Extrema-direita, a via rápida do descontentamento ao populismo

O Mundo não pára. O país também não. A direita radical conquistou um lugar no sistema político. As crises asfixiam e as desigualdades aumentam. O medo cresce. Movimentos subversivos aparecem no radar. Os negacionistas refutam evidências. E a pandemia é um rastilho. Onde estamos? Para onde vamos?

2021. O ano desponta. Tanto pela frente, tantas feridas abertas. Uma pandemia. Uma crise social e económica. O medo de perder o chão. O descontentamento aumenta. O cansaço social borbulha e fervilha numa panela de pressão. A extrema-direita ganha terreno, os negacionistas aparecem, as autoridades policiais detetam organizações associadas à violência, coladas aos movimentos neonazis. O populismo aponta a mira aos “novos judeus”: os ciganos, os negros, os imigrantes, as mulheres, os pobres, os mais vulneráveis. As redes sociais ajudam no que é preciso. A Esquerda e a Direita tardam em perceber que o Mundo mudou. E as fragilidades de uns tornam-se a força de outros.

A extrema-direita cresce na Europa e no Mundo. E o Mundo assiste ao populismo de Trump, a medidas extremistas, anti-imigração, a anúncios de um muro. Ao populismo de Bolsonaro, a narrativa antissistema, a negação da pandemia, a frase que o Holocausto pode ser perdoado. Ao Brexit que reabilitou a Frente Nacional Britânica, de orientação ultradireitista. A Matteo Salvini, da Liga Norte, nacionalista, eurocético, antiglobalização, que tentou derrubar o Governo italiano de Conte. Aqui ao lado, em Espanha, o nacionalista Vox, partido populista de direita liderado sem sufrágio interno por Santiago Abascal, que em sete anos se tornou um dos partidos mais votados, cresce à boleia da crise da Catalunha e da crise migratória. Rejeita o aborto, é contra o casamento de pessoas do mesmo sexo. Marine Le Pen, o rosto da extrema-direita francesa, líder da União Nacional, é eurodeputada. E tantos outros que se colam à direita extremista.

A extrema-direita também cresce no nosso país. “Portugal é dos países da União Europeia com mais desigualdade social. O Estado social de Direito foi sempre menos social do que os do resto da Europa, seguimos políticas de salários baixos, o que não permitiu criar uma classe média ampla e estável. A pandemia veio aumentar a vulnerabilidade das famílias, o perigo da pobreza abrupta, o que criou o pânico ante a iminente perda do pouco que se foi granjeando”, refere Boaventura de Sousa Santos, sociólogo, diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

“Este é o caldo político para demagogos oportunistas, que são peritos em política de ressentimento, virar vítima contra vítima. Assim, os ciganos e os imigrantes convertem-se nos causadores dos nossos males.” A apatia parece instalada. “As forças de Esquerda não se souberam entender para criar uma frente coesa contra o aventureirismo. Ainda não se deram conta do novo Mundo em que estamos. A Direita relaxa, à espera que o poder lhe caia nas mãos.” E há o movimento global de crescimento da extrema-direita que, afirma, “cria ‘boas práticas fascistas’ imitadas por aprendizes de feiticeiro”.

Donald Trump
(Foto: Andrew Caballero- Reynolds/AFP)

Há ainda o passado, as marcas que ficam. “Portugal não fez um julgamento político sobre o regime de Salazar, sobre o terrorismo de Estado (crimes da ditadura) ou sobre o colonialismo e o último período colonial. Em parte, isto deveu-se à natureza do 25 de Abril que antes de ser uma revolução democrática foi um golpe de Estado por parte de setores das Forças Armadas, que antes tinham sido um dos pilares do regime.” A descolonização da História moderna do país está por fazer. “Intelectuais com presença na Comunicação Social escrevem livros em que consideram Salazar um dos grandes políticos portugueses do século XX. Nem os espanhóis se atrevem a tanto sobre Franco e muito menos os italianos sobre Mussolini ou alemães sobre Hitler”, sublinha. “Este ‘esquecimento’ da ditadura cria o saudosismo de voltar a um passado imaginado mais tranquilo e com a pobreza mais amplamente distribuída”, defende Boaventura de Sousa Santos.

O caldo político, a democracia que adoece

De repente, Portugal discute o confinamento sanitário de ciganos, a castração química de pedófilos, a retirada de ovários a mulheres, a revisão da Constituição, uma nova república. Como se a tampa de um baú saltasse. Estes temas estão em todos os manuais do fascismo, lembra Boaventura de Sousa Santos, que tem vindo a alertar para a divisão das forças de Esquerda, para a Direita partidária e mediática que quer provocar eleições antecipadas, perante um Governo minoritário depois de o Bloco de Esquerda ter votado contra o Orçamento do Estado. “Neste caldo, o fascismo profundo da sociedade portuguesa tem agora uma voz pública que é o Chega. É de fascismo que estamos a falar”, frisa.

Onde estamos, então? “Estamos, pois, talvez em vésperas de um período de desestabilização perigoso. Doutro modo não se explica que um partido com um só deputado esteja a marcar a agenda política. Isto é um dos piores sintomas de que a nossa democracia está a adoecer”, prossegue o sociólogo. “Rui Rio, ao romper o cerco sanitário a um partido com ideologia fascista, cometeu um erro fatal que vai custar caro à democracia”, acrescenta.

Para onde vamos? “As forças democráticas ou tomam consciência da situação ou não tomam. Se tomarem, por exemplo, vão deixar que a legislatura chegue até ao fim e, daqui a quatro anos, saibamos mais detalhadamente quem financia o Chega e a pulsão violenta, autoritária, que o habita.”

A tensão aumenta. Ataques contra minorias étnicas, conflitos raciais, manifestações contra o racismo, negacionistas que rejeitam que há uma pandemia. Portugal não fica imune. Há alguns movimentos subversivos, neonazis, armados, detetados no radar dos serviços de informação e das autoridades policiais. Fala-se em skinheads. Há militares investigados por ligações a ideais fascistas. A infiltração da extrema-direita em movimentos de contestação social exige a máxima atenção. O ódio é lenha fácil de arder, o populismo é um vírus que se entranha.

Há pouco meses, menos de seis, surgiu o Observatório da Extrema-Direita, projeto de reflexão crítica e inquieta sobre movimentos extremistas e riscos para a democracia. O que é a nova extrema-direita? Quem são os seus protagonistas que se dizem fora do sistema e vivem do sistema? De que forma se alimenta do racismo, da xenofobia, do conservadorismo? Perguntas para debater à luz da História, da Sociologia, da situação do país e do Mundo. E não é por acaso.

Jair Bolsonaro
(Foto: Alan Santos/AFP)

Fernando Rosas, historiador, professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Faculdade Nova de Lisboa, integra o observatório. Na realidade portuguesa, quase tudo se resume ao Chega. Rosas não tem dúvidas de que é um partido de extrema-direita, muito semelhante ao Vox, não comparável aos movimentos fascistas dos anos 30, subversivos, violentos, anticomunistas, antissocialistas. A extrema-direita não é igual, mas vem daí. O Mundo mudou, a Europa não é a mesma. Mas há uma semelhança ideológica. “Estes movimentos tendem a cavalgar o descontentamento das classes intermédias, o medo, o medo do desemprego, a insegurança e, de alguma forma, o obscurantismo.”

Moldaram-se às circunstâncias. “Tentam adaptar-se ao sistema, fingindo aceitá-lo, engravatando-se, jogando dentro do sistema.” Com discurso racista e xenófobo. “Os bodes expiatórios são os ‘novos judeus’ do século XXI”, aponta o historiador. Os ciganos, os negros, as mulheres, os pobres. Usam as redes sociais de uma forma avassaladora e aproveitam-se de uma “certa morte da política”. “Jogam muito com a manipulação da História, com a desmemória.”

O autoritarismo, a punição dos pobres

O descontentamento social transpira por todos os poros. O cansaço aumenta com uma pandemia que destapa fragilidades e desigualdades. São as restrições do Governo, a gestão da pandemia, as regras da Europa, as injeções para a banca, a restauração caída, o turismo a definhar, lay-off atrás de lay-off, a economia fragilizada, recibos verdes sem amparo, cultura de rastos, indústria que não aguenta, desemprego a subir, apoios sociais que não chegam, dinheiros que vão sempre para os mesmos. A sociedade estrebucha, contesta o sistema, protesta. Tanto desencanto é matéria-prima para quem o sabe aproveitar. E os perigos do submundo neofascista, violento, agressivo, estão à espreita.

A imunidade do sistema português à extrema-direita não era, de todo, uma ideia consolidada, segundo Manuel Loff, historiador, professor associado do Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Universidade do Porto, investigador no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. A extrema-direita sempre existiu no país, “pelo menos desde finais dos anos 70” do século passado, recorda. “Existe há muito tempo, agora encontrou motivos e condições para se autonomizar do PSD e do CDS e fazer o seu percurso à parte e impor à Direita clássica negociações concretas para partilhar o poder.”

O que surpreende é a rapidez com que a Direita clássica aceitou a normalização do Chega e sua inclusão na esfera do poder, sem paralelo no panorama internacional. Manuel Loff garante que o Chega não inventou nada de novo. “Viu, à escala internacional, quais eram os slogans e os meios mais eficazes para divulgar a sua mensagem e foi copiar o que se faz em Espanha, em Itália, no Brasil.” E porque é que teve sucesso? A crise da direita é uma das razões. “A impopularidade da Direita clássica no final do Governo da troika, de Passos Coelho.” Outro fator, adianta o historiador, “é a radicalização muito evidente à Direita do discurso que os colunistas conservadores começam a assumir”.

Marine Le Pen
(Foto: Thomas Samson/AFP)

Nos últimos 20 anos, a média de votos de partidos populistas de Direita, associados aos autoritarismos do início do século XX, triplicou na Europa. No Parlamento Europeu, 10% dos partidos e 13% dos assentos parlamentares são de Direita eurocética.

Mas a extrema-direita tem dificuldade em assumir-se como tal. Há o fantasma do fascismo e do nazismo e há Auschwitz. “Há uma maldição histórica, justíssima, que se abateu sobre o nazismo e o fascismo. Dizem que são contra sistema porque aprenderam a lição de não dizerem que são contra a democracia.” Manuel Loff não parece ter dúvidas: “O que nelas [extremas-direitas] borbulha e o que delas resulta é o autoritarismo”. “Há uma crítica ao sistema democrático como se não houvesse uma crítica à democracia, mas há. Não são favoráveis à igualdade social, à igualdade de género, mobilizam-se por princípios antidemocráticos, defendem a punição dos pobres”, adiciona.

A Rede Europeia Contra o Racismo já avisou: “Desde 2019, quando o partido português de extrema-direita conquistou pela primeira vez lugares no Parlamento, os ativistas de extrema-direita têm sido encorajados a cometer crimes de motivação racial.” A ENAR (sigla em inglês) pediu uma “resposta urgente das autoridades portuguesas”, manifestou solidariedade com os colegas ativistas e revelou que vários defensores dos direitos humanos e famílias tinham sido “pessoalmente visados e ameaçados, e enfrentado discursos de ódio, ameaças de morte e assédio judicial”.

Há pouco mais de dois meses, várias escolas secundárias e universidades em Lisboa foram vandalizadas com frases de ódio. “Fora com os pretos! Por uma escola branca”, lia-se num muro da Secundária António Damásio, nos Olivais. Antes de 2020 terminar, a Universidade do Porto anunciava que tinha participado ao Ministério Público alegados atos de xenofobia e racismo, depois de denúncias de estudantes estrangeiros, sobretudo de nacionalidade brasileira.

Capitalizar o medo, aproveitar o descontentamento

Havia procura, não havia oferta. Havia espaço na Direita mais extremista que ninguém ousou ocupar. Era uma questão de tempo. Nas legislativas de 2019, o Chega elege um deputado. A Direita mais radical e extremista senta-se na Assembleia da República. Um ano depois, as sondagens dão conta de um crescimento nas intenções de voto, ultrapassando o CDS-PP. Nos Açores, viabiliza um acordo governativo para o PSD voltar ao poder.

A estratégia do Chega é capitalizar, segundo João Carvalho, investigador integrado no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, doutorado em Ciência Política. “Há toda uma alteração com o Chega porque André Ventura vem de um partido moderado (PSD), tornou-se popular a nível nacional – primeiro em canais televisivos com comentários desportivos e, depois, é candidato de um partido moderado a uma câmara grande, de Loures -, faz um discurso abertamente xenófobo e foi suportado pelo seu partido, que não lhe retirou confiança política. Passos Coelho manteve André Ventura como candidato à Câmara de Loures”, lembra. Ventura sai do PSD e cria o Chega, “com um capital político considerável”.

A extrema-direita repete que é socialmente de Esquerda, economicamente de Direita, que é a terceira via. “O discurso de André Ventura é bastante emocional, tem muito pouco conteúdo político, raramente tem uma proposta política, tem impropérios e adjetivos para imigrantes, para os seus oponentes políticos. É um discurso feito de adjetivação sucessiva que cria uma emoção, um sentimento de ultraje e de indignação – que é um pouco o que víamos com Trump -, mas que não está a ser desconstruído e é suportado por um racismo”, diz o investigador.

A discriminação e o racismo não são de agora. “O Chega não inventou o racismo em Portugal. O Chega está a capitalizar um racismo que existe na sociedade portuguesa, que nunca foi combatido, que é hegemónico, que é dominante. A xenofobia contra os ciganos é dominante, diariamente constatamos outras pessoas que proferem frases racistas com a maior das impunidades. O discurso de racismo em Portugal está implementado na sociedade portuguesa e não existe nenhum trabalho para o deslegitimar”, vinca João Carvalho.

Matteo Salvini
(Foto: DR)

Há muito tempo que havia, no nosso país, uma busca de populismo de protesto de Direita. Inquéritos e sondagens mostravam níveis de insatisfação com o funcionamento da democracia tão altos como em outros países europeus, onde já havia partidos de Direita radical fortes. “O que não havia em Portugal era um empreendedor político disponível a levantar esta bandeira do populismo de protesto de Direita”, comenta Riccardo Marchi, investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, especializado em movimentos da extrema-direita, autor do livro “A nova direita antissistema. O caso do Chega”.

A Direita usava, de vez em quando, o discurso de populismo que funciona e não saía daí. O investigador evoca Alberto João Jardim, “quando fazia a distinção da Madeira, como zona virtuosa, que tinha de combater os ladrões da metrópole, ou quando fazia declarações sobre a chegada dos chineses à Madeira e a abertura de lojas, na defesa do comércio madeirense contra a invasão chinesa”. Ou Manuel Monteiro, quando fundou a Nova Democracia, que tentou virar o discurso mais à Direita, com críticas à Europa e aos fluxos migratórios. “Mas não chegou a criar um partido realmente populista de Direita, não pisou muito no acelerador. O próprio Paulo Portas, como líder do CDS, muitas vezes, em campanha eleitoral, utilizou o tema da subsidiodependência, mas nunca colocando esta questão num patamar étnico, manteve-se sempre atrás.” Episódios pontuais, usados em campanhas eleitorais, nos partidos. “Nunca carregaram no acelerador por medo de serem apelidados de extremistas de Direita, de racistas, de xenófobos. Ficaram sempre parados.”

Até que apareceu Ventura. A oferta. “Com André Ventura, temos pela primeira vez, em Portugal, um empreendedor político que decide levantar esta bandeira, pisando no acelerador até ao fundo”, observa. “O André Ventura é uma construção não só desta demanda populista de Direita, que existia em Portugal, mas muito da Comunicação Social e da reação da Esquerda a partir da sua eleição no Parlamento”, sublinha o investigador, que classifica o Chega como partido de Direita radical, na extrema-direita em termos espaciais. “Porque não é subversivo, não é antidemocrático, quer mudanças profundas do sistema político dentro das regras do jogo democrático. Creio que Ventura tem claramente um preconceito em relação às minorias, mas é preconceito, não é racismo. O preconceito de André Ventura, pontualmente, desliza em atitudes racistas”, defende Marchi.

Perceber os sinais, avançar com reformas

Há um descontentamento com a globalização, as desigualdades crescem, as pessoas que tinham vidas estáveis estão sob pressão. Do ponto de vista sociológico, a extrema-direita capitaliza o descontentamento de um eleitorado sobretudo suburbano, rural, envelhecido, masculino.

A degradação das condições sociais que veio com a troika causou uma disrupção social e abriu caminho para um descontentamento cada vez mais evidente. Fernando Rosas vê condições propícias para os extremistas que sabem capitalizar o medo. “Sobretudo nas classes intermédias que estão em pânico com esta crise.” O combate, em sua perspetiva, tem de ser cívico, político, cultural, desconstruindo esse discurso, menorizando as suas causas. “Para atacar estes fenómenos, é preciso que um governo saiba responder aos problemas do medo, do desemprego, das desigualdades, do SNS.”

Manuel Loff, que também faz parte do Observatório da Extrema-Direita, constata evidências. “A desigualdade está a aumentar, a pobreza está a aumentar. Vamos andar num estado de ansiedade muito grande, um misto de medo e de profunda infelicidade, e todos os poderes vão ser criticados pela gestão da pandemia.” O medo nunca é um fator positivo de evolução política e social. E é esse sentimento que favorece a extrema-direita. “Vamos enfrentar a pós-pandemia com uma extrema-direita cada vez mais forte.” Essa extrema-direita que, considera, “não acha que a procura de igualdade seja uma prioridade, que não se revê no que são 200 anos de muitas lutas e conquistas em relação aos direitos”.

Santiago Abascal
(Foto: DR)

A História mostra o que acontece com a Direita radical. “Na Europa Ocidental, passados 30 anos, não temos democracias que ruíram, não temos constituições de sistemas autoritários”, assinala Riccardo Marchi. E não só. “O populismo de Direita funciona como termómetro dos problemas da democracia. O populismo de Direita nunca é uma causa da crise da democracia, é sempre uma consequência da crise da democracia. Temos uma democracia que já tem problemas, que tem níveis altos de descontentamento, e isso provoca o surgimento destes partidos.” E, aí, é preciso entrar em ação. “Aí são as elites, académicas, políticas, jornalísticas, que têm de intervir, que têm de perceber os sinais, avançar com as reformas e tratar de temas que não tinham sido tratados.”

Os negacionistas aproveitam a boleia do populismo. Boaventura de Sousa Santos acaba de publicar o livro “O futuro começa agora”, em que procura mostrar que, no contexto da pandemia, foram governos de Direita e de extrema-direita que negaram a gravidade da emergência sanitária, sobretudo Reino Unido, Estados Unidos e Brasil. “Com resultados catastróficos. O negacionismo está ligado a correntes reacionárias e movimentos anticiência, alguns religiosos, outros profanos. Durante a segunda onda, o cansaço do confinamento anterior, a frustração com os resultados do confinamento, alguma confusão nas medidas explicável pelo caráter caótico da contaminação, fizeram com que o negacionismo encontrasse adeptos num espetro político mais amplo”, realça.

O discurso do nós versus eles

O desencanto social aumenta, a extrema-direita explora o descontentamento, movimentos subversivos aproveitam o contexto, murmuram-se infiltrações perigosas. Para onde vamos? O que pode acontecer?

André Azevedo Alves, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, traça um perfil do Chega. “Adotou as bandeiras mais populares da Direita mais radical sem, no entanto, no seu discurso, colocar em causa o regime democrático e a democracia liberal.” É a tentativa de explorar as causas populistas da Direita, juntando as capacidades retóricas do seu líder que se confunde com o próprio partido. O trajeto é típico, perceber que há descontentamento na classe média e baixa, suburbana, com questões como a criminalidade, insegurança, questões étnicas, corrupção. E insistir no discurso “nós versus eles” como um porta-voz de um conjunto de descontentes. Onde há potencial, há estratégia. E a normalização acontece com o partido a entrar no jogo governativo e a querer a sua fatia de bolo do poder. O Chega pode ir para qualquer lado. Num partido estruturado, o que habitualmente acontece é que as lideranças mais extremistas se moderam, viram-se para causas mais populares. “O caminho para o relativo sucesso eleitoral passa quase sempre por uma moderação do discurso”, sustenta o politólogo. A questão é quando a dicotomia nós/eles deixa de fazer sentido, quando há influência direta sobre o poder. “Pode fazer a quadratura do círculo, estar dentro e discursar como estando de fora.”

O Chega está para durar? “Vai haver um crescimento do mercado eleitoral do Chega. Se vai ser bem-sucedido, não sabemos”, responde João Carvalho. A estratégia poderá passar por atrair pessoas de outros partidos e começar a aumentar o nível de credibilidade dos seus quadros. A questão é que, em seu entender, o discurso do Chega não é desconstruído. Quem são os portugueses de primeira, quem são os portugueses de segunda? “Não lhe perguntam se será tirando os 54 milhões do Rendimento Social de Inserção que vamos financiar as consultas no privado. Este discurso passa impunemente”, refere o investigador.

A “Notícias Magazine” tentou, sem sucesso, obter reações de André Ventura.

Jorge Pires, dissidente e descontente do Chega, demitiu-se e desfiliou-se do partido, depois do convite para ficar à frente da Distrital do Porto. Bateu com a porta, não por não se rever no projeto, mas pela falta de coerência: o vice-presidente do partido está nos órgãos sociais de uma fundação, quando o Chega é contra as fundações que têm benefícios fiscais. “O Chega é um partido antissistema, é um partido de causas, é um partido de descontentes que não têm quem olhe por eles.” Mas Jorge Pires vê problemas. “Os conflitos internos vão dar cabo do partido. Há muitos que veem uma oportunidade de vingar, de protagonismo, de palco que nunca tiveram”, salienta. E o partido pode implodir na discussão de lugares. Em seu entender, o partido não pode ser apenas uma pessoa e as bases não podem ser esquecidas. “Mas como é que ele vai organizar um país se não consegue organizar uma casa com 17 mil militantes? Não há nenhum político que consiga levar um país para a frente sozinho.” Seja como for, o Chega continua a fazer sentido, para Jorge Pires. “O André diz aquilo que as pessoas querem ouvir porque as pessoas estão fartas. São 46 anos de lóbis e compadrios que temos de quebrar.”

Um novo ano começa. O passado é uma herança que ajuda a compreender o presente. E o futuro desenha-se hoje. Todos os dias.