É um dos paradoxos mais estudados pela Psicologia Social. Numa situação de emergência, é menos provável ajudarmos se houver mais pessoas presentes do que se estivermos sozinhos. É o chamado efeito do espectador.
São 15 segundos de filmagem capazes de pôr em causa a fé na Humanidade. A mulher está caída no chão, junto a um expositor de publicidade, numa das mais movimentadas ruas de Copenhaga. Mexe-se, mas não está bem. Passa uma jovem com um carrinho de bebé, passa um casal idoso de braço dado, passa um jovem a tirar fotografias a um prédio, passa um guia turístico com um grupo de 15 pessoas atrás. Todos a veem, nenhum pára. A jovem no chão é uma atriz a desempenhar um papel. Já a indiferença dos transeuntes é bem real. A situação foi encenada e gravada, em 2014, por Vincent Hendricks, professor de Filosofia da Universidade de Copenhaga, na Dinamarca, precisamente para compreender melhor um perturbador fenómeno chamado efeito do espectador, que postula que a presença de muitas pessoas diminui as hipóteses de cada uma delas intervir numa situação de emergência em que alguém precisa de ajuda.
Uma das explicações para este comportamento, sustenta a psicóloga clínica e da Justiça Rute Agulhas, é a difusão da responsabilidade. “A responsabilidade de ajudar o outro deixa de estar centrada apenas numa pessoa, dilui-se por todos os que assistem. Esta difusão da responsabilidade tende a minimizar a culpa individual.” É um exemplo clássico da famosa máxima “quando a responsabilidade é de todos, não é de ninguém”. Além disso, em algumas situações específicas, como ao presenciar uma agressão, os espectadores podem sentir conflitos internos. “Por um lado, e de acordo com os seus valores e princípios éticos, pensam que devem ajudar. Seria mesmo uma obrigação moral. Por outro lado, sentem medos, que podem ser racionais e lógicos, como o medo de também poderem ser agredidos e de virem a ser envolvidos num processo judicial. E este conflito interno pode ser paralisador.”
Também Isabel Pinto, professora de Psicologia Social na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, cuja investigação se foca, entre outros, na ação versus apatia coletiva, revela que há vários processos psicossociais que promovem o efeito do espectador. “As pessoas acharem que não é seu dever intervir em situações que lhes são alheias, o medo de retaliação (em caso de crimes), a perceção de que a situação não é suficientemente séria ou a perceção de que não vale a pena combater o crime porque os mecanismos de controlo social são ineficazes”, exemplifica a investigadora.
O contexto é muito importante nesta tomada de decisão. “O nosso comportamento muda em função do contexto: uma criança não se comporta exatamente da mesma forma na presença dos pais ou dos avós e também um adulto não se comporta da mesma forma quando está sozinho ou na presença de outras pessoas”, esclarece Margarida Vaz Garrido, doutorada em Psicologia Social e Professora no ISCTE-IUL, onde coordena o grupo de investigação em Comportamento, Emoção e Cognição, do Centro de Investigação e de Intervenção Social.
Mas não é apenas o comportamento que é condicionado pelo contexto: também a cognição é socialmente situada. “Isto quer dizer que o nosso pensamento, as nossas emoções e o nosso comportamento não são orientados por esquemas rígidos e abstratos, mas ancorados no nosso corpo, no contexto físico e no contexto social”, pormenoriza a investigadora, que desenvolve pesquisa na área da cognição social, nomeadamente, no estudo da influência de fatores contextuais na cognição e comportamento social.
Esse enquadramento e a forma como ele é percecionado influenciam o efeito do espectador. Segundo Margarida Garrido, “dependendo da situação presenciada e da forma como as pessoas interpretam essa situação, elas podem, por exemplo, assumir que os outros serão mais aptos para ajudar – porque são mais fortes, mais qualificados -, ou temer que a sua ajuda não seja bem recebida ou que até possa ser prejudicial à vítima”.
Uma mulher assassinada perante 38 testemunhas
O efeito do espectador foi descrito pela primeira vez, e assim batizado, em 1968, por John Darley e Bibb Latané. Os dois psicólogos sociais americanos foram profundamente influenciados na sua investigação por um acontecimento marcante que ocorreu anos antes. A 13 de março de 1964, pelas três da manhã, uma mulher chamada Kitty Genovese foi esfaqueada perto da sua casa, em Queens, Nova Iorque. Apesar de um considerável número de vizinhos – alegadamente, 38 – ter ouvido os seus gritos, o ataque e os pedidos de ajuda, ela foi assassinada e a Polícia tardou a aparecer. A cidade ficou chocada com esta paralisia coletiva quando um mediático artigo do “The New York Times” (NYT) a relatou.
“Estimativas mais recentes apontam para um número de espectadores mais reduzido, para o facto de a maioria não ter visto a ocorrência e de a polícia ter sido avisada, levando o NYT a reconhecer o exagero da notícia”, observa Margarida Garrido. Isso quer dizer que tanto os relatos como os estudos sobre o tema têm de ser olhados com cuidado. Desde logo, especifica a investigadora, porque a maioria das investigações sobre este fenómeno foram realizadas em contexto laboratorial, com as consequentes limitações, a começar pela incerteza de se conseguir recriar situações percebidas como de emergência.
Basta uma pessoa para fazer a diferença
A investigação mais recente e com base na vida real mostra que o efeito é menor do que se julgava inicialmente. Um estudo publicado em 2019 por Richard Philpot, do Departamento de Psicologia da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, mostra que se formos vítimas de um crime no espaço público, podemos contar com a ajuda dos outros. Com base numa recolha de 219 vídeos de agressões ou conflitos públicos reais, captados por câmaras de videovigilância do Reino Unido, Holanda e África do Sul, os investigadores concluem que nove em cada dez vezes, pelo menos um dos espectadores intervém, desmontando assim a narrativa de que ninguém fará nada para nos ajudar. Na realidade, a maioria das vezes, mais do que uma pessoa presta auxílio.
Há um aspeto curioso e paradoxal neste fenómeno: sabe-se que em situações em que estamos a ser observados por outros temos tendência para nos comportarmos como estaria socialmente prescrito. Neste caso, no entanto, parece acontecer o oposto: apesar de ajudar o próximo ser aquilo que nos deixaria bem-vistos aos olhos dos outros, quando está muita gente presente, mais dificilmente alguém o faz. Isso acontece porque há duas regras em confronto: além da norma prescritiva, que nos diz que devemos ajudar, está em campo uma norma descritiva, que estipula como se deve agir naquela situação em concreto. “Se estão muitas pessoas sem intervir, elas estão a ‘informar’ as outras pessoas que aquele comportamento de apatia é aceitável”, defende Isabel Pinto. “A verdade é que, perante uma situação de emergência, a incerteza sobre o que está a acontecer é muito grande, e as outras pessoas tornam-se uma fonte de informação e influência muito relevante. Ao repararem que as outras pessoas não intervêm, é perfeitamente natural que pensem ‘Se não intervêm, é porque a situação não é tão séria’. Este tipo de pensamento é muito reportado aquando do estudo do efeito do espectador”, conclui a investigadora.
Mas o que isto também quer dizer é que basta alguém agir para inverter este efeito. “Basta quebrar o contágio da apatia – por exemplo, uma pessoa socorrer a vítima – para que a norma descritiva deixe de atuar e a prescritiva passe a ter mais força. Nesse momento, várias pessoas vão intervir.” Uma pessoa faz a diferença.
O espectador do discurso de ódio online
O efeito do espectador está muito presente no mundo virtual. A apatia de muitos utilizadores perante o discurso de ódio de outros é um exemplo paradigmático. Essa apatia contribui para legitimar e perpetuar esse comportamento. Isabel Pinto, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, está a coordenar o projeto “VigilHate – vigilant citizens against hate”, que pretende combater o fenómeno.
“O objetivo é determinar processos que estimulem a autorregulação moral dos indivíduos no sentido de se comprometerem com o combate ao discurso de ódio quando o testemunham nas redes sociais. Isso permite-nos conhecer melhor o efeito do espectador e, mais importante, dá-nos pistas sobre como contribuir para um processo de responsabilização social dos cidadãos no combate ao discurso de ódio”, resume a investigadora.
Os resultados preliminares indicam que alguns dos processos mais importantes neste combate são as noções de empatia, de autoeficácia (a perceção de que o próprio comportamento faz a diferença) e de Direitos Humanos, além da definição de políticas e normas antidiscriminação.