Margarida Rebelo Pinto

Espelho meu, espelho meu


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

O problema é que o mundo atual não permite que ninguém envelheça. Talvez os Abba tenham encontrado na digressão virtual a solução ideal para não se cansarem.

Não teve uma infância feliz quem não foi à Feira Popular, não andou na Roda Gigante, não se lambuzou com algodão-doce, não se aventurou no Comboio Fantasma e não entrou na Casa dos Espelhos.

Talvez esta última atração, singela e algo torpe, fosse a que me causava mais espanto. De espelho em espelho, a minha imagem monstrizava-se: ora tinha as pernas como estacas, ora o tronco se assemelhava a um coqueiro, ora a cara parecia uma caraça deformada que lembrava quadros que já vira e não conseguia entender: “As meninas” de Picasso, inspiradas nas de Velázquez, ou “O grito” de Munch.

Lembro-me de a abandonar sempre com uma vaga sensação de enjoo. A disformidade assustava-me e o ruído confuso e agressivo da feira não me dava descanso. Em breve, um condomínio de luxo irá erguer-se naquele terreiro que foi palco de memórias da infância de tantas gerações. Quando levava o meu filho em criança, nenhum de nós imaginava que a Feira Popular ia desaparecer. A geração South Park tem outra relação com o absurdo, está preparada para muito mais coisas do que nós. As suas gargalhadas delirantes ecoam ainda na minha memória de mãe, perante as suas pernas de gigante, os braços de alienígena e as caretas horrendas.

Quarenta anos depois do seu último grande sucesso – e não foram todos? -, a maravilhosa banda pop que pôs a Suécia no mapa voltou a gravar um álbum. O que os fez criar um show virtual para fazer uma digressão mundial deixou-me intrigada. O projeto é baseado na moderna técnica do “deep fake”: a partir de uma agregação de dados visuais e sonoros, é fabricada uma imagem tão realista que nos faz acreditar que Agnetha, Anni-Frid, Bjorn e Benny estão lá.

Ao ver os quatro míticos suecos em estúdio, não foi fácil reconhecê-los, embora não estejam assim tão diferentes. Claro que não estão, são as mesmas pessoas. O que lhes aconteceu é a vida: chama-se envelhecimento.

O problema é que o mundo atual não permite que ninguém envelheça. Talvez os Abba tenham encontrado na digressão virtual a solução ideal para não se cansarem, e para que a sua imagem se eternize naquela que o mundo conhece. E agora uma pergunta de um milhão de euros: não será essa a imagem que o mundo quer?

Podemos, através de hábitos saudáveis de vida como dormir bem, comer melhor, praticar exercício físico e treinar a felicidade, atrasar o envelhecimento e melhorar os dias. E podemos usar todos os filtros do Instagram para enganar o tempo e a realidade. Existem aplicações para apagar rugas, estreitar a cintura, alongar as pernas, alterar a forma do nariz, acrescentar pestanas, cabelo e peito. Tudo isto é muito bonito, mas faz-me lembrar a Casa dos Espelhos, porque a imagem criada é uma projeção idealizada, distorcida da realidade, que torna reféns as cabeças mais fracas. E parece-me bastante inútil, porque quem nos ama, vê-nos para lá de todos os sentidos.

Quando alguém viveu na nossa cabeça e no nosso coração durante muitos anos e passámos algum tempo sem o ver, o primeiro impacto traz-nos a imagem atual, mas rapidamente o nosso cérebro regressa ao passado. Instantes depois, aquela pessoa volta a parecer igual à que amámos há 10 ou há 20 anos. “Estás cheio de brancas, mas o sorriso é o mesmo, vejo-te igual”, dizemos com um sorriso tímido, desejando que o outro também nos veja com o coração.

O espelho não sabe nada. O amor é que sabe, incluindo o amor-próprio.