
Enquanto muitos estão eufóricos com a ideia de irem de férias, há quem não queira sair de casa. Num contexto de incerteza, o medo de viajar não é obrigatoriamente patológico.
Poucos meses tinham passado desde a última viagem. Francisco Costa tinha a certeza de que guardaria a máscara, que o protegeu da poluição atmosférica característica da Índia, como um souvenir e como um símbolo de memórias felizes. O nómada digital, de 53 anos, sempre viajou “muito”, mas a pandemia atirou a mala para o fundo do armário. Uma estação substituiu a outra, a epidemia percorreu um caminho de vales e montanhas, e Francisco Costa permaneceu estacionado. “Da minha janela eu vejo a ponte, e assustava-me olhar para a ponte à noite e só ver as luzes das ambulâncias”, confessa.
O açoriano residente em Lisboa mergulhou no património do duplex onde vive, um desafogo de vista, com o Tejo como pano de fundo, numa espécie de “gueto autoimposto”, na companhia única de uma gata chamado Sara. O trabalho de consultor de e-learning, criador de conteúdos e de tutoria online podia ser desempenhado em “clausura”, que se estendeu, durante muitos meses, à totalidade das horas e dos dias. “A minha única saída à rua era uma vez por semana, completamente mascarado, para ir pôr o lixo. Tudo o resto deixei de fazer.” A ansiedade em relação a um vírus com transmissão comunitária levou-o a evitar separar os resíduos, “para não ter de manusear as tampas”.
Subia e descia as escadas 20 vezes para não perder a mobilidade, e fazia as compras online. “Vinham colocar-me os sacos à porta, tocavam à campainha, saíam, e eu, mascarado, colocava os sacos dentro de casa, de luvas. Era tudo lavado. Deixei de comprar frescos, passei a comer congelados. A fruta passava um tempo de quarentena.”
Assustava-o, sobretudo, a possibilidade de precisar de ir ao hospital de urgência por qualquer motivo e “não poder ser atendido”, por todos os recursos estarem afetos ao circuito covid-19. “Estávamos todos no mesmo barco; se isto afundasse, íamos todos”, aclara Francisco Costa.
O verão de 2020 abriu brechas no arame farpado da proteção: passou a sair de casa, a caminhar numa linha de comboio desativada, paralela ao rio Tejo, e em que “ninguém passa”. De tão repetido, o passeio “já não tem piada”, mas a lembrança do retorno ao confinamento tão duro de janeiro pesa a cada passo que dá. “Há coisas que deixei de fazer, de todo. Durante todo este tempo, só recebi cá em casa uma pessoa. De todas as vezes que cá entrou, teve de me provar que estava com teste negativo.”
O nómada digital com formação em Psicologia e Relações Internacionais não voltou a ir a uma esplanada ou a um restaurante. “Não me sinto seguro, e às vezes até tenho pesadelos em que estou num sítio e fico assustado por me dar conta de estar sem máscara”, assume. Ir de férias também não é opção. “Não me sinto seguro para viajar para outros sítios neste momento.”
Cristina Albuquerque, psicóloga certificada pela European Association for Aviation Psychology, admite que “há uma resistência maior a sair” em alguns pacientes que acompanha, decorrente do “desenvolvimento de fobias sociais, fobias a estar com pessoas”. A especialista defende que esta não é necessariamente uma situação patológica e que pode apenas tratar-se de uma resposta “natural e instintiva”.
Confinar foi difícil, mas desconfinar pode não ser mais fácil. “Somos um animal de hábitos e, portanto, parecendo que não, depois de mais de um ano a ter determinados cuidados, a não poder fazer uma série de coisas e a sentirmos que a nossa casa é o sítio mais seguro, deixou de ser natural nós sairmos com espontaneidade”, salienta a psicóloga especialista em aerofobia (o pânico gerado em torno da ideia do voo).
Pânico dos aviões, os testes, as máscaras
É natural que a necessidade de se sujeitar a um teste à covid-19 e de pensar nas restrições do território a visitar desempenhe um papel dissuasor, esclarece Cristina Albuquerque. “Quando as pessoas viajam de avião agora estão sujeitas a um escrutínio ainda maior, que pode provocar ainda mais tensão. A maior parte das pessoas ainda está um bocadinho conservadora relativamente a viagens aéreas.”
Francisco Costa reconhece que não é o voo que o assusta, depois de muito se ter informado sobre o risco dos mais diversos ambientes: “Supostamente o ar da cabine é renovado, e os passageiros estão de máscara”. É a “sensação de usar máscara tanto tempo” que não lhe agrada. “É algo particularmente doloroso. Podiam pagar-me que neste momento não faria uma viagem dessas.”
O psicólogo Osvaldo Santos considera que esta tendência é particularmente notória em “pessoas que já têm perceções de risco que causam mais sofrimento psicológico do que é habitual”, e não uma realidade que se estenda à população em geral. “Os processos restritivos como os que nós vivemos até tendem a favorecer o oposto, que é alguma vontade de desinibição. A espécie humana funciona muito assim. É como quando estamos de dieta. Ao fim de algum tempo em casa, as pessoas querem é sair.”

Pode ainda acontecer que a permanência em casa por tanto tempo “tenha aumentado a vontade de estar em casa, não necessariamente por medo”, acrescenta o psicólogo clínico, que encara a possibilidade de as pessoas mais tímidas verem agora o domicílio como o último reduto de segurança. Osvaldo Santos refere-se às pessoas que, “durante um ano e meio, não treinaram as competências sociais que deveriam ter treinado”, e que agora se sentem protegidas da exposição à vida social quando em “clausura”.
Segundo a Anxiety UK, uma associação que estuda transtornos de ansiedade no Reino Unido, para algumas pessoas, será difícil suspender de repente as restrições. Num inquérito realizado pela organização, 36% dos mais de 900 entrevistados disseram estar “muito felizes ao ficar em casa”. O impacto da covid mudará a forma como muitas pessoas encaram os planos sociais e viagens ao estrangeiro, “e levará algum tempo até que a confiança de todos retorne e a vida normal seja retomada para níveis pré-pandemia”.
Larry Rosen, do Departamento de Psicologia da Universidade Estatal da Califórnia, assiste a um fenómeno contrário nos Estados Unidos, que já vão avançados no processo de vacinação. “As pessoas começaram imediatamente a abandonar as suas casas. Claro que não nos adaptamos imediatamente. Aliás, ainda há uma certa ambivalência nas crenças das pessoas, sobre se ainda deveriam ficar em casa.” Apesar de alguma hesitação, no sul da Califórnia, “está-se a tentar viajar ainda mais e a gozar férias acumuladas”.
Stress, imprevisibilidade e adaptação
Bethany Teachman, do Departamento de Psicologia da Universidade de Virgínia, nos EUA, também lembra que há pessoas que privam com familiares cujo risco de desenvolverem doença grave se forem contaminadas com o coronavírus é elevado. “Há pessoas que sentem muita ansiedade em retomar as atividades habituais, e devem fazê-lo passo a passo, até se sentirem seguras.” A especialista antecipa que a maior parte da população recupere a vontade e a confiança brevemente. “No entanto, para algumas pessoas, especialmente pessoas que perderam entes queridos ou tiveram problemas de saúde, ou ainda perderam o emprego e atravessam um período mais complicado, poderá demorar mais tempo. É um momento de muito stress e imprevisibilidade, mas, se as pessoas continuarem a isolar-se indefinidamente, devem procurar apoio.”
De acordo com um inquérito realizado pela Deco, perto de um quarto dos portugueses dizem-se sem planos para o verão. Um quinto (20%) assume que vai ficar em casa e apenas 6%, sobretudo população jovem dos 25 aos 39 anos, planeiam viajar para o estrangeiro. A hipótese de alugar casa em território nacional reúne mais adeptos. São os mais velhos os mais reticentes em relação a hotéis, alojamentos locais e hostels. Há um ano, um em cada cinco portugueses afirmava que permaneceria em casa, 48% diziam que optariam por fazer férias em Portugal e apenas 20% no estrangeiro.
Para Francisco Costa, um nómada digital no mundo pré-pandemia, culturas diferentes podem implicar formas distintas de encarar o risco. O maior receio do criador de conteúdos é estar perto de pessoas “que são negacionistas”.
A psicóloga Cristina Albuquerque frisa que o aumento de perceção de risco e alguma ansiedade podem não ser motivos de preocupação. Afinal, este é um momento único na vida de todos, para o qual a flexibilidade é continuamente mobilizada. “Tem sido um processo muito dinâmico, e em que as orientações e as diretivas mudam. Hoje posso ir para um destino qualquer, e no dia em que eu voo está tudo bem, mas, nos dias em que lá estou, já é preciso fazer outras coisas.” Para muitos, a vida só se abrirá ao Mundo quando a pandemia – e a ansiedade – der tréguas.