Escrutinados a toda a hora: o outro lado da fama

Abrir a porta da esfera privada ao público tem implicações que nem sempre se antecipam (Foto: Freepik)

A pressão a que as figuras públicas estão sujeitas não é um fenómeno novo. Mas as redes sociais, porta aberta para a vida privada dos ídolos, fizeram escalar os comentários sobre tudo: o que vestem, o que pensam, os casamentos, os filhos, o corpo.

Quando António Raminhos recua uns anos ao tempo em que as filhas Marias invadiram o mundo virtual e se estrearam como protagonistas dos seus vídeos cómicos no YouTube, é mais fácil lembrar-se dos dedos em riste do que do sucesso que acabaria por ter. Até porque o humorista traz a bagagem da ansiedade às costas. “No início, custava muito. Era a agressividade das pessoas, o modo como da boca para fora me acusavam de ser mau pai, me diziam que elas me iam odiar, tudo e mais alguma coisa. Isso deixava-me muito triste.” Raminhos conhece bem o lado perverso das redes sociais, foi isso que o fez eliminar a conta no Twitter no momento em que, a reboque de uma piada, o chamaram de pedófilo.

Raminhos partilha nas redes brincadeiras com as filhas, em vídeos divertidos onde também entra a relação com a mulher, Catarina
(Foto: DR)

O escrutínio diário, a pressão a que as figuras públicas estão sujeitas é uma realidade que veio adensar-se com o Facebook e todas as outras redes. “O facto de a pessoa estar por trás de um teclado facilita o ataque.” E o humorista sente-o nas mais pequenas coisas. Numa simples partilha com uma t-shirt da Adidas, marca de que é embaixador, chovem as críticas sobre a ter recebido e não comprado. “Há a ilusão de que temos uma vida espetacular, que não é. Tenho 900 mil pessoas a seguir-me, é verdade, mas são o resultado de 15 anos de trabalho. As pessoas esquecem-se disso.” Esquecem-se do tipo que começou no jornalismo, que viu o jornal onde trabalhava fechar, ficar no desemprego, pedir dinheiro aos pais e tentar abrir as portas da comédia.

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Recua na história, volta às Marias e assume: “É difícil gerir as críticas. Sobretudo porque fazia os vídeos de forma inocente, para me divertir e divertir as pessoas. Qualquer comediante faz piadas com a sua realidade. Brinco com as minhas filhas da mesma forma que um comediante que seja gago vai brincar com a sua gaguez.” A terapia ajudou, faz há muitos anos. Só que as redes sociais são instrumento de trabalho. Aprendeu a lidar. “Hoje não ligo um décimo do que ligava. Mostro muita coisa pessoal, a relação com as miúdas, mas há muita coisa que não publico. Desde piadas a brincadeiras, penso duas vezes antes de publicar. Fico logo a pensar que alguém vai pegar naquilo da maneira errada.”

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Nos últimos tempos, o comediante, que sofre de perturbação obsessivo-compulsiva, aproveita o palco do mediatismo para trazer a saúde mental para a berlinda. No podcast “Somos todos malucos” ou no livro, editado há semanas, “Somos todos estranhos até percebermos que isso é normal”. Até nisso é crucificado. “Já li que, como não sei fazer comédia, agora ando a vender isto da saúde mental. Enfim, faço para quem me quer ouvir.”

Falsa sensação de proximidade

Rute Agulhas, psicóloga clínica, reconhece o impacto que o escrutínio diário tem em pessoas mediáticas. “O facto de muitas figuras públicas partilharem nas redes sociais não apenas trabalho, mas também a vida privada ou íntima, como a casa, as férias, os filhos, contribui para que os seguidores sintam uma falsa sensação de proximidade. Quase como se fossem amigos da pessoa que seguem.” Isso potencia os comentários, as críticas. “Ao mesmo tempo, há muita curiosidade e prazer retirado da observação da vida da outra pessoa, tantas vezes idealizada. O corpo perfeito, a relação perfeita, os filhos perfeitos, a vida perfeita.”

Abrir a porta da esfera privada ao público tem implicações que nem sempre se antecipam. Mas o segredo está “em relativizar comentários e não personalizar”. “A pessoa deve evitar pensamentos negativos, como ‘toda a gente me odeia’ e ‘ninguém gosta de mim’. E pensar ‘não é possível agradar a toda a gente’ ou ‘isto traduz a opinião de alguém e não reflete a realidade’ pode ajudar a não catastrofizar.”

O fenómeno não é novo, todos sabemos. “As vedetas têm de garantir uma presença permanente no espaço público para se manterem visíveis. Antigamente, era a televisão que desempenhava esse papel. Hoje são as redes sociais.” Jean-Martin Rabot, sociólogo na área da comunicação, diz que, agora, as celebridades sobrevivem em função do número de seguidores nas redes, “onde exibem toda a sua vida”. “Há uma espécie de sobrexposição, uma proximidade absoluta, um contacto permanente. E tudo o que a figura pública faz é escrutinado. O casamento, o divórcio, as relações, as cirurgias plásticas.” O professor da Universidade do Minho lembra, para o caso, a morte de Michael Jackson. “Havia um processo a decorrer contra o médico dele nos Estados Unidos. E houve um movimento em França que lutava para assistir ao julgamento. Uma fã dizia: ‘Eu quero saber o que aconteceu ao meu Michael’. Como se ele fosse íntimo dela. Isso mostra bem esta realidade.”

Os fãs entram de tal forma na vida dos ídolos “que acabam por exigir da vedeta mais exposição, que diga o que está a fazer, onde vai, com quem vive, o que come, o que veste, o que pensa”. Criar limites é um desafio difícil. “Toda a pessoa, por mais famosa que seja, tenta preservar uma parte de si própria. Mas é difícil. E as redes sociais contribuíram grandemente para isto.” É o outro lado da moeda, da fama. Um exemplo. “Quando morreu a filha do cantor Tony Carreira, o sentimento de pesar que se manifestou nas redes sociais foi tal que o próprio assumiu estar comovido com os milhares de mensagens de apoio. Por outro lado, será que ele pôde despedir-se de forma íntima da sua filha?”, questiona o sociólogo.

Mulheres mais criticadas

Num universo de escrutínio ao segundo, as diferenças de género também entram. É uma certeza de Rabot. “A mulher é a beleza, a perfeição. É, por excelência, uma mãe numa sociedade que continua a ser patriarcal. Os fãs aceitam melhor os defeitos num homem do que numa mulher.” E vaticina que os estereótipos de género têm vida longa. Carolina Patrocínio, apresentadora, tem noção disso: “As pessoas acham que as mulheres têm de ser seres perfeitos. Há sempre alguma coisa que não estamos a fazer bem o suficiente. Ou não estamos em casa tempo suficiente, ou trabalhamos de mais, ou não estamos arranjadas como nos querem ver. Está enraizado na sociedade”.

Nas partilhas no Instagram, Carolina mostra as filhas, o marido, Gonçalo Uva, os hábitos saudáveis e a sua boa forma física
(Foto: DR)

E tudo é motivo de escrutínio nos tempos que correm, até os seus hábitos de desporto, o seu corpo. “Ao expor-me, haverá sempre quem sinta que tem direito a dizer tudo o que lhe apetece, tudo o que lhe vem à cabeça. Há uma tendência em julgar sem filtro.” Mas o tempo traz experiência. Lida com comentários positivos e negativos desde cedo, quando entrou pela televisão a apresentar o Disney Kids, na SIC, ainda miúda. Tinha 16 anos. “Já sei relativizar para o bem e para o mal. É consequência de estar mais exposta, uma repercussão do meu trabalho. Aprendi a não me deixar afetar.” Nem sempre foi assim, noutros tempos tentava abstrair-se da realidade para não sofrer tanto com isso, até porque a família ficava incomodada de cada vez que “saíam notícias menos simpáticas”. Todos se habituaram.

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Hoje lê poucos comentários, sobretudo quando os filhos entram nas suas publicações. E não carrega inseguranças nem tampouco culpas. “Partilho o que sinto que é positivo e estou ciente do que faço quando mostro os meus filhos. Há quem queira ver isso numa ótica negativa, mas não me rejo pela cabeça dos outros.” Carolina Patrocínio garante que consegue desenhar uma linha clara entre o que quer mostrar e o que não quer. “Da parte do público, há quem não respeite os limites, mas tenho sempre a opção de bloquear.”

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Nelson Zagalo é professor de Multimédia na Universidade de Aveiro, faz investigação na área dos media digitais, e é ele quem recorda que “antes, os fãs mandavam uma carta. Punham-se à porta de casa das figuras públicas. Hoje, podem estar sentados no sofá a ver tudo o que o ídolo faz”. As redes são o mundo maravilha da cultura fã. Até porque “a ideia de celebridade inatingível desaparece”. E as próprias figuras escancaram a porta da vida. “Porque necessitam, inevitavelmente. A exposição é o principal atributo de captação de seguidores. Podem lançar um livro ou uma música fantástica, mas se não aparecem continuamente, desaparecem.” Hoje, uma celebridade não existe se não estiver nas redes sociais. Não há figura célebre sem milhares de seguidores. “Que dão trabalho, que precisam de ser acarinhados.” E mesmo quem gere as redes preservando a intimidade, “é completamente invadido”. “Os fãs sentem que também têm dedo naquela fama. E agora têm acesso direto à pessoa. Sentem-se no direito de exigir retorno.”

Efeito bola de neve e cancelamentos virtuais

Só que o escrutínio permanente “tem impactos nefastos”. “Muitos artistas vão-se abaixo e não é por acaso. Existe uma enorme pressão, aquilo que é esperado deles, o que têm que oferecer, como têm que se comportar. A maioria de nós, se passasse por isso, não aguentava.” Talvez por isso só chegue ao estrelato “quem tem grande capacidade para lidar com esses choques”. E é preciso arcaboiço numa era em que as redes amplificam o efeito de grupo. “Se uma quantidade de pessoas está a atacar esta celebridade, é muito fácil ir atrás. E passam a ser centenas a criticar. É uma bola de neve difícil de aguentar”, constata o professor de Multimédia.

Aliás, os cancelamentos na Internet viraram fenómeno. Figuras públicas a cair numa rede de ataques e de impopularidade que as levam a afastar-se das redes. Basta recordar o caso do humorista Diogo Faro. Ao criticar no Twitter jovens que estavam a juntar-se em festas ilegais em pleno confinamento, teve de lidar com a recuperação de uma fotografia da sua passagem de ano em pandemia com um grupo de amigos. E o mundo virtual caiu-lhe em cima numa avalancha de acusações de hipocrisia. Ou o caso de Rui Unas, que foi atacado em massa quando divulgou que ia entrevistar o arquiteto Tomás Taveira no seu canal de YouTube, dizendo que um homem “não pode ser definido apenas pelas asneiras que faz na vida”. Acabou por retirar a publicação. Lá fora, Ellen DeGeneres, ícone da cultura de talk show norte-americana, anunciou que ia cancelar o seu programa, ao fim de 19 temporadas. Tudo porque as audiências caíram a pique depois de a polémica sobre o ambiente de trabalho tóxico no “The Ellen DeGeneres Show” ter fervilhado nas redes.

“É o reflexo da sociedade. Estas pessoas, quando têm um dia bom, têm milhões a aplaudir. E quando têm um dia mau, têm milhões a gritar contra e tudo desaba. Faz parte”, conclui Nelson Zagalo.