E se a realidade virtual for o terapeuta do futuro?

"Permite realizar intervenção em fobias nas quais é difícil e dispendioso realizar uma exposição real, por exemplo, andar de avião", explica o psicólogo Jorge Alves

Problemas como as fobias, stresse pós-traumático e ansiedade social são já tratados com a ajuda de experiências imersivas virtuais. Agora, são conduzidas por psicólogos. Em breve, o uso desta técnica pode ser autónomo.

Este ano, Mariana Coelho (nome fictício), de 43 anos, alcançou aquilo que define como uma enorme vitória: conseguiu atravessar, a conduzir, o Viaduto do Corgo, na A4, junto a Vila Real. Uma ponte de quase três quilómetros de comprimento que, na zona de maior desnível, eleva-se mais de 230 metros acima do vale do rio Corgo.

A profissional na área de Gestão, no Porto, desenvolveu há alguns anos medo de conduzir em autoestradas e atravessar pontes. E isso estava a tornar-se cada vez mais limitativo. Há três anos, teve o pior dia da sua vida por conta de uma simples viagem de carro entre o Porto e Vila Real. “Mal cheguei a Penafiel, tive o primeiro ataque de pânico, parei e fiquei só a tentar respirar mais de 30 minutos. Muito ansiosa, continuei viagem e tive de voltar a parar pouco depois, antes de uma ponte na autoestrada: foram mais 30 minutos de choro, tremores, suores frios, boca seca e ansiedade extrema.”

Conduzindo lentamente, abandonou a autoestrada na saída seguinte e fez o resto do percurso pela estrada nacional. “Entre curvas e contracurvas, bermas sem proteção e pisos degradados, demorei três horas a fazer 70 quilómetros.” Daí para a frente, a fobia passou a comandar a sua vida: as deslocações de carro eram cada vez menos e só arriscava trajetos perto de casa. Procurou ajuda de um psiquiatra, que manteve por dois anos, mas sem resultados.

Há um ano ouviu falar do Centro Cérebro, em Braga, e da realidade virtual (RV) como opção para o tratamento de fobias e resolveu experimentar.

No tratamento deste tipo de perturbações, uma das técnicas mais usadas pela psicologia cognitivo-comportamental é a terapia de exposição, que consiste em expor gradualmente o paciente à fonte de ansiedade, num ambiente seguro e controlado, acompanhado por um psicólogo que o vai monitorizando e ajudando a gerir os níveis de ansiedade. A RV é uma ajuda preciosa para o fazer. “Através da exposição guiada aos estímulos que o paciente teme, vamos ‘quebrando’ a ansiedade ligada aos mesmos”, explica Jorge Alves, diretor clínico do Centro Cérebro.

Enfrentar o medo com óculos de RV

O psicólogo usa a realidade virtual desde 2015 para o tratamento de uma extensa lista de fobias, como o medo de conduzir, de alturas, de voar, de sangue e de agulhas, a ansiedade social e o medo de falar em público, as fobias a vários animais, a claustrofobia, entre outras patologias. Com os óculos de RV na cara, o paciente entra em contacto com uma simulação realista da sua fobia, ao mesmo tempo que os medidores da sudorese da pele e de ritmo cardíaco ajudam o psicólogo a avaliar o nível de ansiedade do paciente.

Para Jorge Alves, uma das grandes vantagens deste sistema é ser prático. “Permite realizar intervenção em fobias nas quais é difícil e dispendioso realizar uma exposição real, por exemplo, andar de avião. Além disso, permite aumentar a dificuldade de uma forma muito mais gradual, possibilita o registo sistematizado e objetivo da evolução e permite ainda tratar pacientes que não conseguem iniciar o tratamento de exposição em ambientes reais. Aqui, conseguimos controlar imensas variáveis e a sequência de eventos”, prossegue.

Durante as sessões de tratamento, Mariana Coelho “era colocada” nas situações de condução que a deixavam nervosa, como circular com velocidade, atravessar pontes e ultrapassar. “As sessões, com cerca de 60 minutos, eram visualizações destes cenários, que foram evoluindo e aumentando de dificuldade à medida que progredia na terapia. Quando a ansiedade estava mais elevada, era aconselhada a fazer respirações de modo a induzir o relaxamento”, pormenoriza. Ela começou a notar melhorias desde cedo. Mora no Porto e deslocava-se até Braga, de carro, para fazer os tratamentos. “Nesse trajeto surgem algumas pontes, por isso, no início, um familiar tinha de me levar a Braga. Depois das primeiras quatro sessões, comecei a ser eu mesma a fazer o percurso.”

No Centro Cérebro, em Braga, o paciente entra em contacto com uma simulação realista da sua fobia, através do recurso a óculos de realidade virtual

Jorge Alves refere que na maioria dos casos a duração habitual total da terapia varia entre duas e oito sessões. “Ou seja, temos conseguido trabalhar consideravelmente abaixo do número típico de sessões [que são necessárias numa terapia tradicional], mesmo em casos complexos e/ou de longa duração. Atualmente, os casos crónicos que já tentaram vários tratamentos representam a maioria dos nossos pacientes e temos conseguido responder com sucesso terapêutico”, garante.

Além das fobias, o psicólogo usa esta tecnologia para o tratamento de ansiedade generalizada, ataques de pânico, perturbação obsessivo-compulsiva, perturbação de stresse pós-traumático, ansiedade relacionada com testes, perturbações de sono, treino de competências sociais, perturbações alimentares e dependências, dispondo de simuladores para todas essas situações.

Os tratamentos do futuro

Daniel Freeman, professor de Psicologia Clínica na Universidade de Oxford, no Reino Unido, e fundador e diretor da Oxford VR, uma spin-off da universidade que desenvolve simuladores que usam a tecnologia imersiva de realidade virtual, defende que o extraordinário potencial da RV é ir ao cerne de qualquer tratamento psicológico bem-sucedido: fazer as pessoas sentirem-se melhores na vida quotidiana. “As pessoas podem entrar em simulações de situações que as perturbam e serem orientadas quanto às melhores maneiras de pensarem, sentirem e se comportarem. A beleza disso é que, por um lado, é a consciência de que se trata de simulações que permitem que as pessoas experimentem coisas que não tentariam na vida real, mas, por outro, o que aprendem traz-lhes depois grandes benefícios no dia a dia”, especifica, em entrevista por email, à NM.

A primeira simulação desenvolvida foi para tratar a fobia das alturas, mas já em 2011 começou a estudar esta tecnologia, por razões diferentes. “Estava a estudar a paranoia e uma das questões importantes nessa área é que às vezes não é claro se a pessoa está a ser paranoica ou se os outros foram realmente hostis com ela. A RV forneceu uma maneira de superar essa dificuldade de avaliação: expusemos as pessoas a situações sociais neutras em RV e pudemos ver quem as avaliava como hostis. Foi uma excelente forma de avaliar e estudar a paranoia.”

Hoje, vários dos seus programas de RV são usados no sistema nacional de saúde do Reino Unido (NHS, na sigla original) para tratar pacientes com fobias e ansiedade social. A Oxford VR desenvolveu e está a testar também um software mais ambicioso, focado nas preocupações iniciais de Freeman: o gameChange, que se propõe a intervir no controlo das psicoses em pacientes com esquizofrenia. O simulador está a ser testado em 400 pacientes, em ensaios clínicos em várias cidades britânicas, até ao final de 2021.

Avatar é terapeuta virtual

Freeman tem estado empenhado em criar programas de tratamento que possam superar aquela que considera ser uma das grandes limitações da RV: a necessidade de um terapeuta qualificado. “A RV é usada há mais de 20 anos para tratar problemas de saúde mental, mas sempre como uma ajuda para um terapeuta. As simulações revelam os sintomas, mas a aplicação do tratamento depende de um terapeuta com competência para isso, daí resulta que o acesso ao tratamento tem sido, portanto, muito restrito, porque existem poucos terapeutas qualificados. Milhões de pessoas ficam à espera da ajuda certa.”

A principal inovação dos simuladores que tem desenvolvido é precisamente essa: são totalmente automatizados. É um terapeuta virtual – um avatar amigável – que orienta o paciente durante a experiência imersiva e conduz o trabalho terapêutico, ajudando-o a praticar técnicas para superar as suas dificuldades. Freeman está longe de querer acabar com os psicoterapeutas, o seu grande objetivo com a automatização é “a democratização da oferta do melhor tratamento disponível”.

E ele não usa a expressão “melhor tratamento” por acaso. O simples uso da tecnologia não é um remédio em si e os simuladores não são todos iguais. “O conteúdo da RV é muito importante: é extremamente poderosa se o conteúdo for bom, e ineficaz se não for. E só há uma forma de separar o joio do trigo: testar cada simulador de tratamento num rigoroso ensaio clínico.”

Os resultados do ensaio clínico randomizado, relativo ao simulador para tratamento do medo de alturas da Oxford VR, publicado em 2018 na revista “The Lancet Psychiatry”, são expressivos: todos os participantes sujeitos a sessões no simulador mostram uma redução do medo de alturas, sendo que em metade a redução foi quantificada em mais de 75%. Resultados melhores do que os habitualmente esperados na terapia clássica.

Animado com as conclusões destes estudos, Freeman resume assim as suas expectativas de futuro: “‘Revolucionário’ é uma palavra demasiado usada mas, no que toca ao papel que a RV pode vir a ter nos cuidados de saúde mental nos próximos anos, acredito que possa vir a ser justificada. Pode mesmo vir a tornar-se o método de escolha para muitos tratamentos psicológicos. Sai o divã e entra o headset”.