Rui Cardoso Martins

Especialista em ângulo morto

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

O futuro, dizem muitos, é a especialização das pessoas. Eu invento vacinas em dez meses, tu fazes bolas de Berlim. Aquele cria bebés-proveta, o outro usa o método antigo. Especializai-vos, escolhei uma ciência exclusiva e obscura, desprezai a cultura geral. Mas por isso é que podemos encontrar, num mesmo cidadão, um grande conhecedor de um único assunto e um ignorante na chamada vida. O jovem Daniel especializou-se no “ângulo morto” dos carros. Deu-lhe para isso: o momento mágico em que o condutor olha para o lado, olha para trás, não vê outro veículo que já está em cima dele e pumba! Aparece (ou desaparece) no ar como Mandrake, dizia Dinis Machado. A sabedoria ângulo-mortal de Daniel é ainda mais selecta: os outros, quando se atrevem a cruzarem-se com ele numa via pública, têm de adivinhar o ângulo morto do carro de Daniel, quando este muda de via para inverter a marcha num sítio proibido! Se chocarmos, voarmos por cima do capô e esmigalharmos os ossos no alcatrão, a culpa é nossa. Leitores, ciclistas, motociclistas, motoristas do Planeta, se não quereis morrer na estrada, especializai-vos no ângulo morto de Daniel.

A juíza aquecia os motores da sentença. Estava chocada com a namorada de Daniel. “Esta testemunha começou o seu discurso quase de forma apurada, dizendo que o arguido pôs o pisca, olhou primeiro para o retrovisor exterior à sua esquerda, e depois olhou para o retrovisor no interior, verificou que não havia nenhum carro, e foi aí que iniciou a sua manobra, abrandando o seu veículo. Ora, desde logo abrandar o veículo para mudar de via não é uma condução normal, mas principalmente esta testemunha, que estava dentro do veículo, e que era apenas, entre aspas, o “pendura”, ter noção exacta destas condutas, é absolutamente inverosímil. Mas o pior ainda é quando a testemunha mostra não saber sequer se há semáforo, ou se não há, e não saber quando é que o arguido ia virar, diz que não ia inverter, mas afinal ia encostar à direita para virar à esquerda… Manifestamente, a testemunha veio cá mentir e obviamente teremos de tirar as respectivas conclusões.”

Daniel, a sua namorada vai ter de se especializar em perjúrio, será chamada mais tarde a tribunal.

A juíza disse, com base nas outras testemunhas, nos “croquis”, nas fotos, que foi Daniel quem se atravessou à frente da mota. Um crime de ofensa à integridade física por negligência. Com “grau de ilicitude muito elevado”. O homem da mota sofreu lesões significativas. Pena de prisão de 90 dias a cinco euros por dia: 450 euros. Mais sete meses sem conduzir.

– Senhor arguido, este processo é caricato, suspirou a juíza, metendo a segunda mudança.

Porque o ofendido não pedira nada, nem indemnização. Podia nem ter havido julgamento. Mas era uma questão de princípio.

– Depois de começarmos a fazer a prova, percebemos à exaustão porque é que o ofendido não desistiu da queixa. E fez ele muito bem, porque o arguido não foi homem, e “Homem” aqui é um Homem com letra maiúscula, para assumir a sua culpa.

Daniel “veio ao tribunal contar a história da carochinha, mas sem sequer perceber que ao contar a história da carochinha estava a admitir a prática do crime. Chegou ao ponto de dizer que foi o ofendido o culpado porque não estava longe o suficiente do arguido que conduzia à frente e que mudava de via de trânsito. É incrível o arguido dizer isto! E mais incrível ainda é o arguido ficar ofendido quando ligou ao ofendido verdadeiro e este lhe ter pedido para assumir as culpas! É muito grave o que fez e aquilo que ainda pode fazer! Porque não tem noção que pôs em causa a vida desta pessoa. Esta pessoa não morreu por acaso!”.

Agora a quarta, quinta e sexta mudanças:

– Ainda tem a… eu ia chamar a lata, entre aspas, ainda se atreve a dizer que o ofendido é que não se afastou de si! O ofendido que vem na via dele é que vinha “muito perto” e depois pôs-se no ângulo morto, como se estar no ângulo morto fosse justificação para alguma coisa! O arguido sabe que há ângulos mortos e que nestas circunstâncias tem de abrir o vidrinho e espreitar lá para trás. Ou são os outros que têm de ter cuidado!? Mentir é preciso saber, e nem todos sabem. E além de mentir, ainda está convencido que se alguém está no ângulo morto, e se matar essa pessoa, o arguido é absolutamente inocente!

A mentir, Daniel não se especializou.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)