Rui Cardoso Martins

Duas festas de desaniversário

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Um homem esteve quase a acabar o curso superior de Antropologia Social, mas desistiu. Talvez possa ver se o seu caso se encaixa na figura antropológica dos energúmenos do trânsito.

– Sabe porque é que está aqui a ser julgado?

– Afirmativo!, disse ele, em inesperada voz oficial.

Em Abril de 2020, saiu mais a mulher do cabeleireiro com o filho.

– Uma carrinha tinha batido no nosso carro. É a minha esposa que o diz. Disse “bateram… ou estão a bater no nosso carro”.

Foi ver e no pára-choques havia uma marca cinzenta. “Uma ausência total de tinta naquele lado do carro.” Quanto ao guarda-lamas do carro suspeito, estava preto.

– O senhor raspou-me na porta do carro, disse a um senhor velhote que ali estava.

Mas esse senhor e o casal que estava dentro da carrinha responderam que não tinham batido nada e que não iam pagar.

– Nós tentámos sempre manter a calma, mas a certa altura não conseguimos. A minha esposa liga para a PSP. Esteve um minuto e pouco. Então o senhor diz: “Vamos resolver isto. Não é preciso chamar a Polícia”. Aí começa a minha falha. A cultura de respeito que eu tenho… Anuímos em tirar fotografias, em fotografar os documentos. A minha cunhada era aniversariante e nós íamos à sua festa. E o senhor também era o aniversário dele e tinha interesse em ir embora. E combinámos que ligávamos no dia seguinte.

Mas, antes disso, o idoso pensou em colocar uma massa na mossa.

– Tentaram colocar um material na porta, uma massa para disfarçar. A minha mulher disse-lhe para não colocar massa.

Ficou com o número do outro e no dia seguinte ligou-lhe.

– Correctamente, tentei marcar uma hora para assinarmos a declaração amigável. Então ele diz que não iria assinar!

A procuradora olhou o caderno à sua frente.

– O senhor está acusado de ter colocado uma fotografia da matrícula do carro no Facebook da empresa do queixoso, chamando-lhe proprietário desonesto e que lhe ia pôr um processo-crime por abandonar o local do acidente. Colocou ou não colocou a fotografia?

– Eu não me recordo. Não coloquei.

– Não se recorda ou não colocou?!

E o arguido respondeu que nem conhecia o nome da empresa do queixoso. A procuradora contra-atacou perguntando-lhe como era possível não se recordar de uma coisa que nem sequer conhecia… Então o quase antropólogo social começou a falhar a sua tese. Mas existiu uma segunda chamada, em que o réu disse ao outro que se não pagasse o dano ele ia fazer queixa, ao que o velho respondeu:

– Se fizer isso, vou dizer que o senhor me bateu.

Assim foi, ou quase. Entrou o queixoso na sala de julgamentos, um homem lento, magro, de peles caídas e cabelo branco.

– Eu fazia 80 anos naquele dia e ia buscar a minha irmã para irmos almoçar. Então aconteceu o seguinte: quando eu me dirigia para baixo, este senhor veio ter comigo e disse: “O senhor não tocou no meu carro?”. “Não, não toquei”.

O outro mostrou-lhe um risco na porta.

– Eu estou no ramo automóvel e disse: “Isso até sai com um panito”. Eu tentei tirar aquilo com um pano.

– Tinha algum produto nesse pano?

– Eventualmente, poderia ter, mas não me recordo. Quando estava a fazer isso, o senhor e uma senhora agarraram-se a mim de uma maneira brutal. “O senhor não mexe no meu carro!!!” Eu, em 80 anos, nunca me tinha acontecido! Eu, pura e simplesmente, parei.

A jovem Alice, quando vai ao outro lado do espelho, encontra em cima de um muro o ovo gigante Humpty Dumpty com uma gravata oferecida pelo rei e pela rainha de copas como presente de desaniversário. A comemoração de todos os dias em que não fazemos anos… [no filme da Disney, a festa de desaniversário passa para a mesa do Chapeleiro Louco].

“- Quando eu uso uma palavra – disse Humpty Dumpty num tom escarninho – ela significa exactamente aquilo que eu quero que signifique… nem mais nem menos.

– A questão – ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.

– A questão – replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso.”

Passando um paninho, tudo se resolvia, mas foi preciso chamar quem manda.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)