Espaços com décadas de histórias fechados pela pandemia

Décadas de história de cafés, restaurantes e hotéis foram interrompidas por uma pandemia que não dá tréguas. Por todo o país. Um travão que nem nas grandes guerras aconteceu. Perderam-se as filas à porta do Majestic Café ou as vistas para o Mondego do Hotel Astória. Fecharam num 2020 negro. Para alguns é um adeus. Para outros um até já.

O barulho da máquina do cimbalino, do moinho do café a trabalhar, o frenesim de filas que chegaram a contar 70 pessoas à porta numa espera por mesa. “Isso tudo faz muita falta. É um vazio que sinto agora.” As saudades são de Fernando Barrias com os olhos na fachada imponente do café mais emblemático que mora na Rua de Santa Catarina, no Porto. Está fechado. A crise provocada pela pandemia vergou um negócio que passou a receber pouco mais de uma dezena de clientes por dia, mas não lhe ditou o fim. Não é um adeus, é um até já.

Dentro do Majestic, o mármore branco das mesas já não se enche de cimbalinos acabados de tirar, os candeeiros imponentes não iluminam o espaço e os espelhos só refletem o branco e o rosa das paredes num vazio de gente. Prestes a entrar no clube dos centenários – abriu em 1922 -,o Majestic bateu a porta a 30 de novembro. Porque não vive sem clientes. E nisso, a queda no turismo teve um grande peso. “A quebra ultrapassou os 75%. Nos últimos meses, chegou aos 90%. A baixa está deserta, pior do que no crash da Bolsa de 1929. A própria Santa Catarina, a partir das 18 horas, é um deserto. Custou-me muito. Isto é uma decisão muito difícil de tomar.”

Fernando Barrias, sentado numa mesa vazia do Majestic Café, anseia pelo frenesim das filas de clientes
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

A Fernando Barrias, a pandemia ditou-lhe o fecho de dois históricos cafés da Invicta, que o seu pai comprou na década de 80 do século passado. Além do Majestic, encerrou a porta do Guarany virada para a Avenida dos Aliados, a 15 de novembro. Mas isso não lhe roubou o ânimo de quem vive a história dos dois como se de filhos se tratassem. “O meu pai comprou os dois cafés falidos, iam transformar-se em bancos e estavam em risco de desaparecer. E conseguimos devolver-lhes a alma.” Nessa altura, ainda corria o trânsito em Santa Catarina e a clientela falava mais na língua de Camões, com sotaque portuense, do que noutra língua qualquer. “Era diferente. Não havia o boom do turismo dos últimos anos.”

Os cafés que em tempos eram das elites passaram a constar dos guias turísticos por carregarem História nas paredes e foram tomados por clientes estrangeiros. “Sem aviões no ar”, perderam o fôlego e “não compensa” ter a porta aberta. “Só estava a dar despesa, estava a correr atrás do prejuízo.” É o silêncio que agora toma conta da sala ampla do Guarany, que já conta 87 anos. Com os sofás encostados à parede despidos, o piano calado e os quadros em tons quentes sem gente para os apreciar.

Fernando Barrias também é dono do Guarany
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Nem durante a II Guerra Mundial, quando tinham de pagar uma taxa de guerra para estar abertos, os depois cafés históricos enfrentaram tão grande crise. Os dois estabelecimentos só fecharam portas para obras de restauro. O Majestic entre 1992 e 1994. E o Guarany entre 2001 e 2003. E, claro, no confinamento da primeira vaga. Nunca tinham fechado devido a uma crise. “2020 estava a correr muito bem até fevereiro. Nem parecia que era inverno. Mas a pandemia veio mudar tudo. Fomos todos apanhados de surpresa. Não estávamos preparados para isto”, conta o proprietário, que ainda guardava uma réstia de esperança para o verão. “Os ingleses deixaram de vir. A sala estava reduzida a 50%. Ajudou-nos as esplanadas enquanto o tempo esteve bom.”

Decidiu fechar sem previsão de reabertura. Agora, “é um dia de cada vez”, à espera que a pandemia dê uma abébia. “Ligam-me todos os dias a perguntar se está fechado. Pedem-me para não deixar isto. As pessoas sentem saudades do Majestic e do Guarany. Há uma ligação emocional com estes espaços.” Uma ligação que corre o Mundo. “Uma vez, fui a Breda, uma cidade na Holanda que faz fronteira com a Bélgica. Num café que não aceitava francos belgas, a dona ofereceu-me o café. Quis retribuir-lhe, deixei-lhe um cartão do Majestic. Ela começou a rir desalmadamente. E mostrou-me o escritório forrado com fotografias a preto e branco do Majestic, feitas pelo namorado que era do Porto.”

 

 

 

 

 

Já considerado um dos mais bonitos cafés do Mundo, por onde chegou a passar o antigo presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, vive tempos difíceis, mas desengane-se quem pensa que tem morte anunciada. Nem o Majestic, nem o Guarany. É uma promessa de Fernando Barrias, “confiante de que devagarinho isto vai voltar ao normal”. Uma fé que não o deixa baixar os braços. Talvez lá para março ou abril voltem a abrir.

Fechaduras trancadas para sempre

Fernando Barrias não está sozinho. Longe disso. Todo o setor agoniza com a razia na faturação e a escassez de clientela. A pandemia chegou que nem furacão e arrasou décadas de história de cafés, restaurantes e hotéis. Por todo o país. “Há milhares de cafés e restaurantes fechados, além de centenas de hotéis sem previsão para reabrir”, lamenta Luís Trindade, do Sindicato da Hotelaria do Sul. Há quem resista à espera de melhores dias e quem tenha batido a porta para sempre. “É nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra que se está a sentir mais o impacto da pandemia”, acrescenta o dirigente sindical, que atira para cima de 80% as perdas de receita nos que se mantêm a funcionar.

Alexandre de Almeida é dono do Hotel Metrópole, na Baixa lisboeta, que está fechado à espera de melhores dias
(Foto: Paulo Alexandrino/Global Imagens)

“São poucos os restaurantes que estão a funcionar, e os que estão investiram no takeaway, que não compensa a receita que tinham habitualmente. Os hotéis estão praticamente todos encerrados, os grupos hoteleiros centralizaram-se num ou dois estabelecimentos e fecharam os outros.” Preocupa o desemprego e as décadas investidas em formação. E este, garante, não será o ano da retoma. “Não é já em 2021. Há muita perda de poder de compra da população.”

Há perdas irrecuperáveis e portas que fecharam para sempre. É o caso do Ramon, o mais antigo restaurante de Vila do Conde, do Café Arcada, em Évora, que contava quase 80 anos, ou da Casa Aleixo, no Porto. Segundo a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), mais de metade da restauração tem três meses de renda em atraso. Na hotelaria, a pandemia empurrou para um limbo unidades como o Infante Sagres e o Dom Henrique no Porto, o Curia Palace Hotel em Anadia, o Metrópole em Lisboa ou o Boa Vista Hotel em Albufeira. Nem as décadas de experiência salvaram as cifras negras.

Além do Metrópole, na capital, também o Hotel Palace da Curia fechou ao fim de quase 95 anos, até haver condições para reabrir
(Foto: DR)

Na Invicta, segundo o Turismo do Porto e Norte, dos 122 empreendimentos hoteleiros, 40 encerraram. Por falta de turistas. A cidade está com uma ocupação de pouco mais de 20%. Os que ficaram para a guerra relatam mais empregados do que clientes. A sul, segundo Elidérico Viegas, presidente da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve, “mais de 80% dos quase 500 hotéis estão encerrados, e os que estão abertos não têm clientes”. Estima-se que só depois do primeiro trimestre deste ano as portas reabram. Sem certezas.

“Ou fechava os hotéis ou era uma agonia perfeita”

Alexandre de Almeida conhece bem as dores da pandemia. A hotelaria está-lhe no sangue. O Grupo Alexandre de Almeida Hotéis, fundado pelo avô, já ultrapassou a marca dos cem anos. Tem seis hotéis pelo país. E 2020 obrigou-o a fechar alguns que contam muito mais do que anos, contam História. O primeiro grande hotel de Coimbra – que abriu em 1926 – deixou de receber hóspedes na primeira vaga. Perderam-se as vistas para o Mondego, para o Convento de Santa Clara e a vida universitária agitada, mesmo ali ao lado, que pulsava pelas ruelas. “A procura desapareceu. Estamos a zeros desde 1 de abril.” Tem-lhe valido os apoios do Governo ao setor. Antes da pandemia, nem com a avalanche de novos empreendimentos contemporâneos e o advento da internacionalização do turismo, o Hotel Astória se deixou abater. Em vez disso, preferiu transformar a antiguidade em potencial.

O Hotel Astória, no centro de Coimbra, visto de fora nos anos 40
(Foto: DR)

“O Astória preserva até hoje o edifício de Arte Nova e Art Déco como é raro encontrar por essa Europa fora. Já não há hotéis vintage como o Astória, ou há muito poucos.” Talvez por isso os estrangeiros o procurem tanto. “Temos 30% de clientes portugueses e 70% estrangeiros.” Mas o ano de 2020 não deixou margem com a quebra no turismo. Nem a cápsula do tempo que o hotel parece criar, ao estilo “The Great Gatsby”, foi capaz de vencer o medo e as restrições. E fechou-se a porta da fachada emblemática da cidade dos estudantes, dos quartos com traça dos anos 20. “Começou por ser o melhor ano de sempre. E depois, pura e simplesmente, ficamos a definhar. Estamos em modo de sobrevivência.” Uma coisa é certa: está fora de questão encerrar definitivamente. O hotel há de reabrir quando houver condições. Tal como o Curia Palace Hotel, em Anadia, ou o Metrópole, na capital. Todos nas mãos de Alexandre de Almeida, que se diz “escravo da empresa” que o avô lhe passou.

O Hotel Astória, no centro de Coimbra, visto por dentro do seu restaurante L”Amphitryon, em 1926, quando abriu
(Foto: DR)

No Metrópole, que mora na baixa lisboeta agora deserta, o impacto foi ainda maior: 99% dos clientes são estrangeiros e esses não chegaram este ano. É o hotel das tias de Vasco Santana, no filme “A canção de Lisboa”, o hotel de quem chegava à capital pelos caminhos de ferro, o hotel que tem Lisboa à porta. Desde 1917, nunca tinha estado fechado. “Estamos todos à espera. Não há aviões. Não há grupos turísticos. Nunca aconteceu isto. Já ultrapassámos duas guerras, a gripe espanhola, muitas convulsões sociais e revoluções. Mas, no ano passado, ou fechava a porta e mantinha as unidades ou era uma agonia perfeita. Manter os hotéis abertos não seria mais do que bater com a cabeça contra a realidade como se a fosse alterar.” E a atual dependência dos estrangeiros deixa um amargo de incerteza. Alexandre de Almeida sabe que os eventos de massas não vão voltar tão cedo, as viagens de trabalho e o turismo idem.

Mas há previsões? “Não há perspetiva de data para abrir. Um dia temos a vacina, noutro dia uma nova estirpe. Está tudo muito instável. E ninguém sabe dizer qual o momento da retoma. Estamos na expectativa. O Mundo inteiro está.” A mesma que Rajesh Shah tem. Após as obras de requalificação, reabriu no último verão o Grande Hotel da Póvoa, mesmo colado ao casino da Póvoa de Varzim, para logo depois ser atropelado por um fecho inevitável. É lá diretor desde 2017. Mas a história do hotel, essa, é bem mais antiga, remonta a 1930. Rajesh Shah fala num português perfeito, embora o nome lhe denuncie a ascendência indiana. Nasceu em Moçambique e vive em Portugal há já três décadas.

Rajesh Shah, diretor do mais antigo hotel da Póvoa de Varzim, fez obras de requalificação no verão para pouco depois fechar
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

“O hotel estava muito degradado quando tomámos conta dele.” Desde então, começaram as obras no espaço icónico de 4 estrelas. Piso a piso, são sete. Ficaram prontas no ano passado, em plena pandemia, numa inauguração que soube a pouco. Ainda abriram as portas do hotel, que vive em património classificado, entre junho e setembro. Para logo as fecharem. “2020 foi um desastre. Mesmo nos melhores meses, de verão, devido à pandemia, pouca gente veio. Temos um cliente que casou há 50 e tal anos e que todos os anos no mês de agosto está cá. E não veio.” As quebras de faturação chegaram a atingir os 90%, com o recolher obrigatório aos fins de semana. “Chegámos à conclusão que fechados perdíamos menos. Um hotel nunca fecha as portas e no dia 1 de dezembro fechou.” É mais otimista do que Alexandre de Almeida. Quer reabrir em março. “Sabemos que este também vai ser um ano difícil. Mas esperança temos que ter sempre, é a última a morrer.”

Dar vida para voltar a morrer

Uma estimativa do Instituto Nacional de Estatística (INE) aponta que a atividade turística no país não recuperou no verão. Houve 1,4 milhões de hóspedes, 3,6 milhões de dormidas, o que representa quedas de 52,2% e 53,4%, respetivamente. O fenómeno não é português. É de todo o Mundo. No Brasil, a histórica Casa Villarino Bar, por onde passaram Tom Jobim ou Vinicius de Moraes, fechou após 67 anos. Vítima de uma pandemia que também obrigou a encerrar o Hotel Roosevelt, em Nova Iorque, quase cem anos depois de abrir. Um dos hotéis mais icónicos do Mundo, que serviu de tela a filmes como “O Irlandês” e alojou estrelas e artistas, não sobreviveu e despediu-se para sempre.

O Grande Hotel da Póvoa, que abriu portas pela primeira vez em 1930, está sem receber hóspedes desde o dia 1 de dezembro
(Foto: Artur Machado/Global Imagens)

Por cá, Mário Nogueira não tem meias palavras: “Tenho pena de ter fechado, mas não é com penas que nos governamos”. Os seus quase 70 anos já lhe permitem reconhecer o abismo ainda antes de lhe chegar perto. Depois de recuperar uma das mais históricas casas do Algarve, o Café Aliança, em Faro, no rés-do-chão de um edifício classificado, teve de voltar a dizer-lhe adeus. “O Aliança esteve fechado cerca de dez anos. Aceitei o desafio de o repor a funcionar em 2015. Estivemos cerca de um ano e meio em obras. Conseguimos reabrir em 2016.”

Mesmo não tendo costela farense – é natural de Chaves -, mudou a sua vida para o sul do país há mais de 30 anos. Não tem as memórias do café cheio das elites de Faro, nem dos convívios, mas reconheceu-lhe a importância. “O café foi construído por um emigrante que fez fortuna no Brasil a negociar café. Regressou a Portugal e quis construir em Faro o café mais moderno.” No espaço mais alto, cabia o chá para as senhoras. No mais baixo, os cavalheiros. Chegou também a ser o lugar onde os agricultores se encontravam para fixarem os preços dos produtos.

O Café Aliança, em Faro, fechou de vez na pandemia, depois de Mário Nogueira ter reaberto o histórico estabelecimento em 2016
(Foto: André Vidigal/Global Imagens)

Mário Nogueira não é o dono, é o inquilino de um espaço que já passou por várias mãos. “Consegui um contrato de arrendamento por dez anos. E reabri-o com outro conceito: cervejaria portuguesa.” Mas manteve-lhe a traça e o espírito. Só que o sonho só durou quatro anos, até a pandemia o obrigar a encerrar. O mármore escuro nas mesas combina na perfeição com a falta de luz elétrica e a tristeza de um adeus que não foi anunciado. Restam os candeeiros a decorar o balcão e os retratos na parede para manter viva a história.

“Decidimos encerrar definitivamente, prevendo que esta é uma crise para durar.” Mas as paredes do café, assegura, estão vivas. “Acabou a exploração feita por nós. Mas está em trespasse”, revela Mário Nogueira, como quem acredita que alguém terá a coragem e o arrojo de não deixar morrer o Aliança. “Os negócios só fazem sentido se gerarem lucro. Se for para ter prejuízo, não vale a pena. Tive muito orgulho em reabrir o Aliança. Tivemos que ser nós, do norte, a reabrir um espaço que pertence aos algarvios. Mas não vivemos de sentimentalismos e romantismos. A linguagem dos números é fria e realista.” Despediu mais de uma dezena de funcionários e continua a pagar a renda daquele que diz ser “o Majestic de Faro”.

Um Majestic que pode ter fechado para sempre. Já o do Porto há de resistir. Vive do amor de Fernando Barrias pela Belle Époque que lá se respira: “Está fora de questão fechar definitivamente. Isto é temporário, não é definitivo. Assim que houver condições, vamos reabrir”. Talvez daqui a uns meses se volte a ouvir o barulho da máquina do cimbalino e se possa assistir outra vez às filas à porta do Majestic. Como quem esqueceu uma pandemia que arruinou negócios, mas que não será capaz de destruir a História.