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Fernando Santos: o pescador pragmático

Fotos: Ilustração: Mafalda Neves

Fernando Santos é selecionador de futebol de Portugal

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Nascido e criado num bairro de Lisboa, foi um miúdo reguila. Queria ser guarda-redes ou oficial da Marinha. Venceu o futebol. Distingue entre jogar bonito e jogar bem. Chegou a campeão da Europa. Agora tem de defender o título.

Madrugada, desce ao rio para ganhar cinco ou seis horas que lhe valem anos de vida. Ali, no meio do Alentejo, casa escolhida para retiro, um dia feliz deste lisboeta de origem beirã abre com pescaria. A pensar em nada. Nunca tal imaginara. “A calma não está no meu ADN.” O mesmo respondia a cada convite do pai, pescador amador, contou-me em 2014. “Quando partiu, dei o material de pesca aos amigos dele”, disse. “E agora, lá estou eu no rio, a pescar.”

Aos 50 anos decidiu que aos 60 aceitaria a reforma. Nas vésperas, reconsiderou. A seleção de Portugal, depois de duas tentativas falhadas, acabava de lhe cair nas mãos. E dela faria campeã da Europa. Agora, tal como em 2016, leva para o Euro 2020 mala para um mês, confiante de que fica até ao fim. Nunca teve agente, não gosta sequer do nome. O percurso foi correndo de forma natural. Sem apoderado chegou ao F. C. Porto e a campeão nacional. Ao Benfica e ao Sporting. A melhor treinador do campeonato grego, país que também lhe confiou a equipa nacional.

A cara fechada engana. “Apesar de muita gente achar que sou um bicho do mato, tenho com os jogadores uma relação de grande proximidade”, confidencia. Quando se ri parece mais jovem. “Sempre tive um rosto pesado, tenho ar de velho desde miúdo, mas parece que com o tempo vou ficando mais jovem.” Na seleção está menos tenso. “O treinador de um clube de alto nível é um bicho muito solitário, com as defesas alerta. Treinar o Benfica, o F. C. Porto ou o Sporting significa ter muita gente contra nós. E isso pesa. Mas com amigos e jogadores não é assim. Esses conhecem bem o meu feitio”, dizia em 2014.

Não é um feitio fácil. Sobretudo de manhã. “Há ali uma primeira hora em que na realidade é muito difícil lidar comigo.” Mas para os jogadores, a porta está sempre aberta. “Têm deste lado um amigo e um disciplinador.” Quando os jogadores gregos lhe disseram que seria difícil chegar a horas aos treinos das oito por causa do trânsito, respondeu-lhes que então começariam às sete. No regresso a Portugal, confessou que se sentiu parte daquela gente, o esforço para entender a cultura e o povo e a decisão de nunca cantar o hino grego em Portugal e o português na Grécia.

Em autorretrato, sobressaiu a lealdade. Mas, admite: “Sou muito autoritário, fervo em pouca água”. Se fazem dele parvo, irrita-se. E, quando se irrita, fala alto e gesticula muito, natureza que lhe custou, já, alguns castigos no futebol. Foi jogador, é engenheiro e treinador. Filho de um guarda-redes amador, em criança queria ser Costa Pereira, o lendário keeper do Benfica. Ou oficial da Marinha, por causa de um rapaz da Penha de França, seu vizinho, que via passar, da janela de casa, tinha uns seis anos. Um alfacinha típico, miúdo de bairro, reguila, capaz de saltar redes para ir à fruta ou ver os aviões, de ir para o Parque Eduardo VII nadar com os patos.

“Um miúdo de bairro, mas com um pai rijo. E com alguma razão. Vários dos meus amigos da altura foram por caminhos piores e alguns faleceram”, contou. “Levei tantas. A maior delas, tinha uns 12 ou 13 anos. Em vez de ir para casa, fui jogar matraquilhos com um amigo. O pessoal apostava uns trocos, eu e ele fazíamos bluff, dizíamos que não jogávamos nada e no final ainda comíamos uns bolos. Perdi a noção do tempo. Estive vários minutos a servir de saco de boxe. Não me fez mal.” Tinha ambição. Com 11 anos, já fumador, entrou na Escola Afonso Domingos, onde tirou o curso de montador eletricista. Chegaria a engenheiro. Pai de dois filhos, é padrinho de 50 afilhados, alguns deles herdados do pai, outros em razão da “fé”. Fé, fundação inabalável de Fernando Santos.

De volta ao Alentejo, ao fim da tarde, na casa refúgio, reúne os amigos. Um dia feliz do selecionador fecha à volta de uma mesa de jogo, seja bridge ou sueca. Tem uma aptidão natural para as cartas e detesta perder. Por isso, é pragmático. Por isso, distingue entre jogar bonito e jogar bem. Por isso, ganhamos.

Fernando Manuel Fernandes da Costa Santos
Cargo:
selecionador de futebol de Portugal
Nascimento: 10/10/1954 (66 anos)
Nacionalidade: Portuguesa (Lisboa)