Encostado à parede
Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
A falsidade de testemunho segue José há anos, desde que a polícia entrou no café e encostou o jovem à parede. É um pilar dos tribunais, rígido e maleável: se a pessoa é apenas testemunha, é obrigada a falar e com verdade. Se, pelo contrário, for arguido, recebe este bónus de serenidade: pode calar-se e até, falando, dizer todas as mentiras que entenda para a sua defesa. José escorregou de testemunha para acusado, encostado à parede. O juiz leu-lhe a acusação por crime de falso testemunho, há quatro anos.
– Disse que no café da Associação de Moradores o produto estupefaciente encontrado na sua posse já o trazia de casa, não o tendo adquirido a Cristiano. Contradiz o que o senhor tinha dito durante o inquérito, que quando se encontrava no café “onde passo muito tempo, fui abordado por um indivíduo de raça negra que me quis vender haxixe, tendo eu adquirido uma dose para meu consumo, quando fui encostado à parede”.
José esperava, em pé no tribunal, a conclusão do auto:
– No julgamento disse, pelo contrário, que já o trazia de casa e não o comprou ao senhor Cristiano. Não ignorava que não podia mentir e jurou que ia falar com verdade, o que não fez.
José respirou e começou:
– Eu naquele dia saí de casa de manhã, já trazia aquilo no bolso, como disse ao senhor agente. Depois os senhores agentes encostaram-nos à parede, levaram-nos para a esquadra… Eu, quando me deram o papel para assinar, disse que não queria assinar, só na presença de um advogado, eu na altura não tinha advogado. E o senhor agente disse: “Não, o senhor não tem direito a advogado nada, você aqui tem de assinar e mais nada”. Eu disse: “Então deixe-me ler”. E ele disse: “Não, você vai assinar, você aqui não tem de ler nada, você aqui assina”. E pôs a mão à frente, eu a tentar ler o que estava a assinar, mas eles a empurrarem-me, “vais ter que assinar, vais ter que assinar!”. Naquilo tudo assinei, que estavam a empurrar, já me estavam a dar muita pressão e eu não estava a aguentar.
Parecia ter regressado duma batalha, fazia o relatório da sua derrota. O juiz olhava-o.
– O senhor chegou a ler o que tinha assinado?
– No final, li. Tinha muita coisa com que não concordava, e eu disse aos senhores agentes, mas depois de estar escrito eu já não podia fazer nada, depois de estar a minha assinatura.
O amigo dele, Cristiano, foi condenado. O procurador da República lembrou que no papel assinado não houvera juramento, era informal, ao contrário do testemunho seguinte. O advogado de José disse que nas esquadras deviam entrar advogados oficiosos, evitando que as pessoas sob pressão assinassem, sem frieza. Deste caso o que mais ficou foi a imagem:
– Eu ali constantemente encostado à parede, cinco, seis vezes, ao pé da minha família!
Se calhar, José foi encostado todos os dias da vida, nasceu encostado à parede. Encurralado. Tem a quarta classe.
– Porque é que o senhor não continuou os estudos?
– Tive problemas, levei um tiro no joelho, estive dois anos e meio sem poder ir à escola, depois fiquei sem um dedo.
– Os seus pais são vivos?
– A minha mãe é viva mas nunca morei com ela, sempre vivi com a minha avó, e o meu pai faleceu quando eu estava na barriga da minha mãe.
– E tem avô?
– Sim, mas os meus avós paternos estão separados.
– O senhor recebe algum rendimento social de inserção?
– Não consigo tratar disso porque faz agora um ano que saí da cadeia. Marquei, mas não me deram.
– A sua avó recebe alguma prestação social?
– Uma reforma. Assim por alto acho que é 410 ou 420 euros.
– Sabe se a casa é própria ou arrendada?
– É da câmara.
– Sabe quanto é a renda?
– É à volta de 90-100.
– Mora lá mais alguém?
– Duas tias e quatro primos. Os primos são menores. Uma tia trabalha mas com a covid despediram-na. Recebe RSI.
– Quanto recebe a sua tia de rendimento social de inserção?
– Não sei. Da minha avó eu sei, porque como ela está numa cadeirinha de rodas, eu é que vou buscar.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)