Margarida Rebelo Pinto

Estrela de mil cores


Crónica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

O essencial é invisível aos olhos e a intuição é o olhar do coração. O teu é enorme, complexo, misterioso, cheio de amor e de dúvidas. Esta missiva serve para te dizer que o amor vence todas as dúvidas.

Querido Gonçalo, não sei ao certo onde te encontrar. A tua querida mãe, o teu pai, os teus avós, tios e primos dizem que estás nos braços de Nossa Senhora. Dado que são dotados de vasta sabedoria e de enorme coração, devem estar certos. Para eles e para todos aqueles que te amam, o Natal será diferente para sempre.

Desde que partiste, olho todos os dias para o céu à procura da tua imagem. Com uma personalidade tão forte e inventiva, imagino-te a dançar num anel de Saturno, ou sentado numa montanha lunar, a beber uma mini e a cantarolar música espanhola. Estejas onde estiveres, a tua energia explosiva inundará todo o espaço em redor. Vejo-te com dez pincéis em cada mão, inventando cores e texturas, pintando telas gigantes de mulheres sensuais, ou moldando esculturas que parecem animadas, de rapazes irrequietos e insatisfeitos como tu.

Passei duas semanas a sentar-me à secretária, tentando escrever sobre ti e sobre a dor imensa que é perder um filho, um irmão, um neto, um sobrinho, um primo, um amigo. É um ofício que nunca me custa, para mim é como respirar, mas em vez das palavras me saltarem do coração para os dedos, estes entrelaçavam-se como numa prece e os meus olhos só encontravam paz no azul do mar. Depois, saía de casa e ia abraçar os teus pais e o teu irmão. Não me ocorria fazer mais nada senão estar perto deles. Consegui que comessem ovos mexidos e bacalhau à Brás, na verdade, não consegui nada sozinha, somos dezenas de amigos, um todo maior do que a soma das partes, satélites de uma família alargada que tenta atenuar a dor e a tristeza da tua partida.

Demorei vários dias a perceber que não saía uma linha, porque não estava a fazer o que tem sentido. O que tem sentido não é escrever sobre ti, nem sobre como a vida é breve e frágil, nem como continuar a ter forças para abraçar os dias, quando o calor dos teus braços é agora a mais doce das memórias. O que tem sentido é escrever para ti, porque tenho a certeza de que irás ler com o teu coração. O essencial é invisível aos olhos e a intuição é o olhar do coração. O teu é enorme, complexo, misterioso, cheio de amor e de dúvidas. Esta missiva serve para te dizer que o amor vence todas as dúvidas.

Somos sempre muito mais importantes na vida dos outros do que aquilo que imaginamos. Aprendi isto já depois dos 40, porque quando tinha a tua idade – na eternidade terás sempre 26 anos – o futuro era uma névoa carregada de pontos de interrogação. O sonho da escrita nascera comigo, tal como o dom da pintura nasceu contigo, deixando nos teus quadros e esculturas o teu rasgo, o teu espírito e a tua alma. Tal como tu, era ainda uma miúda, demorei muito tempo a acreditar em mim.

Hesitei muito em escrever-te, pois o luto pede pudor e discrição, silêncio, contemplação e recolhimento. As palavras que aqui te entrego não são minhas, são em nome da tua família e de todos aqueles que te amam e que sempre acreditaram em ti. E são tantos, querido Gonçalo. São quase tantos quantos os pontos de luz com que a noite se enfeita.

Sem ti, o Natal nunca mais será igual. Mas todos acreditamos que, desse lugar mágico onde te encontras, amparado pela paz da eternidade, consegues ver-nos a todos, um a um, a abraçar-te no infinito, para te dizer que viverás para sempre no nosso coração, como uma estrela de mil cores que enfeita o céu das nossas vidas.