradas, nós o prato principal, outros as sobremesas. Estivemos a mostrar algumas tradições uns aos outros, somos os únicos que comemos bacalhau no Natal e eles acharam graça a isso.”
O que já é certo é uma videochamada para casa, para a família que tantas vezes lhe perguntou se queria mesmo passar o Natal fora. Miguel acumula saudades, só que não vacila. “Nesse dia até posso ficar mais triste, mas foi uma decisão minha.”
Mistura de tradições na Lituânia
Entre os estudantes portugueses em Erasmus, são muitos os que vão passar o Natal para lá das fronteiras nacionais. E, ao contrário do que se possa imaginar, não são a pandemia e as restrições de viagens o motor para a decisão da maior parte deles. É uma experiência vivida por inteiro. Enzo Fernandes já está habituado a carregar malas e bagagens. Afinal, mudou-se com os pais do Brasil para assentar arraiais em Portugal há seis anos. No Minho, Braga. E trouxe o sonho que tem desde miúdo: ser diplomata. O caminho era óbvio. Agora, com 20 anos, está a estudar Relações Internacionais na Universidade do Minho. E quer conhecer o Mundo. Talvez por isso tenha escolhido um destino de Erasmus improvável, que foge a tudo o que conhece em Portugal.

(Foto: DR)
Chegou a Kaunas, a segunda maior cidade da Lituânia, em agosto, para entrar na Vytautas Magnus University. Está numa residência carregada de estudantes estrangeiros. E o travo do sotaque do Brasil ainda dá de si. “É uma cidade bem maior do que Braga, muito bem servida em termos de serviços, transportes, muito limpa, com muita história, museus.” Tem aproveitado para viajar, muito. Noruega, Suécia, Finlândia, Estónia, Polónia. Passar o Natal na Lituânia ou voltar a Portugal era uma dúvida que andava a moer-lhe a cabeça até fazer tantos amigos por lá. “Decidi ficar. Acho que vai ser um Natal muito interessante, com gente de todo o lado do Mundo. Espanha, República Checa, Roménia, Azerbaijão, França, Turquia, Itália, Argentina, Cazaquistão.” São para cima de 25, Enzo até lhes perde a conta.
No hall de entrada da residência, há meia dúzia de dias, juntaram-se todos para montar a árvore. E o plano está bem definido: cada um vai preparar um prato típico do seu país. “Vamos fazer uma mistura de tradições.” A mãe de uma amiga vai enviar-lhes bacalhau e vinho do Porto. E o amigo secreto também entra num Natal diferente, o limite para gastos na prenda são 15 euros. A câmara fotográfica analógica que Enzo levou de Portugal vai registar as imagens de uma consoada inusitada.
Os pais e a avó, a morar em Braga, reagiram bem à ideia, meio caminho andado para a decisão. “Acho que a partir do momento em que vim de Erasmus era justamente para ter uma experiência de vida. Que fosse em tudo diferente, Natal incluído. E o facto de estar rodeado de pessoas que partilharam esta experiência comigo ao longo dos últimos meses também me vai fazer sentir em casa.” Vai falhar a aletria da mãe, que ele insiste todos os Natais para ter na mesa, e as rabanadas de que tanto gosta. Mas em janeiro já está de volta.
Da Croácia para o ski na consoada
A época é propícia ao aumento dos preços dos voos, tamanha é a procura. E foi talvez esse o empurrão que faltava a Carlota Vieira, estudante da Universidade de Aveiro, para decidir passar o Natal fora de portas. Enfiou-se a medo num avião com destino a Split, Croácia, no início deste semestre. A medo não pelo receio da aventura que sempre quis e sonhou. Mas porque a jovem de Vila Nova de Gaia adora Aveiro e queria aproveitar aí o último ano do curso de Economia, depois de a pandemia lhe ter roubado tanto da vida académica. Ganhou coragem, juntou-se a três amigos, todos rapazes, e arrancaram os quatro para a Costa Dálmata croata, onde frequentam a University of Split.

(Foto: DR)
“Não estou a adorar. Vim a pensar que Split era uma cidade movimentada, cheia de gente. Só que é uma cidade de verão, muito turística, é tudo muito caro, e é muito calma no inverno.” No princípio, Carlota ainda aproveitou as dezenas de praias numa costa recortada que se estende por largas centenas de quilómetros. Só que o frio chegou e com ele o Natal a aproximar-se. “Os meus pais disseram-me que devia ficar aqui, que seria uma experiência completamente diferente e, de facto, concordei. Um Natal com amigos também não deve ser assim tão mau”, comenta.
Aos 20 anos, o primeiro Natal sem a família. E que encaixa bem no espírito de quem parte para Erasmus: a viajar. Bósnia, Eslovénia, Hungria entram no lote dos países visitados. A consoada não vai ser exceção. Os quatro amigos já decidiram, vão passar a quadra aos Alpes Dináricos, “onde está a nevar e dá para fazer ski”. Talvez duas amigas, uma britânica e outra turca, se juntem. Mas pouco mais tem decidido. “Vou com três rapazes e convencê-los a fazer troca de prendas não é assim tão fácil”, diz Carlota. Estão a pensar fazer uma refeição tradicional, sem grandes certezas, ainda ninguém se comprometeu a ser o cozinheiro de serviço. “Aqui, por acaso, há bacalhau. Mas não é como o português. A comida, na verdade, não é nada de especial. Cada vez me convenço mais de que em Portugal vivemos num paraíso.”
Só tem uma certeza: uma videochamada para os pais na noite de 24. “Estou a pensar passar um bom bocado à conversa com a minha família. Tenho uma relação incrível com os meus pais e estou a morrer de saudades deles.” Gosta muito do Natal, mas não dramatiza. Lá para fevereiro, quando estiver de volta a terras lusas, há de compensar tudo o que perdeu.
Entre a Europa e a Ásia
Se a experiência de Erasmus acontece uma vez na vida, então Bruno Barbosa, de Lousada, não há de “morrer por passar o Natal longe”. Pelo menos é assim que põe as cartas na mesa. Para o estudante de Engenharia e Gestão Industrial na Universidade de Coimbra, que sempre quis experimentar estudar fora, as dúvidas eram poucas ou nenhumas. Aos 21 anos, saiu da cidade dos estudantes, com um amigo da faculdade, em direção ao país que tem um pé na Ásia e outro na Europa: Turquia. Bruno tem uma explicação simples. “Istambul pareceu-me um ideia um bocado louca. E foi a melhor opção que fiz.” Até pelo fascínio que não esconde pelo choque cultural. “Aqui, é engraçado o quão diferente pode ser o teu dia. Já conheci pessoas do Irão, do Egito, do Paquistão, da Síria. E a cultura turca é fantástica.”

(Foto: DR)
Fez ouvidos moucos a todos os que lhe disseram para não ir. Ainda bem. “As pessoas são muito hospitaleiras e sempre me senti extremamente seguro.” Está na Yildyz Technical University. O Google Tradutor ajuda-o num lugar onde poucos falam inglês, a maior dificuldade. E já correu a Turquia, desde a Capadócia, onde foi com 300 estudantes Erasmus, às praias do sul. Fez snorkeling, nadou numa cratera provocada por um meteorito, visitou o mausoléu de Halicarnasso, uma das maravilhas do Mundo antigo. “E o que mais gosto aqui são os banhos turcos.”
Até dia 24 vai andar a viajar com quatro amigos portugueses que por lá conheceu. Pamukkale, Éfeso, Esmirna fazem parte do roteiro. Mas volta, no dia da consoada, a Istambul para passar a ceia em casa. “Aqui, não se celebra o Natal, nem sequer fazem interrupção letiva. Mas surpreendentemente há decorações nos shoppings, mercados de Natal. Vivo num apartamento com dois portugueses, um iraniano e três alemãs, e o senhorio decorou-nos a casa toda com árvores de Natal”, conta ele. Vai juntar entre 15 a 20 amigos num “Natal internacional”. Vão trocar prendas, até 150 liras turcas, que é como quem diz dez euros. “Pensamos cozinhar os pratos típicos de cada país. Eu talvez faça com os portugueses umas rabanadas.” Já que ainda não descobriram bacalhau por lá. “Claro que é uma data que me vai custar estar longe da família, mas tomei esta decisão e vou falar com eles nesse dia.”
Numa cidade onde cabem 15 milhões, Bruno tem plena noção de que ainda não lhe conhece todos os cantos. Já fez “check” na lista dos pontos turísticos, mesquitas, ruas. Mas há de ir embora sem ver tudo. Pouco se importa. E não pára. O destino, depois do Natal, é Gaziantepe, junto à fronteira com a Síria.
Miguel, Enzo, Carlota e Bruno, os quatro estudantes têm uma história em comum. Estão todos no terceiro ano da licenciatura e vão passar o Natal longe de Portugal e da família por opção. Uma opção em nome de uma experiência que querem viver com tudo de bom e de amargo. Sem arrependimentos.